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4. AS PERSPECTIVAS TEÓRICAS SOBRE O ESTATUTO SOCIAL DA

4.3 Contradições presentes no debate da positivação da prostituição

No capitalismo moderno e patriarcal a prostituição se apresenta [em essência] como mediação necessária, junto a alguns outros arranjos sexuais como o casamento, ao livre acesso dos homens aos corpos das mulheres. Segundo Pateman (1993, p. 280), a sociedade dirigida pelos homens construiu ao longo de sua história mecanismos para acessar os corpos das mulheres. Embora os casamentos hoje não representem o que foram há cerca de 50 anos atrás, a família nuclear conserva sua utilidade essencial como núcleo privado da sociedade de classes. Na família nuclear são reproduzidos os valores que fomentam a cultural e a ideologia, formadora das pessoas que somos, sobretudo, para conservar a ordem social dominante – do individualismo. Inclusa nessa lógica está a prostituição, que mesmo aparentando encontrar-se em desacordo com a ordem da família nuclear e com seus valores, na verdade é sua outra metade. E, a história demonstra sua relação imbricada com a família. Em outras palavras, a prostituição é mantenedora, junto ao casamento, do status quo que permite ao homem acessar irrestritamente a mulher, contemporaneamente obter lucros e preservar a ordem.

Historicamente a prostituição nunca foi combatida de forma consequente pelas autoridades que dirigiram as sociedades até os dias atuais, o que se pretendia era a ―abolição dos aspectos mais visíveis da prostituição‖ (PATEMAN, 1993, 290). Ao contrário, ela sempre foi preservada. Observa-se que, na sociedade escravista, usavam-se as mulheres escravas para satisfação sexual dos cidadãos e para a acumulação material dos proprietários de escravos; na sociedade feudal os jovens violentavam e agrediam as moças pobres, mulheres viúvas e abandonadas, e, os senhores feudais aproveitavam-se de sua condição de servas pobres para aliviar seus ímpetos sexuais, e, a igreja preservava e lucrava com a prostituição, mas condenava ao inferno as prostitutas; na sociedade moderna é acentuado o processo de exploração e não apenas a força de trabalho da mulher é convertida em mercadoria, mas ela mesma também, e, o comércio do sexo adquire os traços do sistema, industrializou-se. A análise que pode parecer controversa possui uma lógica dialética, na qual está articulada a negação da sexualidade às mulheres e uso das mulheres para satisfazer a sexualidade dos homens.

Na realidade as mulheres que exerceram a prostituição – exceto, em um dado período da antiguidade – foram perseguidas, humilhadas, segregadas e o estatuto social da atividade foi de negativação. É premente buscar na origem e nos fundamentos da opressão da mulher os elementos, as determinações e mediações que explicam porque a prostituição,

mesmo com status de negativação social foi funcional aos sistemas passados e, porque sua positivação na contemporaneidade continua a servir exclusivamente aos imperativos do sistema.

A repressão sexual, gerada pelas relações restritivas dos arranjos da família monogâmica – contra os casamentos por grupo – produziu uma deformação no contato sexual genérico-humano. A prostituição é a expressão social dessa deformação. A classe e o sexo social dominante – o homem proprietário – conseguiram conservar, ainda que de forma limitada as possibilidades de práticas sexuais diversas, e a prostituição foi desde o seu nascedouro essa forma necessária ao sistema. Contudo, com a complexificação da sociedade e o surgimento da mercadoria se aprofundou a relação mercantilizada desse contato [contrato] e a ele foi agregado o elemento da exploração sexual direta das mulheres, agora mediado prioritariamente pelo dinheiro.

Portanto, a prostituição não surge, nem se afirma na sociedade patriarcal dividida em classes como contraposta ao casamento, como as ideologias mistificadoras tentam mostrar. À classe dominante não interessava que todas as mulheres estivessem livres para desenvolver a sua sexualidade, nem mesmo as prostitutas. Estas últimas podem exercer uma sexualidade mais ampla, mas dentro de dado limite, desde que seja para satisfação do homem [cliente ou explorador] na prostituição.

É pela necessidade do controle sobre o sexo feminino que se dá a repressão às prostitutas e às demais mulheres. Mas ao mesmo tempo, como a outra face da moeda, as condições materiais de existência [o pauperismo] e o uso da violência, garantiram e garantem um contingente considerável de mulheres dispostas a assumir essa tarefa social. As ideologias moralistas servem ao propósito de dar a cada parte das mulheres – privadas e públicas –, uma função: umas são esposas, filhas, irmãs outras prostitutas. Ao capital não interessa o fim da prostituição, como não interessa o fim da família nuclear. Por mais diversificadas que sejam as configurações das ―novas‖ famílias do século XXI, elas se mantêm como núcleos privados que impedem a socialização humano-genérica.

Como se pode ver, o moralismo precisou se enraizar na cultura social como expressão ideologizada da condenação à atividade sexual pelas mulheres, para com isso, conseguir seu propósito original de permanência da prostituição, e, de controle da sexualidade feminina. A limitada liberdade sexual das prostitutas está condenada pela alienação produzida no seio do ato sexual mediado pelo dinheiro. A cruel perseguição moral sofrida pelas prostitutas é parte dessa complexa engrenagem.

A liberdade sexual das mulheres, ainda que limitada pelo desenvolvimento humano, somente se processou nas sociedades comunais primitivas, pois não havia a propriedade privada, nem a divisão social do trabalho, consequentemente, portanto também não havia o controle social masculino, nem sobre as mulheres, nem sobre a totalidade social.

A proposição da maioria dos movimentos de prostitutas, com maior visibilidade para Rede Brasileira de Prostitutas e DAVIDA, consiste fundamentalmente em retirar a prostituição de sua conceituação clássica de ―extrema expressão da opressão e exploração

sexual da mulher” para introduzi-la no leque das profissões socialmente aceitas como alternativa de atividade laboral possível, tão inserida nas relações sociais de trabalho

como qualquer outra profissão.

Considerando que a prostituição é um fenômeno social determinado, que surge como mediação da imposição de uma derrota à liberdade sexual do gênero humano, especialmente da mulher, e, que sua sustentação obedece à manutenção do imperativo da propriedade privada e da divisão social do trabalho. Subtrair a crítica da prostituição como a mais ―extrema expressão da opressão e exploração sexual da mulher‖, em benefício da perspectiva que pretende a prostituição não somente como natural, inevitável e insuperável, mas efetivamente positiva, representaria uma segunda derrota teórica e social imposta pela dominação masculina ao conjunto das mulheres.

A prostituição tende a assumir as determinações econômico-sociais dos países onde é exercida, por essa razão a condição de uma prostituta, não apenas de remuneração, mas do tratamento em geral varia de acordo com situação geral da sociedade e das mulheres em seu interior, em outros termos seria como igualar todas as prostitutas em um só grupo homogêneo, com projetos políticos similares. Mas, o real demonstra que essa possibilidade é tão ilusória quanto igualar os interesses de capitalistas e trabalhadores. As prostitutas de luxo não partilham as condições de trabalho que as prostitutas que batalham nas ruas das cidades pobres ou nas estradas do país. Do mesmo modo, as cortesãs jamais partilharam a prostituição vivida pela escrava da antiguidade.

Como a perspectiva da positivação retira de seu horizonte teórico-político os problemas relacionados à opressão e à exploração, como violência sexista, pobreza, baixos salários, acaba forçando uma universalização profissional atribuindo o mesmo significado social a

(...) atividades tão díspares quanto, digamos, a prostituição religiosa na Antiga Babilônia, a venda de corpos de mulheres carentes em troca de comida para elas próprias e seus filhos, a ―escravidão branca‖(...) Não há nada de universal na

prostituição como um grupo específico de trabalhadores assalariados especializados em determinado tipo de trabalho, ou uma profissão especializada, dentro da divisão capitalista do trabalho. (PATEMAN, 193, p. 287-288)

O impedimento de unificação do gênero humano não reside fundamentalmente nas diferenças entre homens e mulheres, mas na inconciliável harmonia entre a manutenção da propriedade privada e a conservação da opressão feminina. No limite, é condição necessária a supressão da opressão também a supressão da própria propriedade.