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A CONTINUIDADE DA CAMPANHA E A FUNDAÇÃO DO ACAMPAMENTO DO BAIRRO DAS Q UINTAS

CAPÍTULO 3: A CAMPANHA “DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM SE APRENDE A LER”: DOS COMITÊS

3.4. A CONTINUIDADE DA CAMPANHA E A FUNDAÇÃO DO ACAMPAMENTO DO BAIRRO DAS Q UINTAS

Rua dos Pêgas, São Geraldo, 25 de março, Mascarenhas, rua Salete e tantas outras... Em 01 de setembro de 2017, esses lugares de memória (NORA, 1993), que marcaram nossa infância e adolescência, se encheram ainda mais de vida e celebraram junto à população ali residente o aniversário de 300 anos do bairro das Quintas, bem no meio da cidade do Natal.

Fonte: <http://www.dhnet.org.br>. Acesso em: 20 fev. 2018. Figura 6 – Panfleto com propaganda da Campanha

Com desfile cívico, banda marcial e inúmeros alunos da Escola Municipal Ferreira Itajubá e de outras que se espalham pelo atual bairro, o povo celebrou esses centenários de história daquele lugar, tantas vezes esquecido pelo poder público, mas que nem por isso deixa de celebrar a vida em seu cotidiano, tampouco em dia de festa.

Embora naquela ocasião, que contou com a presença de autoridades, do prefeito da cidade e de outras figuras públicas, se comemorasse os 300 anos do bairro, na realidade, as Quintas enquanto espaço urbano é bem mais recente, datando de 1947 a sua definição enquanto bairro (CASTRO apud NATAL, 2009, p. 5). Tal aniversário, entretanto, se refere ao início da habitação daquela região, doada a Antônio Gama Luna, em 1717. O espaço ficou conhecido pelo nome Quintas, devido à tradição portuguesa, conforme nos esclarece Cascudo (1999, p. 255, grifos do autor):

Quintas ou quinta eram casas de campo com terreno de plantio, o mesmo que granja. Dizia-se em Portugal de outrora quinta porque os rendeiros pagavam aos proprietários a quinta parte das colheitas ou seu valor em moeda. Os portugueses modernos têm-na como fazenda de campo com sua casaria. Nós recebemos o nome mas não tivemos o processo foreiro.

Da origem lusitana, restou-nos o nome. E, em meados do século XX, aquela antiga região de fazendas tornou-se um bairro periférico, notadamente, era a continuidade do bairro do Alecrim, de conhecida moradia de operários, pessoas humildes, artesãos e pequenos comerciantes. Entre os anos 1940 e 1950, as Quintas foi pouco a pouco se urbanizando e ampliando seu número de habitantes, embora a maior parte das ruas ainda fossem de barro e as casas distantes umas das outras, no limite entre o urbano e o rural.

As fotografias de nossa família, datadas de fins dos anos 1940 e início dos anos 1950, nos auxiliam a perceber as características do bairro àquela época. Uma vez questionada sobre o considerável número de pessoas presentes em suas fotografias, que era maior do que a já grande quantidade de filhos que possuía, nossa bisavó Nair Maciel de Medeiros62 nos narrou que a maior parte da população

ali residente era tão pobre que sequer podiam pagar por um retrato, daí porque,

quando seu esposo63 encomendava um registro fotográfico, muitos moradores

pediam para colocar seus filhos para, como ela dizia, “[...] sair no retrato” e assim ter algum registro de sua imagem. Essa narrativa, somada às imagens, nos faz perceber a condição social de boa parte dos moradores do bairro.

Fonte: Acervo da autora.

Em contrapartida à pobreza ali existente, também havia princípios de um comércio e a busca pela distinção social através da imagem. Não raro, vemos nosso bisavô, nossa bisavó e seus respectivos filhos, todos calçados e em frente à casa ou ao carro da família, que naquelas circunstâncias representavam algum status social, diante da contrastante rua de barro e inúmeras crianças descalças64, que aparecem

em outros registros, como na fotografia acima.

63 João Maciel de Medeiros, à época dono de uma torrefação de café ao lado de sua casa na rua Salete, 319. Diferente da maior parte da população do bairro, ele possuía, naquele momento, recursos financeiros que o permitiam ser considerado um dos poucos abastados do bairro, situação que mudou drasticamente nas décadas seguintes.

64 Nossa bisavó sempre enfatizava o fato de seus filhos estarem calçados. Talvez tal ênfase remonte a outros tempos, quando estar sem sapatos era sinônimo de ser escravo. Daí a preocupação em distinguir-se dos demais. Era uma preocupação econômica, mas também social.

E nesse cenário de restrito investimento público, e sendo considerada região periférica, o bairro das Quintas adentra os anos 1960 com poucas ruas pavimentadas, muitos terrenos ainda sem ocupação e sem garantia de acesso a diversos serviços, dentre eles também a educação, que ficava limitada a poucas famílias, que conseguiam pagar aulas particulares ou encaminhar seus filhos a escolas estaduais, consideradas distantes, como narra Dedé65, ao relembrar a

importância do Acampamento:

65 Em entrevista concedida à autora em 14 de julho de 2017.

Fonte: Acervo da autora.

Fonte: Acervo da autora. Fonte: Acervo da autora.

Figura 10 – Sr. João Maciel de Medeiros com sua camioneta estacionada em frente à torrefação de café e à sua residência (possivelmente anos 1950)

O pessoal achava que a escola era boa. Só os filhos dos ricos, ou então desse povo de classe média, que não queriam estudar lá. Claro! Porque podiam pagar uma escola melhor, particular, ou então, do governo mesmo, mas sendo essas escolas mais bacanas. Mas a maioria do povo, que era tudo da classe pobre, queria e gostava daquela escola (SIVEIRA, 2017).

Diante desse cenário de ausência de escolas, contando com apenas algumas escolinhas criadas em fins dos anos 1950, o bairro das Quintas recebeu em 1962 o terceiro Acampamento Escolar da Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Muito embora o segundo, construído ainda no ano de 1961, no bairro do Carrasco, também pudesse possivelmente ser considerado hoje enquanto dentro dos limites do bairro das Quintas, já que a região do antigo Carrasco parece ter sido distribuída entre os bairros das Quintas, Alecrim e Dix-Sept Rosado66.

Em 1962, devido ao sucesso da instalação feita nas Rocas, e posteriormente no Carrasco, foram criados vários Acampamentos. Segundo Germano (1982, p. 105), teriam sido: “[...] Quintas, Conceição, Granja, Nova Descoberta, Nordeste, Aparecida e Igapó, todos bairros populares”. Em sua tese, Carvalho (2000) ainda acrescenta a construção de um galpão em Ponta Negra.

Algumas das localidades acima transformaram-se em outros bairros, ou foram anexadas pelos que já existiam. Na entrevista da professora Maria Salete Brito67, pudemos identificar algumas localidades. Pela descrição por ela feita, o

acampamento da Conceição ficava localizado onde hoje é o bairro do Alecrim, especificamente onde se situa a Escola Municipal Juvenal Lamartine. Já o Acampamento da Granja, ficava também inserido ao bairro das Quintas, segundo a entrevistada, perto do cruzamento da Av. Doutor Mario Negócio com a rua São Geraldo. E o Acampamento do bairro Nordeste, àquela época, era chamado Chico Santeiro. Apenas o Acampamento de Aparecida ainda não nos foi identificado.

Desse modo, os limites do atual bairro das Quintas receberam até três Acampamentos, embora seja remetido a ele sempre o maior, que ficava na rua dos Pêgas, uma das poucas vias pavimentadas naquela ocasião e responsável por aproximar o bairro da Av. 12 e, consequentemente, do Alecrim.

A chegada daquela estrutura no bairro foi acompanhada de muitas curiosidades e da presença de uma equipe do governo realizando pesquisas nos

66 Conforme percebido no relato de alguns de nossos entrevistados, mas que não conseguiram precisar a localização geográfica daquele acampamento das ruas atuais da região.

domicílios e incentivando as famílias a matricular seus filhos na escola que estaria chegando em breve. Dona Neide relembra essa fase inicial, ressaltando como soube da iniciativa:

Eu fiquei sabendo da Campanha porque tinha um terreno que era um matagal e começou a ser limpo e aquilo gerou uma curiosidade muito grande. Depois, passaram algumas pessoas nas portas de todas as casas, perguntando se alguém tinha filho que não estudava, se tinha interesse que as crianças estudassem e, acima de tudo, convidando os adultos a estudarem à noite. Porque à noite tinha tanto escola para alfabetizar adulto, como também a parte profissional (RÓSA, 2017).

Sobre essas pesquisas, o prefeito Djalma Maranhão, ao abordar a iniciativa nas Rocas, afirma que havia:

[...] uma equipe destinada a fazer pesquisas. Era dirigida pelo jovem antropólogo Antônio Campos e Silva e pelo professor Alberto Pinheiro, ambos diplomados pela Faculdade de Filosofia, e com a participação das professoras Lenira e Rita e um grupo de universitários.[...] Simultaneamente, com os trabalhos de propaganda e instalações de escolas, foi iniciada uma pesquisa educacional l sobre analfabetismo nas Roca[...] (MARANHÃO apud GÓES, 1999, p. 106).

Considerando tal iniciativa no bairro das Rocas, e cruzando essas informações com as memórias narradas por Dona Neide, é provável que isso tenha ocorrido de modo similar nas Quintas e, talvez mesmo, nas demais comunidades que receberam a estrutura dos Acampamentos Escolares, já que era prerrogativa da equipe garantir a adesão e o apoio popular.

No tocante à estrutura física, não identificamos registros fotográficos, como no bairro das Rocas, mas cremos que fosse muito semelhante, já que esse padrão foi mantido, segundo Djalma Maranhão e Moacyr de Góes, por toda a cidade. Nossos entrevistados também descreveram essa estrutura de modo muito semelhante. Dedé68 o fez de forma detalhada, afirmando que:

Nesse modelo de colégio tinham as palhoças. Galpões bem compridos, divididos em classes, não tinham paredes, era tudo aberto nas laterais. Só era fechado de uma classe para outra, separado pelo quadro negro. Além disso, tinha um terreno, tinha espaço e tinha uma palhoça redonda, que as crianças brincavam ali (SILVEIRA, 2017).

Já para Dona Luzimar69, o espaço destinado ao lanche e brincadeiras era o

que mais chamava atenção:

Eu estudava em De pé no chão desde que abriu. Quando começou foi assim, tipo umas palhocinhas. Quem ajeitou foi o prefeito que fez galpão pra gente lanchar, era muito lindo nosso galpão, viu. Era aquela bem redonda, bonita, as palhas (ALVES, 2017).

O galpão da recreação é sempre lembrado com certa nostalgia pelos entrevistados, sobretudo pelos alunos, bem como também a merenda escolar. Percebemos o quanto a garantia daquela refeição era determinante para definir a permanência das crianças na escola. Quase todos, professores, alunos, organizadores, envolvidos na Campanha ressaltam a relevância que o alimento tinha naquela realidade periférica. Sobre isto, abordaremos em mais detalhes no capítulo seguinte.

Além da merenda, outro ponto que nos chamou atenção foi a possibilidade de dispor de material escolar. Itens básicos, como caderno, lápis e borracha, foram sempre citados e, em dados momentos, até exaltados. Ao perguntarmos sobre esses materiais à Dona Luzimar, ela se emocionou ao relembrar que aquela fora a primeira vez que pôde dispor de materiais escolares novos. Além disso, ficou nítido o caráter quase messiânico que atribuía a Djalma Maranhão, em virtude desse feito.

Então, eu comecei a gostar desse prefeito, que chegou com aquele livro, com aquele caderno, que antes era as patroa de mamãe quem dava. As menina dela passou de ano, aí, tinha aquela ruma de caderno naqueles arame fininho, aí, mamãe arrancava aquelas folhas que tava riscada e levava o resto pra gente (ALVES, 2017).

A condição de exclusão social também é evidenciada na fala acima, que nos ajuda a entender porque o fenômeno populista avançou tão facilmente pelas regiões pobres de nosso estado e de nosso país. Um povo analfabeto, quase sem renda, que precisava recorrer a restos de seus patrões para educar seus filhos, passaria facilmente a enaltecer aqueles que lhes acenassem com alguma dignidade. Cabe aqui destacar que não buscamos enquadrar o prefeito Djalma Maranhão enquanto

um populista, já que essas ações acompanharam outras e não se configuraram em quadros isolados.

As professoras, quase sempre pessoas da comunidade, buscavam acompanhar os alunos, sua frequência e rendimento, e ensinavam como podiam. Recebiam breve treinamento inicial e depois acompanhamento semanal, ou quinzenal, como também ocorria nas Rocas. Apesar disso, também recorriam ao que sabiam, e a como tinham aprendido, para ensinar àquelas crianças. Dona Neide nos relata um pouco de seu fazer em sala:

Para ensinar, primeiro, a gente ia formar as famílias das palavras. Era o método silábico. Aí, ficava uma semana na família da palavra, a família Ba, a família Ca. Depois tinha a cartilha que vinha para as crianças. O livrinho de alfabetização era chamado cartilha. Nessa cartilha, depois que eles já estavam alfabetizados e que já conheciam as famílias das palavras, eles iam lentamente, através do método silábico, tentando formar as frases. E daí eles se alfabetizavam. Muitos alunos achavam bonito o professor ler e eles queriam imitar o professor, e isso também foi muito importante (RÓSA, 2017).

Apesar de apresentar uma proposta bastante tradicional, Dona Neide afirmava que sempre havia capacitações, cursos obrigatórios ocorridos com certa periodicidade, a fim de formar aquelas professoras leigas. Além dos momentos de orientação aos sábados, em que aprendiam a planejar e também recebiam planos prontos (talvez nem sempre seguidos conforme orientado).

Na época em que o Ferreira era acampamento, durante o período de férias, era obrigatório o professor se atualizar. Os cursos eram oferecidos onde hoje é o viaduto do Baldo. [...] Havia então, um período de vinte dias úteis que a gente tinha que se atualizar no início e no meio do ano. Eu achava isso fantástico. Foi muito importante. [...] Lá também havia o que chamavam de planejamento de aula. A gente se reunia aos sábados pela manhã para planejar. Tinha um caderno para isso (RÓSA, 2017).

Podemos notar que, embora as ações da Campanha nem sempre fossem homogêneas, havia a tentativa de aproximar o tratamento empregado às diferentes comunidades e, acima de tudo, nota-se a preocupação em garantir seu apoio, reafirmando sempre que possível seu caráter popular. Certamente, houve desconfiança e dúvida no início das atividades daquelas escolas de palha, visto que aquela população vivia em uma situação de abandono há bastante tempo.

De modo particular, nos chamou atenção um relato feito por Dona Neide ao narrar que um de seus vizinhos sempre ia à escola descalço, não por não possuir calçados, mas para pôr à prova, ou ressaltar, o lema daquela instituição. Para que não percamos os detalhes de tão curiosa narrativa, a trazemos na íntegra como síntese da ideia que foi o mote desses Acampamentos:

Nesta rua aqui [rua 25 de março, bairro das Quintas), tinha um senhor, ali mais ou menos próximo ao castelo, o nome dele era Damascena, mas todo mundo só chamava de Sr. Macena. Ele ia para o colégio e quando ele chegava, tirava a sandália e guardava na bolsa [risos]. Aí, diziam: “Sr. Macena, mas por quê?”, e ele dizia: “porque de pé no chão também se aprende a ler”. E muitos adultos achavam bonito isso e não tinha importância [risos]. Não existia farda, uniforme para as crianças, a importância era o material escolar, material didático e a merenda. E não era obrigatório que todo mundo fosse calçado. Se você fosse de pé no chão, você entrava, você estudava do mesmo jeito (RÓSA, 2017).

O que motivou Sr. Macena a desenvolver tal atitude, nós não sabemos. Ele pode ter sido impedido de estudar por não pertencer a uma família com recursos, ou pode ter sido barrado em algum estabelecimento por não estar bem vestido ou calçado. Enfim, as hipóteses são muitas e não temos como atestá-las, mas a prática de Sr. Macena, narrada por Dona Neide, sintetiza o objetivo da Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”.

Capítulo 4: As manifestações artísticas da cultura popular, a influência do MCP

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