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1 UM CONTEXTO PARA COMPREENSÃO DO ENSINO E DA

1.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DO PÓS-GUERRA

A formação de professores é um processo histórico que se entrelaça às demandas e aos anseios da sociedade geral. Para compreender como o processo se realiza no Brasil, é preciso imergir em uma reflexão que considera nosso passado global. O pós-guerra, certamente, foi um momento gerador de muitas reflexões acerca da maneira como existimos e nos relacionamos no mundo e que influenciou a maneira como a ciência é percebida, ensinada e praticada ao longo da História.

Diante dos horrores causados pela Segunda Grande Guerra (1939-1945), os anos que seguiram o seu fim trouxeram consigo um estado de insatisfação generalizado. Havia constrangimento com as condições de miséria em que muitas pessoas viviam, com os impactos ambientais recorrentes, com o sistema econômico dominante, com as políticas de governo adotadas em diversos países, com a produção e o uso do conhecimento científico no contexto bélico, com as oportunidades de um processo educativo que primasse pela formação de seres mais humanizados e, sobretudo, pela vontade de um mundo melhor (HOBSBAWM, 1995).

Ainda sobre a Segunda Guerra, afirma o autor que a humanidade não havia experimentado, até aquele momento, tamanho horror. Foram 60 milhões de mortos, a maioria civis, em meio ao caos e à miséria na Europa, mais vinte e cinco (25) milhões de mortos na União Soviética somados a vinte cinco (25) milhões de desabrigados e expressivos danos em parques industriais e terras cultiváveis (HOBSBAWM, 1995).

Pode-se dizer que, até então, a humanidade jamais havia observado o poder de destruição da ciência e da tecnologia criadas, bem como a fragilidade de sua condição humana diante das relações sociais

que se haviam estabelecido. As cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, sofreram, talvez, as mais terríveis provas da incompatibilidade entre qualidade de vida e progresso científico e tecnológico quando as explosões atômicas as devastaram. A China também teve seus parques industriais transformados em ruínas e as terras férteis inundadas. O mundo estava parcialmente destruído e a humanidade perplexa.

[...] Ao final do conflito, diante das pilhas de corpos esquálidos nos campos de concentração nazistas, das cidades totalmente arrasadas por bombardeios que duraram noites inteiras, semanas a fio, e da imagem aterradora daqueles cogumelos atômicos sobre o Japão, ninguém mais duvidaria de quanta degradação humana, dor, morte e destruição os regimes políticos, os exércitos e suas tecnologias bélicas seriam capazes de realizar (PIRES-ALVES; PAIVA; FALLEIROS, 2010, p. 153).

Quando a guerra chegou ao final, os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética (URSS) detinham a maioria dos benefícios bélicos, econômicos e diplomáticos. Os EUA, em especial, obtiveram no pós-guerra um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e salarial como ainda não experimentara antes. A “tensão” que seguiu entre os dois países favorecidos com a guerra nos anos posteriores a ela chamaram atenção para o poder do conhecimento científico e tecnológico nas relações políticas e econômicas no mundo globalizado. Em realidade,

O esforço da guerra havia suscitado o desenvolvimento de uma profusão de novas aplicações do conhecimento científico, aquisições potencialmente revolucionárias no terreno da energia, dos transportes, das comunicações, dos processamentos de dados e vários outros domínios. Era então crescente a confiança de que, mediante o uso cada vez mais intensivo de ciência e tecnologia, a humanidade estava se habilitando a finalmente dominar a natureza, a produzir riquezas em níveis sempre crescentes e a distribuí- las, de forma a eliminar iniquidades. Na saúde e na medicina, o surgimento da penicilina e de inseticidas como o Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT), entre várias outras novidades, sugeria que

o sofrimento físico das populações poderia ser em muito amenizado, e que doenças tenderiam a ser erradicadas (PIRES-ALVES; PAIVA; FALLEIROS, 2010, p. 153).

Parece de fato um contrassenso que o período em que a ciência mais se desenvolveu seja o mesmo em que o mundo presenciou os piores resultados dos constructos humanos. Esse horror engendrou reflexões acerca da “sombra” que acompanhava os processos tecnocientíficos e as frágeis relações entre seres humanos. Tal situação perturbadora obviamente levou em consideração as necessidades substantivas que poderiam encaminhar o mundo para um real processo de desenvolvimento. Afinal,

Mais da metade da população do planeta vive [vivia] em condições próximas da miséria. [...] Pela primeira vez na história, a humanidade possui os conhecimentos e técnicas para mitigar o sofrimento destas pessoas [...] Eu acredito que nós devemos tornar disponíveis para os povos amantes da paz os benefícios do nosso acervo de conhecimentos técnicos de modo a auxiliá-los a realizar suas aspirações por uma vida melhor [...] Uma maior produção é a chave para a prosperidade e a paz. A chave para uma maior produção é a ampla e vigorosa aplicação do conhecimento científico e tecnológico moderno (TRUMAN, 1949, p. 2).

Nesse contexto, surgiram propostas de “desenvolvimento” que reconstruiriam nações durante o pós-guerra. Dentre os principais objetivos das propostas, estavam os seguintes: crescimento econômico, possibilidades de emprego e renda para comunidade geral, acesso à educação para o crescimento científico e tecnológico dos países e a garantia da paz nos anos seguintes. Entretanto, a edificação de relações humanas e políticas pautadas na ética não estavam em foco.

Talvez este “erro” recorrente nos bastidores de nossa história, o fato de a qualidade de vida e desenvolvimento estar sempre debaixo do progresso econômico, científico e tecnológico, seja a causa das inúmeras situações de horror vivenciadas no mundo contemporâneo. Freire (2014) destaca que os acontecimentos históricos, vindos de gerações passadas, revelam-se, na atualidade, por meio de preconceitos e ideologias

expressos por grupos ou classes, os quais, muitas vezes, precisam ser repensados.

O modelo de desenvolvimento erguido no pós-guerra, por exemplo, imprime que o entendimento trazido pelo conhecimento científico puro em si mesmo, sem relação com as humanidades, junto à ideia de que ele é, aparentemente, o que leva uma nação a progredir, tem nos impedido, até hoje, de avançar socialmente, inclusive no interior da formação de professores. Notadamente, isso ocorre pelo fomento de uma visão cientificista extremada que já, no passado, não trouxe, do ponto de vista sociológico, os benefícios esperados, tal como uma melhor qualidade de vida para todos (VEIGA, 2008).

Em realidade, no decorrer da história, foi-se construindo uma imagem de ciência como se ela fosse uma instituição a-humana, que fala por si e sem relações com as pessoas de vida comum. Essa quimera convenceu a sociedade de que, por meio da ciência, pode-se alcançar a resolução de problemas que os sujeitos/cidadãos comuns não conseguem, realçando a autoridade científica, ao mesmo tempo em que elimina o acesso dos sujeitos a ela.

A crença no desenvolvimento social pautada no avanço científico e tecnológico dos países de que, supostamente, trariam progresso econômico e soluções para as mazelas da sociedade, terminou por desconsiderar a própria dimensão humana desse processo. Auler e Delizoicov (2001; 2002) argumentam que isso está relacionado a três mitos socialmente construídos, são eles: 1) superioridade do modelo de decisões tecnocráticas; 2) perspectiva salvacionista da CT; e 3) o determinismo tecnológico.

Em resumo, os três mitos propalam que o alcance de soluções para os problemas da humanidade vem por meio de cientistas e técnicos, visto que eles possuem reais condições de proporem soluções cientificamente plausíveis e, portanto, as únicas que devem ser consideradas, além da ideia de que a ciência e seus produtos (tecnologias) são gerados sempre para trazer o bem para toda a sociedade. Certamente, tais linhas de raciocínio influenciaram a maneira como a sociedade se organizou e se desenvolveu desde aquele tempo (AULER; DELIZOICOV, 2002).

De certo modo, essas ideias significam uma noção bastante ingênua da realidade, da ciência e do mundo, as quais continuam a circular hoje, inclusive nas escolas e cursos de formação de professores de ciências e terminam por causar desinteresse por temas científicos, políticos e/ou controversos que exijam um pouco mais de compreensão dos conhecimentos de ciências, mesmo que estes interfiram em seu

cotidiano. Isso torna as palavras cidadania, democracia e autonomia termos de difícil significação no contexto em que se vive.

Ao analisar o contexto histórico, merece destaque, na década de 1964, o fato de o Brasil ser surpreendido pelo golpe instaurador da ditadura militar no país (1964-1985) que colaborou, de certa maneira, com a propagação de racionalidade técnica nas escolas brasileiras, posto que qualquer sujeito com pensamentos considerados “subversivos” era silenciado pelo governo.

Nesse pensar, o professor era respeitado quase exclusivamente pelo conhecimento que detinha sobre sua disciplina. A valorização do profissional ocorria a partir do seu “domínio” dos conteúdos e de seu “domínio” de classe para encucar verdades que se mostravam resultantes para o desenvolvimento do país (NUNES, 2001).

É destaque, durante o governo dos militares no Brasil, o exílio de vários pensadores, políticos e professores do país. Dentre estes, o do professor/educador Paulo Freire, em 1964, para a Bolívia, em virtude do trabalho e das discussões que realizava no âmbito da educação de Jovens e Adultos – EJA. Seu filho, Lutgardes Costa Freire, ao falar sobre esse momento relata o seguinte:

Foram eles (Paulo freire e Elza- sua esposa) que deram os primeiros passos na alfabetização de adultos. Começaram a utilizar o que mais tarde seria chamado de método Paulo Freire [...]. Essa metodologia dispensava cartilhas e priorizava o universo vocabular de cada região. Priorizava também a discussão com os educandos de forma dialógica, a relação entre natureza e cultura. Essa discussão, por sua vez, levava os educandos a perceberem que também faziam cultura. Percebiam através de seu próprio universo vocabular que eram sujeitos de sua própria história e que, portanto, faziam história. [...] Tudo isso acontecia no início dos anos 60 quando o Brasil passava por uma fase que se dividia na necessidade de um desenvolvimento crescente, e por outro lado forças conservadoras também a favor da industrialização, mas não para o Benefício de todos. Paulo Freire surge nesse cenário como um intelectual e educador [...] Incomodava porque o seu método aumentaria o eleitorado brasileiro [...] e forças conservadoras perderiam seu espaço político. Incomodava porque o método, a campanha de alfabetização

dentro do governo Goulart, seria um impulso para democracia no país [...].

Freire percorreu países como Chile, Estados Unidos e Suíça durante os vinte anos de exílio e publicou obras importantes nos cenários nacional e internacional, como por exemplo, a Pedagogia do

Oprimido (2014) e Educação como prática da Liberdade (1999).

Em realidade, os acontecimentos do pós-guerra e a forma como a ciência foi concebida durante esse tempo tiveram ainda outros desdobramentos em virtude do momento político-econômico vivenciado no Brasil. O capitalismo dominou assentado sobre a ciência e a tecnologia segundo a modernidade e as ditaduras governamentais que alcançaram países como Brasil, Chile, Argentina, Uruguai e Equador. Nos anos de 1960, houve crescimento econômico nos países de terceiro mundo (dentre eles o Brasil), bem como o aumento do consumo, dos preços, dos desastres ambientais e de um estado de insatisfação com a forma de “desenvolver” adotada, que cada vez mais evidenciava desigualdades sociais.

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