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4.2 – (Re) construções cotidianas

No documento O Alto José do Pinho por trás do punk rock (páginas 117-121)

Ao invés de ratificar aqui a redenção das bandas do Alto ao código cultural dominante, é mais apropriado apontar para as estratégias discursivas que acabaram moldando a construção de uma imagem compatível com a representação normalizadora dos meios massivos. É necessário destacar, por outro lado, que apesar dos dispositivos de representação gerados a partir dos media, os processos de constituição de uma representação encontram várias fontes de referência e matrizes que vão moldando as atitudes. Serge Moscovici (2003) afirma que não há informação que não tenha sido de alguma maneira alterada por representações superimpostas aos objetos e às pessoas observados, seja por uma predisposição genética herdada do observador, por hábitos já apreendidos por ele, por recordações que ele preserva, ou em função de suas categorias culturais, que se juntam para que veja as coisas e pessoas tais como as vê.

Pode-se dizer, assim, que a conformação dos sentidos é anterior à comunicação mediada pelos mass media, reforçando o postulado de Lewin (LEWIN apud MOSCOVICI, 2003), segundo o qual a realidade é, em grande parte, determinada por aquilo que é socialmente aceito como realidade, para compreender o processo de elaboração cognitiva, vivenciado pelos moradores do Alto.

Dessa forma, a constituição de uma representação social do movimento de música alternativo do bairro, antes de sua projeção midiática, estaria centrada na geração de conhecimentos tornados comuns na convivência cotidiana61.

Afinal, a realidade da vida cotidiana se configura uma realidade por excelência, capaz de organizar a vida em torno do “aqui do meu corpo e do agora do meu presente” (BERGER e LUCKMANN, 1995), no jogo de conhecimento que tece o complexo de significados de uma sociedade. Para esses autores, diferentes objetos pertencentes a múltiplas esferas de realidade chegam à consciência, mas esta é sempre intencional. Nesse sentido, defende-se aqui a idéia de que, apesar de existirem vários graus de aproximação e distanciamento entre esses domínios de “realidade” e a vida cotidiana, é através daquela diretamente acessível à manipulação corporal dos sujeitos, o aqui e o agora, que melhor se pode observar os processos de representação constituídos no interior da comunidade pesquisada.

Assim, se, em um primeiro momento, mecanismos como o de ancoragem serviram para ratificar a idéia da perversão do rock na visão conservadora (e majoritária) da população do bairro, como já se teve oportunidade de analisar nesta dissertação, o trabalho de base, empreendido pelos grupos, organizados em torno de uma ONG estranha ao território, no qual movimento e comunidade estabeleciam suas negociações e disputas, abriu perspectivas de agenciamento e de constituição de uma identidade de bairro. Ao proceder dessa forma, o braço social da cena roqueira criou novos laços de socialidade e reorientou valores e expectativas individuais na direção de um projeto social coletivo, que, mais tarde, foi legitimado simbolicamente pelos meios de comunicação massivos, garantindo status cultural e visibilidade social a essa comunidade periférica.

Portanto, quando a mídia, guiada pela lógica da renovação cultural e mobilizada em função do acontecimento62 do mangue beat, foi buscar no Alto

José do Pinho um combustível a mais para suas engrenagens, a comunidade já havia ressignificado o punk rock e a imagem de ruptura a ele relacionada, construindo um ambiente favorável à recepção da mensagem normalizadora dos

61 Trabalha-se aqui com a noção sociológica de conhecimento e realidade segundo Berger e Luckmann (1995),

para quem não há pensamento humano que esteja imune às influências ideologizantes do seu contexto social; e com a epistemologia popular elaborada por Moscovici (2003), a partir da qual é restituído o status da produção de conhecimento das massas.

62 Usa-se aqui a noção de acontecimento de Edgar Morin para designar o acidental, o improvável. O autor

considera a complexidade do termo, argumentando que o acontecimento está atrelado a uma ontologia temporal e inscrito em um sistema. Para ele, os acontecimentos desencadeiam os fenômenos autogerados, que precisam estar relacionados aos heterogerados, a fim de se investigar o funcionamento da sociedade.

media e criando elementos capazes de manter as dimensões “simbólica e sagrada da vida social” (FEATHERSTONE, 1995, p.175). Possibilitava, dessa maneira, a estabilização desse signo cultural, atribuindo-lhe coerência e dimensão simbólica para aquela periferia. Nesse momento, então, o impacto da imagem positivada do Alto José do Pinho, pelos meios massivos, contribuiu decisivamente para a assimilação do universo roqueiro pelos moradores do bairro, e, principalmente, para a valorização de uma identidade coletiva partilhada naquele território. A mídia foi o lugar no qual essa comunidade encontrou espaço de expressão, a sua arena de negociação que lhe garantiu visibilidade e que acabou reforçando os laços de solidariedade (cordialidade) entre os moradores daquele bairro. Nesse sentido, o “orgulho de pertencer ao Alto José do Pinho”, afirmação de pertença idealizada e reproduzida pelos media, foi incorporada como valor por toda a comunidade - um indício a mais de sua necessidade de espelhar o real midiatizado.

Há que se considerar, no entanto, independente do papel dos meios de comunicação na construção da realidade e do caráter consensual de sua mediação, a dinâmica relacional entre os atores sociais (NÓBREGA, 1990). Ratifica-se, dessa maneira, a idéia de Moscovici, segundo a qual os processos de formação das representações devem ser observados a partir das “condições de emergência da concretude e da atribuição de significados dos objetos sociais construídos pelos sujeitos que buscam a sintonia de suas práticas e comunicações na orquestração da sociedade” (MOSCOVICI, 2003, p.15). Ao se analisar a maneira pela qual o movimento de música alternativa do Alto, durante determinado período de tempo, foi “glorificado” pelos moradores da comunidade, que reconheciam, na expressão desse universo musical, uma forma de inserção sócio-cultural e de manifestação de suas demandas por reconhecimento, percebe-se que essa atitude implica uma materialidade que supera o alcance simbólico do espelho midiático.

Por se tratar de uma comunidade pobre, que sente de perto a ausência do poder público, que empurra os sujeitos para a lógica do “cada um por si” do mercado, o Alto José do Pinho encontra na cena roqueira um instrumento de auto-afirmação, mas a demanda por ações sociais concretas, idealmente atreladas às carreiras desses grupos, acaba tensionando as inter-relações no interior daquela periferia. Como uma expressão cultural catalisadora de identidades grupais, cujo canal de circulação e consumo se efetiva no campo da

comunicação midiática – independente de sua expansão e visibilidade – o punk rock produzido naquele subúrbio, em que pese o seu engajamento nas questões sociais da comunidade, não pode ocupar uma lacuna aberta pela inacessibilidade ao desenvolvimento social e à cidadania impostos às populações de baixa renda.

É nesse campo atravessado por disputas entre demandas individuais e coletivas que se estabelecem, ao mesmo tempo, identificações resultantes da proximidade social – que, como se sabe, não garante necessariamente a sua condição de unidade - e distanciamentos, gerados em função do acúmulo de capital simbólico do punk rock. A comunidade do Alto José do Pinho não se encontra mais no espelho da mídia, não se reconhece nas matérias sobre o Devotos, o Faces do Subúrbio ou sobre qualquer outra banda que tenha tomado parte na cena de música alternativa do bairro. Mas, dificilmente um visitante do morro ouvirá críticas ao movimento musical em questão. O que significa dizer que os mecanismos de produção de sentidos, atrelados a esse objeto cultural, para os moradores do bairro, se não dizem respeito às suas realidades cotidianas, ao menos preservam o potencial integrador dessa expressão musical para com a cultura institucional.

O alto José do Pinho, doze anos depois de despontar na cartografia cultural da capital pernambucana, através das lentes da imprensa, segue o seu destino de periferia “órfã” da ação e proteção do Estado. Vive um cotidiano tomado por incertezas e desconfianças, incapaz de resistir ao sonho de um projeto de transformação social coletivo, alicerçado na riqueza cultural do bairro. Entretanto, sobrevive, ali, uma energia de renovação, uma capacidade latente de auto-organização que possibilita a sua regeneração, enquanto comunidade territorializada, grupo social, sistema. As individualidades, por ora, parecem se sobrepor à organicidade que caracteriza a vida social do bairro, mas não se pode falar em rupturas. Mais adequado seria considerar os processos observados nesse domínio social, onde se formam alianças e se dão afastamentos pontuais. Daí sua transitoriedade e dinâmica. É possível apontar aqui a existência de uma tradição roqueira no Alto José do Pinho, capaz de renovar, de tempos em tempos, o elenco de grupos dos mais variados subgêneros do rock, constituindo uma cena que, ainda que não desperte nos meios de comunicação de massa o interesse observado nos anos 90, luta para reafirmar a identidade cultural do bairro propagada pela mídia ao longo daquela década.

No documento O Alto José do Pinho por trás do punk rock (páginas 117-121)