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O conto narra o processo de “tornar-se homem” de um chimpanzé, capturado na Costa do Ouro na Austrália por uma empresa de caça denominada Hagenbeck. O processo é descrito por Kafka como um combate entre duas naturezas distintas presentes no corpo do macaco: uma natureza animalesca própria do estado de liberdade absoluta em que ele vivia em seu habitat e outra natureza, mais docilizada, surgida em virtude de uma vigilância (controle) sem trégua dos seus atos e práticas, pelos tripulantes do navio em que era transportado, conjugado com um processo de tortura constante inscrita na jaula que lhe servia de abrigo.

Sinais desta luta são destacados à medida que o símio, em seu dolorido relato, investiga, mesmo com muito pesar, os motivos que o levaram a abandonar a antiga natureza. Uma primeira motivação que surge em sua narrativa seria a de encontrar uma saída do estado de confinamento em que os humanos o haviam posto, logo após ocorrer a captura. Acompanhemos:

Até então eu tivera tantas vias de saída e agora nenhuma! Estava encalhado. Tivessem me pregado, minha liberdade não teria ficado menor. Por que isso? Escalavre a carne entre os dedos do pé que não vai achar o motivo. Comprima as costas contra a barra da jaula até que ela o parta em dois que não vai achar o motivo. Eu não tinha saída mas precisava arranjar uma, pois sem ela não podia viver (KAFKA, 1999, p.63).

Arranjar uma saída, não se trata de encontrar novamente a liberdade e sim encontrar uma saída, que mesmo que a desconheça por completo o desejo de possuí-la, torna-se urgência vital encontrá-la, dado o enclausuramento oferecido pelos humanos, maltratando-o, no limite de excluir sua existência, como podemos acompanhar por meio de outro fragmento do conto:

Não era uma jaula gradeada de quatro lados; eram apenas três paredes pregadas num caixote, que formava portanto a quarta parede. O conjunto era baixo demais para que eu levantasse e estreito demais para que eu me sentasse. Por isso fiquei agachado, com os joelhos dobrados que tremiam sem parar, na verdade voltado para o caixote, uma vez que a princípio eu provavelmente não queria ver ninguém e desejava estar sempre no escuro, enquanto as grades da jaula me penetravam na carne [...]. Caso permanecesse sempre colado à parede daquele caixote teria esticado as canelas sem remissão. Mas na firma Hagenbeck o lugar dos macacos é de encontro à parede do caixote – pois bem, por isso deixei de ser macaco (Ibid., p.62-64).

Como percebemos, encontrar uma saída não era somente a invenção, talvez simples, de outra maneira de viver. Sua urgência nasceria da impossibilidade de levar adiante o modo como os humanos o haviam subjugado, em outras palavras: ou deixava-se de ser macaco ou, por impossibilidade de quebrar as barreiras físicas impostas, morreria.

A morte, por uma serie de imposições, viria de qualquer forma. Curiosa e envolvente essa proveniência que o símio kafkiano traz para uma faculdade que hoje acreditamos “natural” ao humano: a memória.

3.1. MEMÓRIA, CORPO E DOR

Já de início podemos perceber que as lembranças do chimpanzé sempre remontam a momentos que marcaram seu corpo de forma dolorosa, seja a sua primeira lembrança – quando sente a bala cravar-lhe as costas – seja todo o processo de clausura já descrito acima. Isto é nessa primeira identidade, memória-consciência igual à dor, que busco o primeiro intercessor.

Nietzsche, assim como Kafka, também identificou em sua genealogia que a emergência dessa faculdade que hoje acreditamos tão próxima de nossa natureza – a memória e sua derivação, a consciência – aproxima-se mais de processos antigos de suplício do que de qualquer progresso, refinamento ou aprimoramento de nossa condição pensante. Acompanhemos alguns procedimentos que ele afirma serem criadores da memória do povo alemão,

[...] o apedrejamento (a lenda já fazia cair a pedra do moinho sobre a cabeça do culpado), a roda (a mais característica invenção, a especialidade do gênio alemão no reino dos castigos!), o empalamento, o dilaceramento ou o pisoteamento por cavalos (o “esquartejamento”), a fervura do criminoso em óleo ou vinho (ainda nos séculos XIV e XV), o popular esfolamento (“corte em tiras”), a excisão da carne do peito; e também a prática de cobrir o malfeitor de mel e deixá-lo às moscas, sob o sol ardente (NIETZSCHE, 1998, p.51-52).

Não só como um processo que exige o uso do castigo e da dor a memória-consciência será tratada por Nietzsche em sua genealogia; também um rebaixamento e um amesquinhamento da espécie será sentido nesse processo histórico de transformar num ser responsável esse animal que tinha por característica sadia o esquecimento, observemos:

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a

cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar [...] eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento (Ibid., p.47-48)

Atuando pela dor e criando consciência, essa força garantiria certa invaginação das forças presentes no corpo, produzindo subjetividades dóceis que não utilizariam suas vidas num processo de outramento e sim num processo de conservação da ordem vigente. E, mais uma vez a genealogia nietzschiana nos é fundamental na percepção dessa apropriação na qual ele encontra a proveniência da má consciência, leiamos:

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora [...]. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo (Ibid., p.73).

É como se Kafka e Nietzsche tivessem se comunicado, a analogia da jaula é fundamental no processo de “tornar-se homem” descrito por ambos. Processo como já destacamos anteriormente, que parte de uma invaginação subjetiva das forças presentes no corpo bloqueando a entrada desse corpo em outros devires que trariam o surgimento do novo na realidade, e, no caso particular que discutimos: o surgimento do novo no ritual aula.

3.2. CORPO INSCRITO E ENCLAUSURADO

Kafka descreve o processo de humanização de um macaco por meio de uma série de intervenções corporais no contato com os ditos “humanos” quando é capturado – ser sequestrado – na costa africana e trazido para a Europa. Intervenções que partem de

condicionamentos simples, como trancafiá-lo, aprisioná-lo e imobilizá-lo. Ao fazer cessar todos os movimentos corporais, tendendo a zero, em uma jaula menor que suas dimensões corporais. Obrigando-o a pensar em saída possível, aceitando as sugestões mais rigorosas, como a dos tripulantes do barco que o traziam para alegram-se e justificarem seu ato ao vê-lo beber em uma garrafa na tentativa de imitação. Assim, aos poucos, o “animal” vai deixando de lado sua bestialidade e vai dando contorno a um território dócil e obediente assemelhando- se ao humano.

O Iluminismo, em analogia com o conto, pretendia, num sentido que poderíamos dizer platônico e até mesmo cartesiano, no primeiro momento, encarar o homem ou o vivente como unidade dicotômica de dois elementos em luta: a alma, que seria a detentora da racionalidade e, portanto, o que permitiria a ilustração e o corpo portador da bestialidade. Esta primeira apropriação poderia ser denominada “momento de ontologização”. Que ao findar-se daria curso a outro movimento, o de usar a educação como processo que permitisse ao homem controlar sua animalidade (corpo) por meio de um engrandecimento de sua capacidade de ilustração (alma). Pregava-se o primado da alma sobre as sensações que percorrem o corpo, ou seja, movimento de negação do que se passa no corpo, no intuito de engrandecer os valores da alma. Esta segunda apropriação poderia ser denominada “momento de pragmatização”.