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Conteúdo de imagens e som Pão de Açúcar

Ao assistir aos seus dois minutos e trinta e cinco segundos, pode ser identificado o que chamaremos de arquétipo de uma felicidade sensorial e imperativa. De acordo com José Martins, os arquétipos emocionais são padrões comuns a toda cultura

humana. Podem ser percebidos como estados de espírito ou formas de percepção do mundo. Os arquétipos são elementos simbólicos que resgatam estados de espírito comuns a todos nós, possibilitando um trabalho de criação com objetivos definidos.229

O primeiro fato a ser notado é que em raros momentos (apenas dois) os personagens

228 MARTINS, José. A Natureza Emocional da Marca: como encontrar uma imagem que fortalece sua

marca. 4 ed. São Paulo: Negócio Editora, 1999, p. 23.

aparecem sozinhos (sem a presença de nenhum animal). O primeiro, no que poderíamos dizer que seja a introdução do comercial, em que o jovem dança na cobertura de um arranha-céu da megalópole e o segundo, onde um belo homem com perfil de galã faz sua corrida. Assim, vemos refletido o fato de que a felicidade também exige momentos de introspecção. O jovem do arranha-céu tem uma visão privilegiada da cidade, e apesar de sua solitude, sua dança e o fundo musical remetem ao prazer de estar rodeado de gente. A mesma cena (indivíduo que observa o horizonte urbano) poderia implicar num sentimento de solidão ainda maior, (em meio ao caos e à multidão, vistos de cima, demonstrando a pequeneza e a ausência de sentido de todo este progresso, ele perceberia que na verdade está só), mas para que este não fosse o sentido apreendido, a música e a dança do personagem fazem toda a diferença na cena, a leveza do som do clarinete não permitiria a transposição dos sentimento ruins (execrados pela psicologia positiva). O outro momento de introspecção, a corrida praticada individualmente, seria uma espécie de meditação, que, combinada ao exercício físico, reforça a demanda pelo bem-estar através do controle sobre a saúde do próprio corpo. A imagem também remete à liberdade. Numa única imagem em movimento, enxergamos o que os gurus da autoajuda reafirmam cotidianamente. Lipovetsky aponta para a diferença do novo conceito de bem-estar:

O bem-estar moderno era funcional, objetivista, mecanicista: o da fase III [atual] aparece como um bem-estar qualitativo e reflexivo, centrado no corpo vivido, na atenção a si próprio, no aumento do registro das sensações íntimas (relaxamento, respiração, visualização, forma, calma e equilíbrio). O balanço é pouco duvidoso: na sociedade de hiperconsumo, o “heroísmo” da superação de si é suplantado de modo bastante amplo pelas paixões narcísicas de saborear os prazeres do maior bem-estar, de sentir-se, muito simplesmente, bem.230

Em seguida, outro esporte aparece. Item indispensável para o alcance da felicidade, a prática volta com algo mais “radical” quando quatro adolescentes atravessam a faixa de pedestre no alto dos seus skates, fazendo manobras e rodopios, representando o a irreverência da felicidade, (porém, sempre de forma segura, pois todos estão devidamente vestidos com os equipamentos de segurança). O esporte como item para a felicidade vai além do simples prazer. Primeiramente, é sabido que os “neurotransmissores da felicidade”, endorfina, serotonina e dopamina são produzidos

230 LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 283.

pelo corpo ao se praticar exercícios. Em segundo lugar, os esportes exigem preparo físico, e esta exigência, correlacionada à constante demanda por um corpo esbelto, pode ser um dos disparadores de comportamento que visam o que Paula Sibilia chama de

lipofobia, e que é conhecido, atualmente pelos movimentos sociais, como “gordofobia”.

Os cuidados com o corpo vão se tornando uma exigência na Modernidade, e implicam a convergência de uma série de elementos: as tecnologias para tanto vão se desenvolvendo de maneira acelerada; o mercado [...], a higiene que fundamentava esses cuidados vai sendo substituída pelos prazeres do corpo; a implicação lógica do processo de secularização com a identificação da personalidade dos indivíduos com sua aparência. Por todas essas circunstâncias, o cuidado com o corpo transforma-se numa ditadura do corpo, um corpo que corresponde à expectativa desse tempo, um corpo que seja trabalhado arduamente e do qual os vestígios de naturalidade sejam eliminados. 231

Há cenas em que as crianças são filmadas de frente, mas apenas elas aparecem sós. Fora as belas e felizes crianças, e um take de um dançarino, ninguém, representa a solidão na tela. Em dois momentos distintos, os personagens, uma pré-adolescente e um homem adulto aparecem sozinhos, porém, acompanhados de animais. No caso da jovem, brincando com seu cão de estimação, e no caso do homem, os pombos que voam e “dançam” a canção feliz. Assim, uma primeira dedução que podemos ter é a de que um dos itens para fazer-se feliz, é não estar sozinho. A solidão é uma grande inimiga da felicidade, e esta noção não é recente, embora, na sociedade líquido-moderna, estar rodeado de amigos e familiares ainda seja uma forma recorrente de associação com a alegria, e, por conseguinte, com a felicidade.

No total, são apresentados cinco casais na história, todos heterossexuais, um deles de idosos. O amor aqui é representado como mais um item da felicidade. Visto que o número de casais que existem na narrativa, sem contar aquele implícito que compõe a família I, é maior do que o número de grupos de amigos e pessoas sozinhas em cena, já podemos ter uma pequena constatação quantitativa sobre a dimensão deste item. Lipovetsky explica que a questão do amor e da sexualidade foi contida, em outras eras históricas, por forças como códigos de honra e a moral religiosa, mas que na atualidade, a situação se reconfigura:

O que agora desempenha este papel é uma ordem cultural que valoriza os laços emocionais e sentimentais, a troca íntima entre Mim e Você, a proximidade comunicacional como outro. A relativa tranquilidade dos costumes sexuais hipermodernos não é um resíduo de puritanismo: ela se

231 SILVA, Ana Márcia. Corpo, Ciência e Mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo

alimenta do ideal secular do sentimento e da felicidade que se assimila à “felicidade a dois”. Numa sociedade que não cessa de prestar culto ao ideal amoroso e na qual á “verdadeira vida” está associada ao que se saboreia a dois, a relação estável e exclusiva constitui ainda um fim ideal. È assim que o valor reconhecido no amor e no sentimento, a busca de uma intimidade relacional, a necessidade de sentido intenso na vida e na relação com o outro trabalham, fora de todo princípio moral, para privilegiar o laço estável antes que a dispersão e a promiscuidade sexuais. 232

O amor e a felicidade nem sempre andaram de mãos dadas, mas na atualidade, a vivência do amor romântico tem uma afinidade direta com a ideia de felicidade. No caso do comercial, podemos perceber que este amor – sempre aqui visto como instrumento de felicidade – é representado, em primeiro lugar, pela heteronormatividade. Não apenas neste caso em particular, mas em toda a publicidade brasileira, que ainda ensaia pequenos passos neste tipo de representação, salvo nos raros e recentes casos da publicidade do Banco do Brasil e da construtora MaxHaus – vale ressaltar que os dois casos são para publicidade de revista e internet, jamais para um meio de tão amplo alcance como a TV. Naturalmente como um reflexo do conservadorismo religioso da sociedade brasileira, aqui a publicidade se mostra, mais uma vez, como uma mantenedora de padrões hegemônicos vigentes. Um recente exemplo deste conservadorismo pôde ser visto no ano de 2013, quando o deputado federal Salvador Zimbaldi (PDT/SP), decidiu alterar o texto que regulamenta a publicidade infantil. O Projeto de Lei de número 5921/2001233, em um texto substitutivo ao projeto original, afirma que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a

união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, o que exclui famílias

formadas por homossexuais ou monoparentais (mãe e filhos ou pai e filhos). Tal contrassenso é apenas mais um aspecto exemplificador daquilo que estamos falando aqui. O ideal de uma felicidade científica em que o grande motivador dos próprios sentimentos é o próprio self, contrasta claramente com as imposições sociais espelhadas na publicidade.

O casal idoso representaria uma espécie de felicidade apesar da idade, ou de uma felicidade encontrada ao final de uma odisseia da vida romântica. Os idosos se mostram em pleno vigor físico, primeiramente fazendo algo tipicamente infantil, como brincar no

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LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 246-47.

233 Atualmente aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

balanço, e depois numa posição que demonstra, acima de tudo, alegria e celebração do amor perene, com a dança a dois.

Os outros casais, jovens, encontram-se em situações descontraídas e em ambiente externo. Em dois casos, aparelhos sonoros podem ser vistos, no caso do casal I, que está no parque compartilhando fones de ouvidos e no caso do casal III, que por algum motivo está sentado ao lado de um aparelho Boombox. Estes aparelhos servem como base para dar certa credibilidade à cena, como uma transferência de sons. Eles estariam escutando a canção (jingle) leve e alegre, que também transformaria os seus dias. A música tem este poder de alterar o humor das pessoas, de alegrar os sentidos, pelo menos de acordo com a musicoterapia, que tem seus efeitos comprovados, e isso não é grande novidade, portanto, o uso destas referências quando pensamos na representação da felicidade sensorial, é mais que esperado. O casal III, ao longo da história, vai melhorando seu humor a partir de suas ações. Primeiro a dança, depois uma vista à beira do mar com uma bicicleta.

O casal III é jovem e representa o calor da paquera. Quando Clarice entona “quem quer felicidade corre atrás”, é este casal que aparece em cena, e o homem se aproxima da moça, como quem busca sua felicidade naquela paquera, que não tem nada de despretensiosa, pois representa a tomada de atitude diante desta procura pelo amor, passageiro ou não. O conceito de amor líquido é um termo cunhado por Bauman a partir de uma ideia de que na sociedade líquido-moderna o amor também é algo passageiro. Isso porque, segundo ele, na sociedade de consumidores, as pessoas, se tornando mercadoria, também aplicam esta lógica às relações amorosas.

Todas as formas de relacionamento íntimo atualmente em voga portam a mesma máscara de falsa felicidade que foi usada pelo amor conjugal e mais tarde pelo amor livre... Ao olharmos mais de perto e afastarmos a máscara, descobrimos anseios não realizados, nervos em frangalhos, amores frustrados, sofrimentosm medos, solidão, hipocrisia, egoísmo e compulsão à repetição... As performances substituíram o êxtase, o físico está por dentro, a metafísica, por fora... A abstinência, a monogamia e a promiscuidade estão todas igualmente distantes da livre vida da sensualidade que nenhum de nós conhece.234

Outro casal (II) pode ser visto como aquele que já está maduro, e, portanto, passa por dificuldades em seu relacionamento. Ora, mas se “a felicidade está debaixo do

234 SIGUSCH, Volkmar, apud BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços

nariz”, por que não simplesmente passar por cima dos desentendimentos e ficar feliz com seu parceiro? O amor completo, pleno, e que sobrevive a partir do ideal de que “você provoca os próprios sentimentos”, mais uma vez aparece.

No total, sete crianças aparecem no comercial. Apenas uma é negra. Três estão em família. As crianças da família II ajudam a cantar o jingle com a mãe, no carro. Outras imagens aleatórias mostram as crianças como parte imagética da narrativa, no caso da menina que faz cara de dúvida no momento em que Clarice pergunta “o que faz você feliz?”, e logo depois um menino aparece lambendo os dedos de chocolate, representando a irreverência e doçura infantil, outra menina dança e é pega de surpresa enquanto a última come um morango bem vermelho. Essas crianças representam a felicidade que estaria nas coisas simples, como numa fruta ou em lamber os dedos, as situações remetem às imagens da infância da protagonista do longa metragem de Jean- Pierre Jeunet, sensação cult do cinema francês, O fabuloso destino de Amélie Poulain, que é chamado por Lipovestky como uma exaltação dos prazeres minúsculos, portanto, podemos ver estas crianças justamente como o retrato de pequenos hedonismos cotidianos, ou uma felicidade que estaria nos detalhes.

As relações de amizade são representadas por dois grupos de amigas, apenas mulheres. Em ambas as situações, elas estão com traje de verão. Aqui percebemos que a diversão ainda é um ponto forte no que diz respeito à felicidade. Mesmo a “felicidade estando por dentro”, a recreação vinda externamente reaparece, e veja bem, não é um lazer individual, não há ninguém lendo um livro neste comercial, trata-se de um lazer coletivo. Lipovetsky acredita que vivemos numa era das comunidades e era dos

indivíduos. Isto porque segundo ele, não há como não sublinhar o novo fato de que a

própria inclusão comunitária é uma escolha, uma reivindicação, que é geralmente exibida como a forma de ser um eu, um vetor de identidade pessoal. O autor argumenta que:

Não [há] mais uma sujeição tradicional a um englobamento aceito e vivido como uma evidência, mas, ao contrário, um processo aceito de auto- identificação, a afirmação de uma liberdade subjetiva que se apropria de uma realidade coletiva. Assim, a referência comunitária tornou-se uma “tecnologia” do eu. O que se manifesta é menos uma realidade supra-singular

do que uma estratégia pessoal, uma instrumentalização do grupo com fins de valorização e de afirmação de si.235

Duas famílias são representadas. Uma delas, uma grande família, numa situação análoga ao almoço de domingo. Lipovetsky cita o lazer em grupo como parte desta

sagração das pequenas felicidades, ele acredita que se muitos lazeres são vividos em microgrupos ou implicam uma ambiência coletiva, não percamos de vista que o domicílio privado é que é lugar privilegiado dos lazeres e da descontração.236 Aqui, ele

se refere ao passatempo praticado dentro do ambiente confortável.

Uma infinidade de lazeres vai nesse sentido [dos prazeres minúsculos]. Excursões, clubes de férias, turismo cultural, fim de semana em casas de veraneio, passeios pela cidade, jogos de azar, bricolagem e jardinagem, atividades de forma e manutenção, fenômenos com certeza diferentes uns dos outros, mas sobre os quais o mínimo que se poder dizer é que oferecem o espetáculo dionisíaco transbordante. 237

Os dançarinos são uma característica à parte, Figueiredo238 afirma que um dos mais antigos princípios da publicidade é o seguinte: “se você não tem nada para dizer, então cante!” No caso, podemos aplicar para ideia de “então dance”. Claro que a dança, em seus aspectos antropológicos, vai muito além do que queremos explorar aqui. Mas com sua representação coreográfica, ela pretende remeter ao bom humor, à diversão. Representa também o lado alegórico da narrativa, pois a situação seria impossível na vida real.