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CONTEXTO HISTÓRICO DA EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

Neste capítulo, buscaremos contextualizar historicamente a Educação Popular em Saúde. Para tanto, teceremos considerações acerca da Educação Popular e, em seguida, abordamos a Educação Popular no âmbito da Saúde.

O referencial político-pedagógico da Educação Popular começa a ser delineado e consolidado na década de 1950, e suas raízes motivadoras estão ligadas à história de luta social, de resistência dos setores populares da América Latina, conjugando várias concepções. No Brasil, a Educação Popular se constitui, inicialmente, como um movimento libertário que trouxe uma perspectiva teórico- prática ancorada em princípios éticos potencializadores das relações humanas forjadas no ato de educar e mediadas pela solidariedade e pelo comprometimento com as classes populares. (BRASIL, 2013).

No campo da educação, como teoria do conhecimento, a Educação Popular foi constituída a partir de experiências entre intelectuais e as classes populares e desencadeou iniciativas de alfabetização de jovens e adultos que ganharam visibilidade na educação brasileira como alternativa para os modelos pedagógicos tradicionais, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Esses intelectuais buscavam constituir tecnologias educativas capazes de ensinar, mas também de despertar uma visão crítica do mundo, de modo a construir caminhos com alteridade e autonomia, na perspectiva da emancipação social, humana e material.

Inspiravam-se no humanismo cristão e no pensamento socialista, sendo orientado por várias metodologias educativas, as quais eram avaliadas, elaboradas e reelaboradas, buscando a construção de uma práxis. Muitas experiências se destacaram nessa época, a exemplo do Movimento de Cultura Popular (MCP) e do Movimento de Educação de Base (MEB), sendo esse criado pela igreja católica. Apresentava-se como uma proposta de educação problematizadora e libertadora, sinalizando para uma perspectiva de transformação social. Ela se apresenta como uma metodologia, uma ferramenta de apreensão, interpretação e intervenção propositiva de produção de novas relações sociais e humanas (CALADO, 2001).

Segundo Coelho (2002) o MCP foi ampliado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) para todo o território nacional, por meio dos Centros Populares de Cultura (CPC). Paulo Freire e outros professores da Universidade de Recife

qualificaram a sistematização da Educação Popular e promoveram diversas experiências no campo da alfabetização e da cultura popular. Essas experiências tinham o objetivo de envolver as pessoas, não somente em um processo educativo, mas também político, social, cultural e econômico. Essas experiências inovadoras marcaram a educação no Brasil na década de 1960, mas foram interrompidas pela ditadura militar.

Com o golpe militar em 1964, os movimentos sociais, sobretudo a Educação Popular, sofreu grande impacto, os intelectuais e políticos que compartilhavam de sua ideologia sofreram perseguição e foram exilados. Nesse período, a EP foi adquirindo sentido como modo de resistir ao regime militar. A partir de então, surgiram várias experiências educativas, tanto no Brasil, quanto na América Latina. Essas experiências possibilitaram a participação de movimentos populares e de grupos religiosos inspirados na Teologia da Libertação (VASCONCELOS, E; VASCONCELOS, M; OLIVEIRA, 2015).

No campo da saúde, o surgimento da EP ocorre principalmente, a partir da década de 1970, no contexto de falta de acesso aos serviços públicos, baixa inserção no mercado de trabalho, péssimas condições de moradia, renda e alimentação. Ao longo dos anos 1970 a Educação Popular foi se aprimorando, enquanto perspectiva ética, orientadora da educação e da ação política, cultural e social, tendo o papel de setores progressistas da Igreja função central nas formas democráticas de educação e de alternativas a repressão que ocorria em vários países da América Latina (BRASIL, 2013).

Na primeira metade da década de 1970, a prática de atenção à saúde se resumia quase que exclusivamente à Medicina privada, para os que podiam pagar; e nos hospitais da previdência social, para os trabalhadores que tinham carteira assinada, em ambas as situações desenvolvendo práticas de caráter basicamente curativas. As práticas preventivas e educativas em saúde se davam de forma isolada. As condições de saúde das classes pobres eram péssimas e não refletiam o crescimento econômico que o país apresentara nos últimos anos (PEDROSA, 2007). Alguns movimentos sociais se mobilizaram e resistiam à opressão política da época e a diminuição das liberdades civis, desencadeando uma mobilização política, fazendo emergir novos movimentos sociais. A partir daí, trabalhadores, intelectuais, movimentos sociais e lideranças começam a questionar o modelo de saúde

hegemônico da época, buscando formas alternativas de fazer valer a luta pelo direito à saúde (PAIM, 2006).

No final da década de 1970, a população buscava novas formas de se organizar e como não tinha um local para resistir e construir um novo modelo se aproximaram de setores combativos da ala da esquerda da Igreja Católica, ligados à teologia da libertação. Nessa época, a Igreja Católica por estar protegida em alguns aspectos da repressão veiculada pelo Estado, bem como pelas formulações de teóricos da teologia da libertação permitiu o encontro de pessoas com objetivos transformadores, possibilitando trocas de experiências em várias áreas. Nessa perspectiva, muitos profissionais, intelectuais e lideranças se engajaram em experiências de atenção à saúde que surgiam do meio popular, tornando o olhar cada vez mais crítico, inspirados nos conceitos de Educação Popular, sistematizados inicialmente por Paulo Freire, abrindo uma área de produção de conhecimento vinculados as suas práticas (VASCONCELOS, 2011a).

Na década de 1980, a EP foi se firmando como movimento de resistência e passou a ser incorporada em muitos trabalhos sociais de organizações não governamentais, por órgãos do governo, experiências em escolas, universidades, serviços de saúde e assistência social. Desse modo, a EP é percebida como uma perspectiva teórica orientada para a prática educativa e trabalho social emancipatórios, direcionados à promoção da autonomia das pessoas, à formação da consciência crítica, à cidadania participativa e à superação das desigualdades sociais (BRASIL, 2013).

Com a ampliação dos serviços de Atenção Primária à Saúde, criou-se institucionalmente espaços para a inserção de profissionais com experiências na organização de serviços de saúde, sobretudo, nos territórios periféricos, próximo das classes populares, criando mecanismos para romper com a lógica autoritária e normatizadora da educação em saúde, voltada, historicamente, para a imposição de normas e comportamentos considerados adequados pelas elites técnicas (VASCONCELOS, 1998).

A experiência de aproximação dos profissionais de saúde com os movimentos sociais possibilitou uma ação em saúde mais ativa, crítica e criativa. A criação do Movimento Popular de Saúde (MOPS) agregou militantes de muitas concepções ideológicas de esquerda e lideranças populares que lutavam por moradia, transporte

e outras questões que tiveram o importante papel de disseminar muitas experiências de trabalhos comunitários em saúde realizados nos movimentos. A partir das práticas comunitárias e das reflexões teóricas e acadêmicas foram surgindo às bases da Educação Popular em Saúde (EPS). As práticas, as vivências e os saberes que se contrapunham à exclusão social e à opressão imprimiam uma direcionalidade política às práticas da EPS para um projeto de sociedade em que a saúde se insira como um direito de cidadania e dever do Estado. Desse modo, os movimentos e coletivos promoviam reflexões, construindo conhecimentos e ações num processo de diálogo entre serviços, movimentos populares e espaços acadêmicos, para contribuir com a consolidação de um projeto de sociedade e de saúde mais justo e equânime (BRASIL, 2014).

É importante destacar que, na EPS, a ação pedagógica não é entendida apenas como um processo intelectual que valoriza unicamente o conhecimento. Ela vai mais além, na medida em que inclui, no processo pedagógico, a dimensão afetiva e social, influenciando mutuamente. À medida que assume a afetividade como diretriz de seu processo educativo, incorpora às suas práticas a subjetividade do saber, as inquietações, a espiritualidade e as emoções, que compreendem a totalidade do ser humano presente na ação educativa. Por meio da construção e da ampliação desse saber, pode-se construir uma sociedade melhor, mais humana e justa.

Posteriormente ocorre uma ampliação de serviços de saúde que incorporaram a Educação Popular, reorientando suas práticas, a partir da participação e do controle dos grupos comunitários, por meio de articulação com associações de moradores, sindicatos, grupos locais e religiosos, valorizando e aprofundando as trocas pessoais. A disseminação da EP nos serviços possibilitou a criação do movimento de Educação Popular e Saúde (EPS) que teve início nos primeiros anos da década de 1990, por ocasião do I Encontro Nacional de Educação Popular, onde surgiu a Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Em 1998 foi criada a Rede de Educação Popular e Saúde que aglutina trabalhadores de saúde, pesquisadores e lideranças de movimentos sociais de várias regiões do Brasil e da América Latina que apostam na centralidade da EP como diretriz na construção de uma sociedade mais participativa, com um sistema de saúde mais democrático e adequado às reais condições de vida da população. Vale destacar

que os profissionais de saúde que se aproximaram do movimento da EPS vem ocupando cada vez mais espaços importante de discussão das práticas de saúde e de gestão das políticas públicas (REDE DE EDUCAÇÃO POPULAR E SAÚDE, 2006).

Os atores que compõem essa Rede encaminharam ao Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma Carta na qual expressavam a intencionalidade política do movimento em participar do SUS. Evidenciava-se a Educação Popular em Saúde como prática necessária à integralidade do cuidado, à qualificação da participação e do controle social na saúde e às mudanças necessárias na formação dos profissionais da área. Em 2003, é instituída a Coordenação Geral de Ações Populares de Educação na Saúde na estrutura do Ministério da Saúde, integrando a nova Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES). Essa Coordenação tinha como finalidade o fortalecimento e a qualificação do controle social na saúde e o diálogo com os movimentos populares na perspectiva de ampliar a esfera pública de participação da sociedade civil, buscando também inserir o referencial da EPS na formação profissional da área da saúde (BRASIL, 2013).

Em seguida foi constituída a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS) como ação estratégica implementada naquele momento, promovendo uma interlocução entre os movimentos sociais e a gestão do sistema aglutinando iniciativas e atores em redes solidárias que se articulavam na luta por saúde. Esse movimento favoreceu a constituição da Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP) direcionada aos processos de formação universitária, notadamente da política de extensão universitária (CRUZ, 2006).

A EPS atualmente ultrapassa a necessidade de mudança na relação entre profissionais e a população, busca transformar, também, as relações entre serviços de saúde e a população, por meio do fortalecimento dos sujeitos, da equidade e de um fazer crítico e reflexivo, contribuindo de modo significativo no delineamento de princípios éticos orientadores de novas posturas no cuidado, na gestão, na formação e na participação social em saúde. Em 2005, com a mudança na gestão federal, a EPS foi se constituindo como elemento significativo da Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS (participa SUS), que teve como desdobramentos ações de fortalecimento do processo instituinte da EPS e contou, inclusive, com o

repasse de recursos para apoiar as gestões estaduais de saúde, ampliar e qualificar a participação social no SUS. Em 2009, a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa criou o Comitê Nacional de Educação Popular em Saúde (CNEPS) com o objetivo de qualificar e acompanhar o processo dessa política no contexto do SUS (BRASIL, 2014).

Nesses últimos anos a EPS vivenciou um processo amplo de institucionalização que provocou muitas ações, respaldando a importância que as práticas de EPS possuem na gestão e no cuidado integral em saúde. Esse processo foi determinante para a construção das bases políticas para à sistematização e formulação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS (PNEP- SUS). Vale destacar que esse contexto teve como espaço estratégico o papel desempenhado das Tendas de Educação Popular em Saúde ou das Tendas Paulo Freire como tem sido denominadas, contribuindo para a incorporação do referencial da EPS na construção do saber em saúde, resgatando a participação popular e o diálogo nos eventos em saúde, inaugurando um novo jeito de fazer na realização de conferências, congressos e seminários na área da saúde (BRASIL, 2014).

Em 2012, o Ministério da Saúde por meio da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP/MS) apresentou a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEP– SUS), reafirmando os princípios do SUS e o compromisso com a garantia do direito à saúde mediante à implementação de políticas que contribuam para a melhoria da qualidade de vida e diminuição das desigualdades sociais, alicerçadas na ampliação da democracia participativa no setor saúde. Considerando ainda seu histórico de experiências, reflexões e conhecimentos, a Educação Popular em Saúde apresenta-se como um caminho capaz de contribuir com metodologias, tecnologias e saberes para a constituição de novos sentidos e práticas no âmbito do SUS (BRASIL, 2013).

As diretrizes da PNEP-SUS contemplam dimensões políticas, éticas, metodológicas e filosóficas que dão significado à práxis da EPS. De modo que o diálogo, amorosidade, problematização, construção compartilhada do conhecimento, emancipação, compromisso com a construção do projeto democrático e popular são dimensões articuladas de um processo integral e único. Esse breve resgate demonstra que para além da produção e reflexão acadêmica no campo da Educação Popular em Saúde, esses coletivos vêm desenvolvendo grande militância

política e social, capazes de constituir redes de articulação bastante influentes, criando novas maneiras de compreender e de realizar processos educativos em saúde.

É fato que os atores do campo da EPS vêm construindo processos instituintes em muitos espaços do sistema, seja nos serviços, nas instituições de ensino e, até, em experiências em gestões municipais. Neles, a EPS se organiza construindo diálogos com espaços da sociedade e conquistando os aparelhos privados de hegemonia ou contra-hegemonia. É nova, por outro lado, a iniciativa de incorporar a EPS, com seus princípios e práticas, como política pública em nível nacional e inserção transversal em várias outras políticas, especialmente na atenção, na gestão, na formação e na participação popular (BONETTI; ODEH, CARNEIRO, 2014).

A seguir, apresentaremos aspectos relacionado a Educação Popular e sua contribuição para a formação universitária em saúde.

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