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3. O futuro de Portugal, entre a Europa e a Lusofonia

3.1. A Europa

3.1.3. O continente da Grande Cultura

“O espírito da Europa,” diz Real, “mais do que o do continente do útil, do interesse, do definitivo feito e cristalizado, do sedentarismo, identifica-se com o que de mais volúvel, instável, inconstante, imaterial, aéreo, espiritual, inútil e transcendente existe – a cultura.” (Real, 2012: 41). Com efeito, ele defende que “a Europa é o continente da cultura” (ibidem), da Grande Cultura, isto é, na formulação de Eduardo Loureço, da

36 Talvez o debate europeu sobre a imigração tivesse a ganhar com a inserção deste aspeto pertinente à discussão. Com exceção da crise dos refugiados, que é uma questão de um plano humano diferente, com uma urgência que não permite, para já, considerá-la exclusivamente sob o ponto de vista cultural.

cultura como “domínio autónomo” (Lourenço, 1988: 158), e é este o facto mais importante que distingue o continente europeu dos restantes, pois foi a Grande Cultura “que fez do animal bípede hominídeo um verdadeiro e legítimo homem, isto é, que transfigurou a espécie humana biológica em Humanidade, recortando-a, não de atavios circunstanciais, temporais e geográficos, como aconteceu com a cultura dos restantes continentes, mas da face eterna do pensar e fazer humanos.” (Real, 2012: 42). Dito de outra forma, foi a Europa que transformou o animal homem no homem humano (cf. ibidem). De resto, apesar da Europa ser o continente da Grande Cultura, isto não faz com que esta seja exclusiva da Europa, sendo antes vista como uma dádiva europeia à Humanidade. A Grande Cultura é o garante da universalidade do homem (cf.

ibidem).

Mas o que é a Grande Cultura? Para Miguel Real, a Grande Cultura

é aquela que dispensa o âmago das certezas cristalizadas da religião, qualquer religião, sem abandonar a experiência iniludível e fantástica do sagrado – e só a Europa do século XX, depois de Nietzsche, Marx, Dostoievsky e Freud, cometeu a arte do supremo nomadismo mental que consistiu na destruição da religião cristã sem a substituir por novo conjunto de dogmas, vogando indeterminadamente no indefinido, no incerto sem norte nem bússola orientadora, substituindo a apoditicidade de Deus pela experiência sagrada individual da arte (a poesia, a música), do conhecimento (a ciência), da inevitável inquirição sem quê nem porquê (o ensaio e a filosofia). (idem: 42-3).

Real vê, assim, a substituição da religião pela arte, ciência e inquirição intelectual, isto é, aquilo que poderíamos designar como um movimento de secularização da vida em sociedade, como algo muito positivo, fazendo do continente europeu um continente excecional quando comparado com os outros. “Desde que se despiu da batina da teologia,” continua ele, “a Europa estatui-se como o continente da eterna viagem errante, conhecedora do ponto de partida, mas desconhecedora tanto do itinerário futuro quanto do ponto de chegada. É esta a grande, grande virtude da Europa.” (idem: 43)

Algumas reservas poderão ser levantadas acerca desta visão positiva advogada por Real. Afinal de contas, a juntar a tudo isto, a Europa também teve colonialismos, guerras, totalitarismos, etc. Mas, tal como fomos referindo, a visão de Miguel Real não é unidimensional. Para ele, guerras, por um lado, e Carta dos Direitos do Homem, por outro, fazem parte da mesma Europa, definem-na, uma Europa que, mais do que boa ou má, foi sempre humana: “Nem anjo branco nem anjo negro, nem deus nem demónio, o europeu tem

sido exclusivamente Homem, homem de uma humanidade humana, nem divina nem bestífera.” (ibidem). E

humanidade do homem se elevou tão alto quanto na Europa, o genuíno e autêntico continente da única forma mentis que abarca a totalidade da humanidade – o Humanismo, pensamento que abarca simultaneamente o Belo e o Horrível, o Bem e o Mal, a Justiça e a Injustiça, a Magnanimidade e a Avareza, a Paz e a Guerra, a Generosidade e a Ganância.” (idem: 43-44).

Se calhar nunca como hoje foi tão urgente que a Europa assuma novamente o seu papel de estrela que indica o caminho. Tal como diz George Steiner,

[n]um mundo actualmente nas garras do fundamentalismo assassino – seja ele o do Sul e Centro Americanos, ou seja o do Islão –, a Europa ocidental pode ter o privilégio imperativo de produzir, de pôr em prática, um humanismo secular. Se conseguir libertar-se da sua própria herança negra, confrontando-a sem receios, a Europa de Montaigne e Erasmo, de Voltaire e Immanuel Kant pode, uma vez mais, indicar o caminho a seguir. (Steiner, 2004: 52).

A Europa deve, no entanto, pôr de lado a ideia de que poderá rivalizar em termos económicos, tecnológicos ou militares com os EUA, ou mesmo com as potências emergentes, tal como a China, e concentrar esforços na vertente espiritual e intelectual (cf. idem: 53), pois foi isto o que a Europa de melhor deu ao mundo e é isto o que de melhor a Europa poderá dar ao mundo. Nunca o humano é tão digno como quando busca o saber, o conhecimento desinteressado e a beleza (cf. ibidem). Tal como salienta Steiner: “Fazer dinheiro e inundar as nossas vidas de bens materiais cada vez mais trivializados é uma paixão profundamente vulgar e inane.” (ibidem). E o pensador franco-americano acrescenta: “Não é a censura política que mata: é o despotismo do mercado de massas e as recompensas do estrelato comercializado.” (idem: 54). E, de facto, parecemos estar a entrar numa era em que se torna cada vez mais óbvia a impossibilidade de o capitalismo se reformar. Num artigo publicado na ressaca dos Ataques de Paris, em 13 de novembro de 2015, o filósofo esloveno Slavoj Žižek defende mesmo que o capitalismo já não necessita dos valores culturais ocidentais, citando o caráter intrinsecamente próteo do capitalismo, que se consegue adaptar às mais diferentes culturas, religiões ou tradições,37 uma posição que surge inequivocamente validada através do capitalismo de «valores

asiáticos» atualmente praticado na China e que, de resto, é explorada por Real, sendo disso bom exemplo o seu romance O Último Europeu (Real, 2015a).