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2.1 Jogo sobre o tempo

2.1.3 Contraponto rítmico entre música e ação

Os dois primeiros procedimentos abordados, concordância e polifonia rítmica, evoluem, através das pesquisas incansáveis de Meierhold, para o terceiro procedimento, o contraponto rítmico. Por essa razão, identificamos relatos sobre este procedimento, principalmente, nos espetáculos mais tardios do encenador.

Porém, a sua teoria do contraponto começa a ser desenvolvida ainda na época do Estúdio da Rua Borondinskáia, depois de 1917, quando Meierhold recusará, desta vez categoricamente, perante seus estudantes do GEKTEMAS (Ateliês Teatrais Superiores do Estado), “a aplicação das teorias de Dalcroze - largamente difundidas na Rússia - ao teatro e qualificará de absurdas as danças de I. Duncan em razão de sua tediosa e repetitiva simetria em relação à música” (PICON-VALLIN, 1989, p.2). Nas palavras do encenador: "Esforçamo-nos em evitar fazer coincidir o tecido musical e o tecido cênico sobre a base do metro. Aspiramos à fusão contrapontística dos dois tecidos, musical e cênico" (MEIERHOLD apud PICON-VALLIN, 1989, p.3).

É importante destacar que o termo contraponto se origina do latim punctos contra puntum (nota contra nota) e surge na renascença, época em que o cantochão5 começou a ser substituído nas igrejas pelo canto com mais de uma linha melódica criando polifonia no lugar da homofonia6. O desenvolvimento da polifonia leva ao contraponto, propriamente dito, e tem seu ápice no barroco tardio, com Johann Sebastian Bach.

Em suma, o contraponto, na música, é uma técnica de composição na qual duas ou mais vozes melódicas são compostas levando-se em conta, simultaneamente, o perfil melódico de cada uma delas e a qualidade intervalar e harmônica gerada pela sobreposição das duas ou mais melodias (DOURADO, 2004 e SADIE, 1994).

5Cantochão é a denominação aplicada à prática monofônica de canto utilizada nas liturgias cristãs,

originalmente desacompanhada.

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71 Embora não apareça a palavra ritmo nessa definição de contraponto, sabe-se que toda melodia se caracteriza pela variação de alturas (linha de sons) e pela variação de durações (ritmo) (MED, 1996, p. 333). Assim, o movimento das vozes criado pelo contraponto entre as linhas melódicas leva em conta as relações estabelecidas sob o ponto de vista de altura e também de ritmo. Por esse motivo e pela ênfase dada ao ritmo nas declarações de Meierhold sobre o assunto, escolhemos o termo contraponto rítmico, para nomear o procedimento usado pelo encenador.

Certamente, como músico e conhecedor da pedagogia musical, Meierhold conhecia (e talvez até aplicasse) as leis estritas do contraponto em seu teatro, contudo, não encontramos nas fontes consultadas descrições mais detalhadas sobre os tipos específicos dessa técnica (contraponto invertido, contraponto dissonante, contraponto imitativo, contraponto de primeira espécie, segunda espécie, etc) nem para a tradução na cena das relações criadas pelo parâmetro musical altura. De todo modo, os relatos apontam um tratamento contrapontístico que poderíamos, talvez, associar ao contraponto livre,7 para a relação entre o tecido musical e o tecido cênico das montagens de Meierhold submetidas a esse procedimento.

Segundo Cavaliere, ao referir-se à própria evolução de sua concepção sobre a ópera na reflexão que faz sobre a montagem de A Dama de Espadas de Puchkin-Tchaikovski, encenada em 1935 no Pequeno Teatro Dramático de Leningrado, Meierhold chegou a reconhecer que

[...] se em Tristão e Isolda insistia na coincidência precisa, quase matemática, entre os movimentos, os gestos dos atores e o ritmo da música, enfim, o desenho tônico, já em seus trabalhos do final da década de 20 e 30, sem recusar a subordinação do conjunto à partitura, procurava, no entanto, uma liberdade rítmica para o ator no interior de uma grande frase musical, para que, ao invés de uma coincidência metricamente precisa, pudesse surgir uma coincidência em contraponto, às vezes até mesmo em contraste com a música, como uma espécie de variação, evitando assim segui-la em uníssono (CAVALIERE, 1996, p.122).

7 O contraponto através das espécies é um tipo de contraponto conhecido como estrito que foi desenvolvido

como uma ferramenta pedagógica na qual o estudante avança através de várias espécies de complexidade crescente, trabalhando sempre no cantus firmus, expressão latina que significa melodia fixa, sobre uma mesma parte bastante plana que lhe é fornecida. Gradualmente, o estudante adquire a habilidade de escrever contraponto livre, isto é, um contraponto menos rigorosamente restrito, frequentemente sem o cantus firmus, segundo as regras estabelecidas e num intervalo de tempo especificado.

72 De acordo com Picon-Vallin (1989), essa teoria do contraponto encontrará uma de suas melhores aplicações justamente na encenação de A Dama de Espadas. Sobre os atores do espetáculo, a crítica teatral da época se pronuncia:

[...] um ator autenticamente musical, conservando exteriormente a liberdade de seu comportamento teatral, mas de fato ligado à música durante todo o tempo em um complexo contraponto rítmico. Seus movimentos podem ser invertidos em relação ao metro da música, acelerados ou ralentados; entretanto, mesmo sua pausa estática sobre o fundo de um movimento rápido da orquestra e, digamos, um gestual rápido sobre o fundo de uma pausa geral na música devem estar estritamente apoiados sobre a partitura da encenação, concebida como o contraponto cênico da partitura do compositor (SOLLERTINSKI apud PICON- VALLIN, 1989, p. 8, grifo nosso).

Uma performance desse tipo só poderia ser produto de um treinamento intenso, e isso é o que a biomecânica de Meierhold forneceu, ao longo dos anos, para seus principais atores. E a teoria do contraponto, como é possível deduzir pela descrição de Erast Garin, encontrava seu lugar nesse treinamento:

Trabalhando com o movimento estritamente acompanhado por música... Começando pelo movimento elementar de acordo com as leis da natureza, procedemos a problemas mais complicados: em uma tela de metro, dominamos o movimento rítmico livre e, finalmente, a maestria do movimento livre em acordo com as leis de contraponto irrestrito. Após isso, apreendemos sem dificuldade o tempi e o caráter do movimento pela música: legato, staccato etc. O movimento ao som da música estava para nós ligado, ainda, a outro problema: a coordenação do sujeito no tempo e no espaço. A coordenação demandava grande precisão, um senso absoluto de tempo e cálculo preciso – contar em frações de segundos. Então, tendo dominado a coordenação do sujeito com parceiros, com objetos e adereços, procedemos com penhor à base de uma composição. (GARIN

apud ABENSOUR, 2011, p.280, grifo nosso).

O ator Erast Garin representará, além de outros memoráveis papéis nas encenações de Meierhold, o protagonista Tchatski8 de A Desgraça de ser Inteligente (1928), na qual o jogo de suas ações é acompanhado pelo próprio ator ao piano (princípio de jogo sobre o

8 Meierhold escreve, no bilhetinho que envia para E. Garin, que deseja tê-lo no elenco para interpretar

Tchatski em substituição ao ator que ensaiava na ocasião:

“Para Hassia. Segredo absoluto.

Sei que vão censurar minha parcialidade, mas parece-me que Garin é o único

capaz de ser o nosso Tchatski: é um rapaz malicioso, não um “orador”. Em Iakontov eu tenho o “tenor” no sentido musical do termo, e o “metido a bonitão”, que poderia concorrer com Zavadski. Ah, os tenores, que eles vão pro diabo!”

73 ator instrumentista) e é possível considerar a utilização do contraponto, ao menos na segunda versão do espetáculo, pela influência do ator chinês Mei Lan-Fang.9 Meierhold não somente lhe dedica este espetáculo, como incorpora uma parte de sua técnica à montagem da peça. O que mais inspira Meierhold é justamente o jogo sobre o tempo complexamente elaborado entre a concordância e o contraponto rítmico.

Dos textos escritos por Meierhold em 1935, quando preparava a segunda versão de A

Desgraça de ser Inteligente, destacamos:

[...] Ademais, esta última versão revela influência do ator chinês Mei Lan-Fang

(no plano “escenométrico”), ao qual (e a L. Oborin) dedico este espetáculo.

Neste espetáculo foram adicionados ao elemento musical aspectos tomados do

“folclore” teatral que interpreta a companhia chinesa do inesquecível ator Mei

Lan-Fang (MEIERHOLD, trad. HORMIGÓN, 1998, p.602, tradução nossa).

Sobre a influência do teatro oriental no jogo musical aplicado por Meierhold, Picon-Vallin completa:

Desde que viu Ganako e Sadda Iako no início do século até seus deslumbramentos diante de Mei-Lan-Fang em 1935, Meyerhold refere-se obstinadamente ao jogo musical do ator japonês e chinês. Perante o sentido de ritmo de Mei-Lan-Fang, todos os atores soviéticos deveriam empalidecer, segundo Meyerhold, que escreve: "Nós não temos o sentido do tempo. Não sabemos o que quer dizer economizar o tempo. Mei-Lan-Fang o conta em quartos de segundo e nós o contamos em minutos, sem mesmo contar os segundos..." (MEIERHOLD apud Picon-VALLIN, 1989, p.5).

É também pela experiência de outro ator meierholdiano que temos notícia da utilização do procedimento de contraponto, ainda em 1917, na encenação de O Baile de Máscaras, suntuoso espetáculo que ficaria em cartaz durante muitos anos no Teatro Alexandriínski. Abensour (2011) relata que até 1948, data de sua morte, o ator Iuriev, que representava o papel do protagonista Arbenin, procederá ainda leituras da peça em companhia da atriz Time, que criou o papel da baronesa: “Eles a interpretam sem cenários, conservando a complexidade do ritmo, o contraponto com a música, a precisão plástica inscrita pelo encenador no corpo e na consciência dos atores” (p.321).

9 Ator chinês de técnica depurada. Realizou turnê pela União Soviética. Eisenstein escreveu sobre ele;

também Brecht, cuja observação lhe serviu de base para escrever: “Os métodos de distanciamento no teatro chinês”. (HORMIGÓN, 1998, p.602, tradução nossa).

74 Presume-se, pelo relato de Abensour, a consistência das pesquisas de Meierhold e o seu empenho pedagógico para garantir a assimilação do complexo procedimento de contraponto rítmico no jogo de seus atores sobre o tempo.