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Aranha tece puxando o fio da teia A ciência da abeia Da aranha e a minha Muita gente desconhece

Luiz Vieira / João do Valle

Iniciaremos a argumentação acerca exibição das teses de Manoel Bomfim, dedicadas ao pensamento social e político brasileiro e também sul-americano, fazendo referência ao conceito contradiscurso. Este conceito foi elaborado por Ronaldo Conde Aguiar na ocasião da redação sociológica da biografia dedicada ao autor em suspensão. Vejamos o que é dito sobre o contradiscurso. Ele emerge

[do] pensamento e [da] obra de Manoel Bo mfim (co m todas as suas virtudes e contradições) se [inscreve] perfeita mente no interior do campo intelectual do seu tempo, diferenc iando-se, no entanto, como u m contradiscurso (ou como um discurso crítico), do discurso ideológico dominante, ao qual, co m singularidades, matizes e características próprias, a obra e o pensamento da ma ioria dos seus pares estavam atados.168

Aguiar vê o sergipano como o promotor de um repertório diferenciado daquele que era exercido pela intelligentsia do final do século XIX e início do século XX. A ponto de caracterizá- lo como portador de um discurso crítico. A produção intelectual do sergipano visou construir uma representação social e coletiva a respeito do brasileiro e da nação. E para quê? Ora, para que fosse possível a instauração de uma narrativa a serviço do combate das representações sociais estereotipadas, erguidas pelo campo

168

intelectual da época. O campo intelectual era influenciado pelo racismo científico do século XIX que condenava a América do Sul e colocava em xeque o potencial da sociedade brasileira.

O contradiscurso foi recebido pela intelligentsia do final do século XIX e início do século XX não como uma contribuição reflexiva diferenciada e disposta a pensar os desafios que cercavam a construção da nação, mas como afronta por aqueles estabelecidos na ordem do discurso.

O contradiscurso de Manoel Bo mfim foi recebido mu ito ma is como u ma afronta e um desafio (logo, como uma a meaça inconsciente) do que propria mente como uma construção intelectual (correta ou não, pouco importava!) sobre temas de interesse social, político e científico. Na verdade, ao contestar o sistema de verdades da época, Manoel Bo mfim contrariou justamente os intelectuais (os ícones169) que tinha m a incu mbência de reproduzir e sancionar, através da “autoridade conferida pelo saber”, o que as elites decidira m ser rea l e verdadeiro para a sociedade brasileira170.171

Essa postura de distanciamento do discurso hegemô nico, colocada em circulação através do contradiscurso, é compreendida como atitude singular. É singular porque denuncia o “racismo científico”, tão caro à intelligentsia do século XIX. Ou seja, o posicionamento de Bomfim era oposto àquele difundido pelos membros do campo. Essa singularidade do contradiscurso se vincula às considerações de Benedetto Croce, porque ela é capaz de demonstrar o sentimento de uma época:

Aqueles que se faze m c ríticos de sua época, aqueles que se opõem à sua realidade, que discordam dos padrões dominantes, elaborando a sua obra em desacordo com tudo o que caracteriza o meio social e até humano em que vivem – estes, sim, são os que mais corretamente traduze m os sentimentos e os anseios ma is profundos do seu tempo e do seu país.172

E, mais ainda, o contradiscurso só foi capaz de traduzir o sentimento de uma época porque encarou a produção intelectual como ação. Ou seja, o contradiscurso se negou a ouvir as teses que disseminavam a desigualdade inata entre as raças e que, portanto, não reconheciam o lugar do negro, do índio e muito menos do mestiço como

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Grifo do autor.

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Esse argumento de Aguiar direciona para cólera que tomou conta de Sílvio Ro me ro como forma de ataque a Manoel Bo mfim.

171

A GUIAR, Ronaldo. O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim, p. 48.

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elementos constituintes da identidade173 da América do Sul. A escrita do contradiscurso exerceu função oposta daquela pavimentada pelo discurso hegemônico, apreciador das ideias que condenavam a América. Por esse ângulo, Bomfim mais uma vez pode ser entendido como intelectual específico, do qual falou Michel Foucault, por ter feito oposição à vontade de verdade em voga por meio do discurso, quando se inscreveu na

ordem do discurso.

A oposição ao discurso hegemônico foi o combustível de sua primeira obra (A

América Latina: males de origem, publicada no ano de 1905), potencializadora da sua

interpretação dedicada ao entendimento do Brasil e da América. Essa oposição também seguiu a composição das demais obras dedicadas ao pensamento social brasileiro. O que impulsionou a escrita social de Bomfim foi o desejo de contestar o pessimismo europeu acerca da América, sustentado no seu amor pelo Brasil. Pessimismo este que incomodou o autor, não só pelos juízos que atestavam o atraso do povo americano, mas também porque a “interpretação [dada] a esse atraso, e principalmente as conclusões que daí [são tiradas], [...] nos ferem.”174

O contradiscurso é posto em resposta ao pessimismo europeu que gerou conclusões que feriam os povos da América.

O item indispensável ao contradiscursivo é a utopia. Nesse sentido, Bomfim, de acordo com Aguiar, valorizou a condição de utopista. “O utopista quer mudar o mundo através da luta consciente e do trabalho.”175

Então o contradiscurso, posto em circulação pela produção social do médico sergipano, também pode ser encarado sob o viés da utopia. Por ter sido um utopista que rejeitou a produção discursiva de sua época, o autor de O Brasil nação foi punido. Ele fora condenado ao ostracismo. Bomfim fora condenado ao ostracismo por elaborar “um contradiscurso, que, em última análise, expressava a voz e o sentimento dos excluídos.”176

A pretensão desta sessão foi apresentar, rapidamente, o que Ronaldo Conde Aguiar chamou de contradiscurso e confirmar como a postura discursiva de Bomfim, anunciada por suas obras, confirmou aquilo que o biógrafo chamou de contradiscurso. Na próxima sessão, “o parasitismo social”, daremos início à apresentação das teses do autor que caracterizam seu contradiscurso.

173

A respeito da prima zia do mestiço na argumentação de Bomfim, o historiador Cle iton Ricardo das Neves vê o sergipano como mensageiro de u m projeto identitário “co m base e sustentação próprias e de caráter mestiço.” (NEVES, 2010, p. 92).

174

BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem, p. 53.

175

A GUIAR, Ronaldo. Ibidem, p. 28.

176

Ide m. Ibidem, p. 306. O revés dessa assertiva está inscrito na última sessão desta dissertação, “limites e possibilidades da escrita descolonial de Manoel Bo mfim” .