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A virada da década de 60 para 70 se mostra como um momento marcante para a história mundial, tanto cultural como artisticamente. Trata-se de uma fase aberta para experiências em todos os campos, assinalada pela ruptura entre o autoritarismo do regime militar e a postura inconformada dos produtores culturais e da militância estudantil. Vozes de protesto foram levantadas através da música, do teatro, do cinema, da literatura e das artes plásticas. Na música, o tropicalismo dimensionava a problemática social ao contexto latino-americano, nos palcos, Opinião, Arena conta Zumbi, Barrela e Roda Viva expunham as mazelas da realidade brasileira. O Cinema Novo redefinia sua poética, e cada diretor, à sua maneira, transmitia os sintomas de um país em crise.

No Brasil, este período foi marcado pelo grande abismo entre a arte engajada, proposta por organismos como o Centro Popular de Cultura (CPC), e as vanguardas experimentais, que encontravam representantes vigorosos em todas as manifestações artísticas. Embora localizadas em lados opostos, na forma de abordagem ideológica, as duas vertentes acreditavam no potencial revolucionário da arte.

O Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, criado em 1961, no Rio de Janeiro, ligado à União Nacional de Estudantes - UNE, reúne artistas de distintas procedências: teatro, música, cinema, literatura, artes plásticas etc. O eixo do projeto do CPC se define como tentativa de construção de uma "cultura nacional, popular e democrática", por meio da conscientização das classes populares. A ideia norteadora do projeto diz respeito à noção de "arte popular revolucionária", concebida como instrumento privilegiado da revolução social.

Já no primeiro parágrafo do documento, afirma-se a necessidade desse compromisso social e político do artista “Antes de ser um artista, o artista é um homem existindo em meio aos seus semelhantes e participando, como um a mais, das limitações e dos ideais comuns, das responsabilidades e dos esforços comuns, das derrotas e das conquistas comuns”. O CPC assumia o papel de exterminador da arte alienada.

Por outro lado, artistas buscavam a experimentação e a arte participativa, como uma forma de quebrar com a relação tradicional obra-espectador, experimentando as potencialidades do sensorial, entre eles, Ligya Clark, Ligia Pape, e destacadamente Hélio Oiticica, cujas experimentações culminam no penetrável Tropicália, de 1967. Nesta obra, determina sua posição crítica, envolta de radicalidade e lucidez. Ele ousa ‘experimentar o experimental’ e criar uma vanguarda genuinamente brasileira. Trata-se de uma obra participativa que conjuga experimentalismo e crítica. A essa obra de Oiticica são atribuídos, por alguns, a inspiração e o batismo do movimento tropicalista. Nas palavras do próprio Oiticica:

Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formulação do Parangolé, em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e conseqüentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc (1964, p. 1).

Programas, manifestos, intervenções e obras formam uma extensa atividade artística que, através da experimentação, manifesta o desejo de transformação social. Diante desse momento histórico brasileiro, se coloca como necessidade articular a produção cultural em termos de inconformismo e desmistificação, e vincular a experimentação de linguagens às possibilidades de uma arte participante, reagir à repressão política e cultural.

Foi nesse contexto que despontou no Brasil um de seus movimentos culturais mais importantes: a Tropicália. Influenciado pelas ideias modernistas lançadas na semana de 1922, em especial a antropofagia de Oswald de Andrade, bem como pelo contexto pop ligado ao consumismo e à cultura de massa.

Tanto os modernistas de 1922 como a geração das décadas de 60 e 70 buscaram na antropofagia uma forma de romper com os cânones da arte panfletária nacionalista que imperavam nesses períodos. Esses dois momentos apesar de dialogarem, diferem no que diz respeito ao contexto histórico e cultural de suas respectivas épocas. Os autores experimentais da década de 60 buscavam debater, além de nuances culturais, importantes questões políticas. Buscava-se uma (re)descoberta do Brasil, o retorno às origens nacionais, em meio a problemas como a internacionalização da cultura, a dependência econômica, o consumo. De

um lado havia o desejo de ruptura com a tradição, e de outro, a re-invenção crítica e cultural dessa mesma tradição.

No ano de 1968 os tropicalistas lançaram um disco manifesto – Tropicália ou Panis et

Circensis – que se fundamentava na paródia, no uso das alegorias, na desconstrução dos

discursos fechados da direita e da esquerda. Tentavam a retomada da tradição das vanguardas literárias brasileiras, sobretudo a antropofagia oswaldiana, o concretismo paulista e as conquistas da Bossa Nova, filtradas numa estética pop. O tropicalismo baseou-se em várias fontes: na formação literária dos neoconcretistas e nas obras de Carlos Drumond de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, entre outros. Também se inspirou nos ritmos regionais, nas manifestações folclóricas, na música urbana, nos Beatles, em Bob Dylan, no jazz, na Bossa Nova e música de vanguarda (Movimento de Música Nova); na obra da artista plástica Lígia Clark e na pop-art. Essas fontes funcionaram como informações e argumentos que legitimavam o projeto que os tropicalistas vinham delineando (CONTIER, 2003, p. 141).

O Manifesto Antropofágico de 1928 foi a resposta do escritor Oswald de Andrade às questões levantadas durante a Semana de Arte Moderna de 1922. Para ele, a renovação da arte brasileira nasceria da retomada dos valores indígenas. Oswald retoma essa temática, rejeitando, porém, a xenofobia de outros modernistas. A civilização europeia não deveria ser rejeitada, mas absorvida e superada. A antropofagia é o símbolo dessa tese: o europeu deve ser devorado, deglutido. Oswald de Andrade contrapõe a cultura fundada na autoridade paterna, na propriedade privada e no Estado à cultura antropofágica, correspondente à sociedade matriarcal e sem classes, que deverá ressurgir com o progresso tecnológico, devolvendo ao homem a liberdade primitiva.

Os tropicalistas utilizam o conceito de antropofagia de Oswald de Andrade como proposta cultural, integrando, paralelamente, procedimentos de vanguarda. O simbólico da devoração é, na verdade, utilizado como estratégia para alcançar seu objetivo: uma revisão cultural em oposição às correntes nacionalistas e populistas. “Ver com olhos livres” – a máxima modernista oswaldiana, era retomada pelos tropicalistas.

Porém, não se tratava de se basear na música regional, mas na procura de uma nova maneira que incluísse o Brasil de norte a sul. Com isso, assumir os Beatles não excluía Vicente Celestino, nem a Bossa Nova ou a música de vanguarda e o iê-iê-iê. Todos esses elementos são deglutidos pelos ritmos locais brasileiros. Dessa forma, tradições que pareciam incompatíveis formam um conjunto fragmentado, mas com diversas combinações entre si. No

caldeirão antropofágico tudo remete a tudo, produzindo-se uma relativização alegre dos valores em conflito e uma degradação contínua da informação (FAVARETO, 1996, p. 99).

O tropicalismo cumpriu, assim, um papel carnavalizador no âmbito da nossa cultura, tendo sido simultaneamente debochado, crítico, restaurador e prospectivo. Todas essas relações são misturadas no mesmo sentido de devoração da antropofagia de Oswald de Andrade. O tropicalismo também tenta se reapropriar do realismo grotesco das festas carnavalescas presentes no folclore, no circo, na piada, na gíria, nos chavões. O interesse pelo programa do Abelardo Barbosa, o Chacrinha, não era casual, porque o conceito do programa era o de um circo, de um parque de diversões, de um carnaval de rua. Dessa forma, os tropicalistas enfatizavam o cafonismo e o humor, contribuindo para o impacto das construções paródico-alegóricas.

Diante desse contexto cultural no qual o país estava inserido, o cinema brasileiro se abre para a denúncia e para a crítica. Observam-se representações alegóricas da história nacional e do desenvolvimento da sociedade contemporânea por jovens diretores que transformaram profundamente a cultura cinematográfica brasileira. É o período de cinema de autor no Brasil, no qual se relacionavam política e cultura como nunca antes – criando-se alternativas para a estética mainstream. Tem-se em Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, um símbolo crítico do cinema, frente ao momento cultural e social brasileiro. Em 1968, por sua vez, surge um ‘filme-intruso’ no espectro cinematográfico brasileiro: O Bandido da Luz Vermelha, que chegava às salas de cinema, atiçando ainda mais o meio cultural. Um longa-metragem ousado, de um diretor jovem, que desafiava a estética cinematográfica então em voga no país (a estética cinema-novista) e, ancorado no ‘deboche’, desfechava uma virulenta crítica estética e sociopolítica à sociedade brasileira.

Ideologicamente, o cinema autoral brasileiro abraçou a retomada dos princípios modernistas de Oswald de Andrade, principalmente pela possibilidade de dialogar plenamente com outras linguagens e com os cinemas que se redescobriam nos demais países. Sganzerla mergulhou fundo no cinema de Godard e Welles, para devorá-los antropofagicamente e assumir essas influências plenamente em O bandido da luz vermelha, marco do Cinema Marginal.

Esse movimento influenciou todos os setores artísticos do país. Muito das características estéticas da Tropicália são observadas nas manifestações experimentais estudadas neste trabalho, tanto no filme de Sganzerla, O bandido da luz vermelha, como nas Cosmococas, de

Hélio Oiticica e Neville D’Almeida. Ousa-se dizer, duas das mais fortes representações do experimentalismo cinematográfico brasileiro.

3.2. – Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha, avacalha e se

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