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Capítulo II: Marcas de uma Nova Ordem

2.2. Construindo uma nova visão de ciência em Thomas Khun

A segunda contribuição para a construção de minha nova visão de ciência, vem de Thomas Samuel Khun (1922-1996), pós-doutor em Física pela Universidade de Harvard, foi professor de Educação Geral e de História das Ciências até 1991. Sua contribuição será, em particular, adotada aqui, a partir de sua visão na obra “Estrutura das Revoluções Científicas”.

Inicialmente, entendo ser necessária a compreensão de alguns termos usados por Khun (2000) a fim de facilitar a apreensão de suas principais concepções contidas na obra em foco. Dentre esses termos, destaco os seguintes: ciência normal, paradigma, crises, anomalias e incomensurabilidade de paradigmas.

Ao defender seu modelo de fazer ciência, Khun (2000) admite a existência de uma seqüência de períodos de estabilidade conceitual, nos quais a produção científica consegue explicar satisfatoriamente seus problemas emergentes. Tais períodos, são denominados de “ciência normal”. Neles, a comunidade científica adere a um certo modelo (paradigma).

Estes períodos de ciência normal são interrompidos por revoluções científicas, as quais são caracterizadas por crescentes manifestações de anomalias, ou seja, de fatos não

explicados pela ciência normal, gerando uma crise permanente que culmina com uma ruptura do paradigma vigente.

A crise só é de fato superada quando surge um novo candidato a paradigma, o que acarretará um novo período de ciência normal. A incomensurabilidade de paradigmas é, então, resultado das diferentes naturezas conceituais entre o antigo e o novo paradigma.

O conceito de paradigma (modelo) na perspectiva khuniana recebe aqui uma atenção especial. Trata-se, na verdade, de um conceito central dentro de sua visão a respeito da construção do conhecimento cientifico através dos tempos.

A adoção de um único paradigma por toda a comunidade é a marca fundamental que separa e caracteriza uma atividade científica. O paradigma é que determina os padrões para o trabalho legítimo dentro da ciência que ele governa. “Realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KHUN, 2000, p.13).

Para Masterman (1979), o conceito de paradigma khuniano pode ser estabelecido em três grandes categorias com significados distintos, que bem poderiam ser denominado de filosófica, social e instrumental.

O significado filosófico é oriundo do fato de Khun (2000), algumas vezes, referir- se à ciência como possuidora de um elemento de fé. O paradigma nutre o cientista com uma cosmovisão que não é resultado direto de experiências, mas, que guia toda e qualquer experiência.

Já o significado social, refere-se à estrutura social da comunidade científica, ou seja, o paradigma adquire uma função normativa, pois é ele (paradigma) que fornece aos pesquisadores os procedimentos legítimos que serão aceitos pela comunidade científica.

O terceiro significado, refere-se ao fato de que, com freqüência, uma realização científica é tomada como modelo para solucionar problemas de outras áreas. É neste

sentido que o paradigma pode ser entendido numa perspectiva de instrumento de pesquisa. Isto equivale a dizer que um determinado problema científico pode ser considerado como uma particularidade de uma situação mais geral, para a qual já existe uma solução dentro do paradigma.

Uma outra consideração relevante na compreensão do termo paradigma numa perspectiva khuniana, é a diferenciação, por um lado, de um uso global do termo, referente ao conjunto de compromissos de pesquisas de uma comunidade científica, e, por outro lado, de um uso restrito, referindo-se ao paradigma como exemplo partilhado.

No primeiro uso – dimensão global – o paradigma é identificado como uma matriz disciplinar por ser mais abrangente que o termo teoria. Por um lado, a nomenclatura matriz justifica-se na medida em que o paradigma pode ser descrito a partir da composição de vários elementos de espécies diferentes (disciplinas), sendo que cada um desses elementos exige determinação detalhada. Por outro lado, é disciplinar na medida que se refere à posse comum de uma disciplina particular por seus praticantes.

Dentre os principais tipos de componentes de uma matriz disciplinar estão os valores partilhados. Tais valores proporcionam aos cientistas o sentimento de que pertencem a uma comunidade global.

Já no uso mais restrito, o termo paradigma é usado na dimensão de exemplo compartilhado. É uma referência às produções disponibilizadas aos estudantes durante o desenvolvimento da educação científica, seja na resolução de problemas encontrados nos laboratórios, seja nas publicações de periódicos ou nos manuais científicos.

Além disso, o conceito khuniano de ciência normal necessita ser um pouco aprofundado a fim de facilitar a apreensão, com mais segurança, de sua nova concepção de fazer ciência.

Assim, para Khun (2000), a ciência normal é fundamentalmente caracterizada como adesão estrita e dogmática a um paradigma, que proporciona os conhecimentos necessários à resolução de problemas de pesquisas. Tais problemas devem ser resolvidos de acordo com regras pré-estabelecidas e invioláveis fornecidas pelo paradigma soberano.

Neste sentido, quando falta solução no paradigma para os problemas emergentes, a ciência normal interpreta como falta de capacidade do cientista e nunca questiona suas próprias bases metodológicas. É, nesta perspectiva, que a ciência normal é uma atividade fundamentalmente conservadora, não tendo a preocupação de trazer à tona novas espécies de fenômenos.

Para Khun (2000) é este estado de aparente conformação da ciência normal que constitui condição necessária para o progresso da ciência. O cientista livre da obrigação de analisar criticamente seus métodos, passa a concentrar-se nos detalhes, nos problemas esotéricos, nas minúcias dos problemas pesquisados.

Aqui temos um interessante paralelo entre o anarquismo (pluralismo metodológico) proposto por Paul Feyerabend e a postura khuniana. Enquanto em Feyrabend encontra-se a proposição de princípios para o desenvolvimento científico (contra-método), em Khun temos uma descrição histórica de como ocorre tal processo.

De um lado, em Feyerabend, o cientista precisa de coragem para admitir novas concepções oriundas de outros domínios, e, inclusive, àquelas contrárias às suas convicções atuais. É o cientista que admite, a partir de seus resultados, verdades provisórias, estando aberto às novas possibilidades e, sobretudo, consciente das limitações de todo e qualquer método, bem como da importância de admiti-los para o desenvolvimento científico.

Por outro lado, a postura khuniana ao descrever o desenvolvimento científico a partir de uma visão estrutural, acredita que o processo de ruptura de um paradigma ocorre

inevitavelmente como resultado de uma espécie de excesso de confiança no modelo. O cientista explora outros domínios, convicto do poder descritivo do paradigma vigente e, num dado momento, começa a ter dificuldades para explicar certos fenômenos com o seu modelo.

A resistência aos ataques dos membros mais competentes do paradigma, faz com que o novo fenômeno mude de categoria. Deixa de ser um quebra-cabeça e passa a ser considerado pela comunidade cientifica como uma anomalia. Como se a própria natureza, por uma causa desconhecida, violasse as leis do paradigma gerando assim uma crise.

Além disso, na visão khuniana, tal crise é considerada como um sentimento de mal- estar que provoca um desconforto e insegurança profissional que se reflete, diretamente, sobre o trabalho do cientista.

Neste sentido assevera Japiassu (1991):

Crises são sempre momentos difíceis. Ficamos inconformados com algum aspecto de nossas vidas. Queremos mudar, transformar o que existe. Porém a crise vem do fato de não sabermos o que fazer. Não temos clareza sobre o novo que queremos construir. Ficamos “em cima do muro”, queremos nos desvencilhar do velho, mas cheios de dúvidas quanto ao que vem a ser esse novo. Às vezes, passamos por crises que não são apenas nossas, mas de uma geração ou de toda uma sociedade. (p.16)

A simples existência de uma anomalia no sentido khuniano, não constitui necessariamente uma crise. Três aspectos devem ser considerados a fim de definir uma crise no seio de um paradigma.

O primeiro aspecto é o tempo de resistência das anomalias aos ataques dos membros mais competentes da comunidade científica na tentativa de explicá-las à luz do modelo vigente. No segundo aspecto, a anomalia é considerada agressora das bases epistemológicas do paradigma, uma vez que a comunidade científica não consegue

explicá-las a partir dos recursos que disponibiliza. Finalmente, a crise se instala quando estas anomalias estão ligadas às necessidades urgentes da sociedade.

Assim, na concepção khuniana descritiva do desenvolvimento científico, a revolução científica ocorrerá como conseqüência da insatisfação crescente dos membros da comunidade paradigmática, gerando com isso um clima de profunda insegurança. A resistência da(s) anomalia(s) perpetua a crise enfraquecendo os fundamentos do paradigma, culminando com tempo da revolução (mudança de paradigma).

Tal revolução está estritamente ligada ao abandono de um paradigma e a adoção de um novo. Um número considerável de cientistas dentro da comunidade abraça o novo paradigma que, uma vez acolhido e difundido, deixará poucos dissidentes. Um novo período de ciência normal estará instalado.

A incomensurabilidade paradigmática, na perspectiva khuniana, ocorrerá no período de transição entre o velho e o novo paradigma. Seus padrões científicos são de natureza diferente, suas bases fundamentais são incompatíveis e, portanto, proporcionam concepções explicativas diferentes de mundo.

Assim, tanto em Paul Feyrabend, quanto em Thomas Khun, percebe-se que a prepotência de descrever a realidade através de leis imutáveis que determinam a natureza tal como é, o que pretendeu/pretende o paradigma moderno, não é/foi historicamente possível. Tanto a iniciativa de desrespeitar as regras deterministas admitindo novas concepções (Feyerabend), quanto as resistentes anomalias (Khun), evidenciam este fato.