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1 Nota preliminar: como saltar a própria sombra?

2. As contradições da semiformação

Como havia apontado anteriormente, a anedota de Tales nos adverte sobre alguns dos pressupostos que ajudam a caracterizar a atividade filosófica atualmente, dentre os quais, o mais importante para a nossa discussão, acredito, é o fato de se desconsiderar o lugar de onde se tenta filosofar, seja em relação ao contexto social, seja em relação à própria formação.

Ao tentar evidenciar o ambiente cultural de nossa sociedade como algo marcado pela

semicultura, percebo que todas as críticas impostas a esse problema também recaem sobre mim

e, sendo assim, devo considerar a seguinte interrogação: se percebo que o terreno onde me situo, além de esburacado como era o de Tales, também é arenoso e movediço, como eu poderia sair dessa situação? Puxando-me pelos cabelos? Agarrando-me a um galho ou raiz?

Com isso quero salientar ao menos duas coisas: primeiro, como alguém semiformado pode ser capaz de se conscientizar disso, ou seja, como pode perceber que os elementos

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culturais apropriados por ele ao longo de sua formação foram na verdade adaptados para serem consumidos e usados como um mecanismo de conformação à estrutura econômica vigente? E em seguida, como, ainda situado nessa estrutura de conformação, alguém poderia se formar, superando os embustes da semicultura e da semiformação?

Esse campo movediço, chamado cultura e interpretado por Adorno como um elemento fundamentalmente transformado pelo capitalismo, de fato requer, metaforicamente falando, um ponto de apoio pelo qual possamos ser içados ou içar alguém. Por isso, o que me parece evidente até o momento é que a semicultura, além de sua intenção adaptativa, também possui em seu interior alguns elementos contraditórios e que, portanto, podem ser concebidos como o ponto de apoio pelo qual poderemos criar possíveis alternativas3.

A ideia de semicultura pode ser interpretada como ideologia e adaptação, primeiro no sentido de dissimulação da realidade social e, depois, no sentido de uma conformação a ela. Ambos os elementos formam o seu caráter. Contudo, se for verdade que atualmente não há mais cultura além da gerada pela indústria cultural, então é nesse mesmo contexto que se encontram as possíveis alternativas para a sua superação.

O que não me parece correto é desconsiderar a maneira dinâmica pela qual alguém se forma, assim como as nuances de cada contexto, que exige um certo perspectivismo em relação ao processo formativo. Certamente não convém fazer apologia da mediocridade, mas seria ingenuidade ou arrogância exigir, por exemplo, que um aluno brasileiro só se desse o direito de falar com propriedade do sentido das obras de Nietzsche se o tivesse lido em alemão; que um

3 Como veremos ao longo da pesquisa, um aspecto fundamental a ser considerado diz respeito às determinações econômicas que regram o caminho da cultura e da formação. Entretanto, o que desejamos destacar nessa breve reflexão é que essas determinações não nos impõem o abandono total da reflexão e da crítica, pelo contrário, obriga- nos a exercitá-las, pois é justamente isso que poderá nos fazer perceber com maior lucidez e clareza as “distorções” da realidade causadas pelos preceitos econômicos.

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sujeito não familiarizado com a música erudita compreendesse de imediato o posicionamento estético de Schoenberg sobre a música atonal4; ou que os avanços da razão simplesmente fossem descartados, dado a hegemonia do princípio instrumental que a rege.

Se certificar de que o conceito de formação não se reduz a apenas dois princípios opostos é aceitar que a formação, mais do que um ideal, é um movimento que continuamente se refaz. Se hoje eu consigo, mesmo que minimamente, refletir a respeito da minha formação, percebendo os seus percalços na tentativa de superá-los, é porque gradativamente dei as costas a certos caminhos, optando por outros desconhecidos ou reconstruindo percursos que não estavam completamente predeterminados.

Adorno apontou o que há de mais nefasto na cultura e na formação utilizando-se do prefixo “semi”, como quem queria dizer que o mediano jamais poderia suprir as exigências desses dois campos, e isso é verdade. Contudo, embora essa característica inconclusa possa regular a formação de maneira muito pobre, ela é também o que distingue o ideal de formação e a realidade em que isso se efetiva, pondo em movimento a dialética da formação por meio dessas mesmas contradições.

Portanto, a semicultura não representa um aprisionamento total da condição espiritual, uma predestinação à mediocridade. É a isso que a educação se dirige e, sem cair em falsos idealismos, não há como negar a existência de pessoas bem formadas, isto é, dando continuidade a esse processo que chamamos formação. Embora isso seja algo extremamente complexo, o fundamental é considerarmos o seu movimento.

4 Nesses dois exemplos há um outro elemento a ser considerado, ou seja, não podemos inferir que alguém é realmente formado simplesmente por conhecer determinados elementos da cultura. O fato de haver na Alemanha homens e mulheres se ocupando ao mesmo tempo da práxis assassina e dos bens culturais desmentem a objetividade pressuposta nessa inferência, pois enquanto dissociada das coisas humanas e com sentido isolado, a formação seria totalmente desfigurada. Em outros termos, enquanto objetos independentes, sem uma ligação direta com a humanidade e com fim em si mesma, a cultura que se absolutiza também se converte em semiformação

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Querer saber qual é o ponto de intersecção entre um estado de semiformação e outro de formação, ou como diferenciá-los e como superar os entraves do primeiro, já denota a escolha por um outro caminho, distinto daqueles pressupostos adaptativos. Isso certamente mantém maior relação com as escolhas individuais que fazemos e, sendo assim, em última instância, qualquer receita que se prescreva também estaria fadada ao fracasso caso não considerássemos esse pormenor, como questionado por Adorno: “mas podemos exigir de uma pessoa que ela voe?” (1995. p. 71).

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CAPÍTULO 2

A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA RAZÃO NO ÂMBITO DA