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NO PRINCÍPIO, (JÁ) ERA A IDEOLOGIA

4. O enssujeitamento do sujeito ao Sujeito no interior dos Aparelhos de Estado (instância ideológica histórica concreta),

1.8 Do interdiscurso à formação discursiva do Aparelho Ideológico Escolar: o que

1.8.1 Pré-construído e discurso transverso

Os conteúdos vivenciados como “sempre-já-lá” refletem os efeitos ideológicos da evidência de sentidos naturalizados e cristalizados. A universalidade de sentidos

mascara, para o sujeito, o caráter ideológico do funcionamento da própria formação discursiva, assim como descredencia quaisquer ingerências da ordem do interdiscurso: tudo parece se dar no âmbito transparente, homogêneo e consciente da língua. O pré- construído é o (efeito de) sentido compartilhado “desde sempre” disponibilizado aos falantes no interior das práticas discursivas reguladas pela formação discursiva.

Diferentemente, assinala Pêcheux (2010), do que se reconhece como “articulação”. Esta, “constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito.” (op.

cit., p. 151). A articulação está ligada ao modo como as palavras, proposições e

expressões se substituem/alternam no interior das sequências praticadas nas formações discursivas. Às vezes, encontraremos entre estas proposições uma relação de

equivalência e, em outras ocasiões, uma relação de implicação entre elas. A primeira

modalidade sugere uma “equivalência de sentidos” no interior de uma mesma formação discursiva. A paráfrase constitui um bom exemplo de equivalência entre palavras, expressões e proposições - ainda que o mais prudente fosse falar-se em efeito de

equivalência.

A implicação, por sua vez, evidencia um tipo particular de substituição. Não há de se buscar uma correlação direta entre os termos. Na implicação, “a relação entre os substituíveis é uma relação de identidade ‘não orientada’, uma vez que os substituíveis só podem ser sintagmatizados por uma meta-relação de identidade” (PÊCHEUX, 2010, p. 151), como sugere o funcionamento da seguinte sequência extraída do corpus de análise:

Educação de qualidade só com professor de qualidade

Na sequência, a sugerida equivalência (professor de qualidade = educação de qualidade) dissimula o trabalho de uma implicação à medida que o encadeamento que funciona aí não é uma relação de identidade, mas sugere um movimento metonímico próprio do discurso-transverso, como explica Pêcheux:

(...) o que chamamos anteriormente ‘articulação’ (ou ‘processo de sustentação’) está em relação direta com o que acabamos agora de caracterizar sob o nome de discurso-transverso, uma vez que se pode dizer que a articulação (o efeito de incidência ‘explicativa’ que a ele corresponde) provém da linearização (ou sintagmatização) do discurso-transverso no eixo que designaremos pela expressão

intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si

mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de ‘co-

referência’ que garantem aquilo que se pode chamar o ‘fio do discurso’, enquanto discurso de um sujeito). (op. cit., p.153)

Como sugere a fala de Pêcheux, é o próprio modo de disposição do discurso no eixo da materialidade linguística (intradiscurso) que promove este efeito de linearização e implicação direta das proposições. O modo de organização da língua (intradiscursividade), portanto, contribui para a dissimulação do modo de articulação das memórias e seus efeitos de sentido no discurso.

A sequência das explicações de Pêcheux sobre o discurso-transverso contidas em Semântica e Discurso, por outro lado, não deixa de produzir uma certa confusão teórica no que tange ao papel da Ideologia em geral no processo desencadeado pelo trabalho ideológico de um discurso-transverso. Em Pêcheux lemos que “(...) o efeito de determinação do discurso-transverso sobre o sujeito induz necessariamente neste último a relação do sujeito com o Sujeito (universal) da Ideologia, que é ‘evocada’, assim, no pensamento do sujeito (‘todo mundo sabe que ...’, ‘é claro que...’) (op. cit., p.154, grifo meu). A confusão se instala quando Pêcheux funde o Sujeito universal (da formação discursiva) e o Sujeito da Ideologia (com “I” maiúsculo) em uma mesma entidade e quando admite que um dos efeitos do trabalho do discurso-transverso sobre o sujeito vem a ser a evocação no sujeito de sua relação com o Sujeito da Ideologia. O que tenho sugerido, contrariamente, seria que o efeito de determinação do discurso-

transverso sobre o sujeito dissimula necessariamente neste último a relação do sujeito com a instância ideológica exterior (o interdiscurso). O sujeito não tem como saber de

onde vem o “todo mundo sabe o que é um professor...” porque a exterioridade da formação discursiva não lhe é acessível. Nesse sentido, em conformidade com Pêcheux, acrescento:

O interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como ‘sujeito falante’, com a formação discursiva que o assujeita. Nesse sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’. (op. cit., p.154) Para o sujeito, os conteúdos interdiscursivos “parecem vir” do interior da instância da formação discursiva que o domina e a qual “livremente” se filia. A forma- sujeito tende a “absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o

dito’ do intra-discurso, no qual ele [o interdiscurso] se articula por ‘co-referência’” (PÊCHEUX, 2010, p.154). Trata-se da dissimulação da exterioridade ideológica como interioridade material do discurso, o que se alinha ao centramento de sujeitos e sentidos que completa a ilusão ideológica elementar.

Courtine recorda que o termo pré-construído foi utilizado por P.Henry para designar “uma construção anterior, exterior, independente por oposição ao que é construído na enunciação”, uma proposição que assinala “a existência de um descompasso entre o interdiscurso como lugar de construção do pré-construído, e o intradiscurso, como lugar da enunciação por um sujeito” (2009, p.74). Esse descompasso, entretanto, traduz-se para o sujeito como evidência de sentidos inerentes à formação discursiva onde se inscrevem “desde sempre”, criando efeitos de “o que todo mundo sabe”, “o que cada um pode ver”, aquilo que o Sujeito universal delimita como o que pode e deve ser dito no interior de suas práticas discursivas materializadas no intradiscurso. O pré-construído, muito embora carregue a marca da exterioridade e da preexistência, aparece ao sujeito como intestina à formação discursiva mediante mecanismo de interpelação-identificação dos sujeitos ao Sujeito universal.

O interdiscurso não somente fornece os objetos discursivos para a formulação intradiscursiva através dos pré-construídos, como atravessa e conecta entre si estes

objetos em movimentos articulatórios que conferem ao interdiscurso o modo de

funcionamento de discurso-transverso.

Diante do exposto, não me parece incoerente afirmar que o discurso transverso tende a aparecer para o sujeito como puro pré-construído, o qual funcionaria, por vezes, como uma forma de recalque do discurso transverso. O que está em jogo, em última instância, vem a ser o processo de encobrimento/dissimulação da filiação da formação discursiva a seu Aparelho Ideológico. É o que ocorre - no interior das análises do

corpus – diante da mobilização dos discursos do “dom” e da “missão” no âmbito das

campanhas de valorização do professor. Para o sujeito, funcionam como pré-construídos à medida que “todo mundo sabe (e concorda com) isso”. A evidência, por sua vez, desfaz a historicidade dos discursos sobre o docente na instância de funcionamento da Escola e seus agentes como Aparelho Ideológico de Estado, isto é, encobre o papel do professor no âmbito do complexo das formações ideológicas que se materializam no funcionamento prático (discursivo) do Aparelho Ideológico Escolar e sua formação discursiva. Encobrimento que também se opera via deslocamento de sentidos: à medida que se inscreve o labor docente no campo da missão (religiosa) solitária do professor

vocacionado e abnegado, desinstalam-se quaisquer memórias para professor-agente-de- reprodução-das-forças-produtivas-do-capital.

De semelhante modo, a forma-sujeito (que abarca o Sujeito universal da formação discursiva) tende a absorver-esquecer o processo de interpelação que o institui como lócus privilegiado de produção/reprodução/(e transformação) do modo de funcionamento da ideologia dominante, no espaço material dos Aparelhos de Estado.

Portanto, observar os efeitos do trabalho ideológico do discurso-transverso no interior das formações discursivas é um dos mecanismos de identificação/compreensão do funcionamento da instância do todo complexo com dominante das formações ideológicas (interdiscurso). Nas palavras de Courtine:

Se uma dada formação discursiva não é isolável das relações de desigualdade, de contradição ou de subordinação que marcam sua dependência em relação ao ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, intrincado no complexo da instância ideológica, e se nomeamos ‘interdiscurso’ esse todo complexo com dominante das formações discursivas, então é preciso admitir que o estudo de um processo discursivo no interior de uma dada formação discursiva não é dissociável do estudo da determinação desse processo discursivo por seu interdiscurso. (2009, p.73)

Por sua vez, o estudo da determinação do processo discursivo por seu

interdiscurso implica um substancial re-conhecimento dos mecanismos linguístico-

discursivos que regulam e operacionalizam os movimentos de produção de sentidos no interior da formação discursiva. Implica conhecer como se dá a materialização, na fala do sujeito, dos elementos advindos da exterioridade da formação discursiva, isto é, requer um reconhecimento do modo de funcionamento do pré-construido e do discurso- transverso no terreno discursivo das chamadas campanhas de valorização do professor. Para tanto, é fundamental que se proceda ao reconhecimento das projeções imaginárias que fundamenta(ra)m os discursos sobre a docência em emblemáticos momentos da história das formações sociais e suas (lutas de) classes. Uma retrospectiva que, longe de se propor completa ou exaustiva, quer pontuar significativos aspectos das condições de produção dos discursos sobre o docente. Discursos estes que, mediante complexos e contraditórios processos de ressignificação, atualizações e deslocamentos, não têm cessado de funcionar no âmbito das formulações discursivas contemporâneas, dentre as quais se encontram as chamadas campanhas de valorização do professor.

CAPÍTULO 2: