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Contrariamente ao grande número de ocorrências, algumas das quais por nós atrás transcritas e analisadas, sobre a forma como os contributos anafóricos da EI concorrem para a coesão e progressão discursivo-textual, encontrámos apenas quatro exemplos da sua função catafórica. Esta reduzida amostra não nos demoveu, no entanto, de a transcrevermos e de sobre ela reflectirmos.

A EI pode ser, de facto, introduzida no texto/discurso com uma função catafórica, precedendo (contrariamente ao processo anafórico) o elemento linguístico que ela representa. Como forma de ilustrar esta nossa tomada de posição, propomos de seguida a análise de quatro excertos, em que destacamos a negrito a EI e através do sublinhado evidenciamos o(s) segmento(s) que a posteriori a retomam:

«Os alemães não brincam em serviço. […]. Brincar em serviço não lhes passa pela cabeça. Ao contrário do português […], o alemão trabalha quando tem de trabalhar e brinca quando tem de brincar. Não se força nem reprime. Cumpre no trabalho como na brincadeira.» (1999:262)146

Tendo por valor fraseológico o acto de desempenhar uma qualquer tarefa (laboral ou outra) com seriedade e proficiência, a expressão Não brincar em serviço é seleccionada pelo autor como forma de abrir a sua posição argumentativa, instaurando, desde logo, a tese de que os alemães

possuem virtudes inigualáveis enquanto cidadãos cumpridores e conscientes.

Uma vez lançada no discurso, a EI é recuperada por MEC no cotexto imediatamente à direita pelo viés da sua variante na afirmativa «Brincar em serviço» para, logo de seguida, a negar – apoiado mais uma vez por outra fraseologia «não lhes passa pela cabeça».

Após esta sumária explanação enaltecedora do povo germânico, o cronista elabora um pouco mais (ver sublinhado), especificando o valor recuperado da fraseologia, com a qual inicia o segmento transcrito. Este desenvolvimento mais pormenorizado permite ao leitor apreender e ao autor apresentar o seu verdadeiro objectivo argumentativo, criticar os Portugueses. Ou seja, o autor não tem como pretensão última louvar os Alemães, mas tão- somente servir-se daquele bom exemplo para, de forma comparativamente oposta, enfatizar os aspectos menos bons do povo luso.

No segmento seguinte, à semelhança do anterior, a EI a negrito precede os segmentos linguísticos que ela representa (marcados pelos sublinhados):

«Até chegar aos dezanove anos um rapaz julga que, em matéria de raparigas, tudo o que vem à rede é peixe. Namora tudo o que se move. Se uma pestana bate, o coração rebenta. Se um arbusto treme, salta-lhe para cima. Um verso de amor, um centímetro de tornozelo, um vestido às flores com um ser vivo lá dentro, um dia bonito ou um dia feio – qualquer coisa desencadeia a paixão.» (1999:47)147

MEC, repescando o conteúdo metafórico da fraseologia, projecta-o à direita de forma mais clarificada e exemplificativa («se uma pestana bate» / «se um arbusto treme») e no final apresenta-nos pela via do discurso livre a paráfrase da EI destacada «qualquer coisa desencadeia a paixão».

No terceiro exemplo, o mecanismo de referência catafórico veiculado pela expressão Levar as coisas mais longe é particularmente notório pela instauração à direita do elemento linguístico «Refiro-me»,

«O modelo do fogão é o modelo tradicional. No caso dos rapazes, marca Leão. No caso das raparigas, marca Portugal. Mas há quem leve as coisas mais longe. Refiro-me àquelas namoradeiras e àqueles malandros quase-profissionais que dispõem de um congelador.» (1999:28)148

permitindo ao cronista recuperar o conteúdo semântico da fraseologia e objectivá-lo de acordo com a sua intencionalidade argumentativa.

Estes três últimos exemplos, transcritos e analisados, em que as fraseologias escolhidas por MEC (Não brincar em serviço / Tudo o que vem à rede é peixe / Levar as coisas mais longe) veiculam um valor subjectivo, opaco e transversal –, isto é, poderiam ser utilizadas em vários e diferentes contextos comunicacionais dada a vasta amplitude semântica de que podem revestir-se, – explicam a necessidade de o autor utilizar a catáfora como mecanismo de referência coesivo-discursivo para explicitar objectivamente à direita a significação particular que pretende atribuir a cada uma delas.

Transcrevemos uma última passagem ilustrativa também da função catafórica a que se presta a EI:

«É tal a desatenção e tanta a apatia da nossa classe intelectual, que nem uma só alma reparou. É típico. E é confrangedor. Miguel Torga acaba de escrever e publicar uma nova colecção de contos – e ninguém reparou…» (2002:283)149

Contrariamente aos três exemplos anteriores, a expressão Nem uma só alma possui um nível de significação muito mais circunscrito, pois, quaisquer que sejam os contextos linguístico-pragmáticos em esta possa surgir o seu valor fraseológico é apenas um, «ninguém» – o único que o autor poderia ter utilizado (ver sublinhado) como forma de recuperar à direita o que lançou metaforicamente à esquerda do seu texto.

Esta análise, permitindo-nos comprovar duas asserções, que passamos a transcrever, de dois linguistas especialistas na matéria, levar-nos-á a um outro ponto de abordagem: se por um lado, a EI, dada «a sua constituição, a sua frequência e a sua riqueza, não pode tratar-se de um elemento linguístico marginal e secundário» (Vilela, 2002a:106), e se, por outro, “retomar

enunciados, nominalizando-os, […] é uma tarefa cognitivamente complexa” (O. Figueiredo, 2003:241), cabe ao professor de Português levar os alunos a tomarem consciência deste dispositivo da língua e assegurar que o dominam com mestria. É neste sentido que, no âmbito do estudo fraseológico, propomos, no capítulo seguinte, algumas estratégias e actividades passíveis

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