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Contribuições para o ensino de números

No documento UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (páginas 50-52)

A primeira descoberta significativa do presente trabalho está ligada à construção da idéia de número, assunto abordado no Capítulo 1. Constatamos que não se pode pretender desenvolver uma idéia abrangente de Número sem levar em conta os dois aspectos, discreto e contínuo, em suas múltiplas características e implicações.

Estudos antropológicos e epistemológicos mostram que o surgimento e evolução da noção de número natural não esteve somente atrelada à contagem discreta de elementos individuais, na famosa associação entre o número de ovelhas em um rebanho e a quantidade de pedrinhas em um saco. Na verdade, o uso do número natural sempre esteve vinculado também a atividades envolvendo medidas de grandezas contínuas, e de uma forma mais simples à noção de ordenação, que supõe a comparação entre grandezas diferentes. Assim, não há razão para restringir o ensino de número natural somente a exemplos e situações discretas. É preciso levar em conta as suas componentes primordiais, presentes na evolução histórica e na psicogênese do conceito numérico.

Resumindo, no ensino inicial de Número, nosso estudo mostrou que é preciso fornecer situações que envolvam pelo menos os seguintes aspectos:

• a percepção mais elementar da igualdade e da diferença entre objetos. • a capacidade de estimar quantidades discretas e grandezas contínuas; • as atividades humanas de contar e medir;

• as componentes ordinal e cardinal do número;

Indo além do número natural, a evolução da idéia de Número passa também pela constatação da tensão entre discreto e contínuo. Apesar de os egípcios e os povos da Mesopotâmia utilizarem frações e números decimais, nosso estudo mostra que somente após a identificação das grandezas incomensuráveis é que surgem de uma forma mais definida os próprios números racionais. E, no fundo, a crise dos incomensuráveis, que marca o surgimento dos números irracionais, nada mais é que a explosão da tensão acumulada entre o discreto e o contínuo no mundo grego. A crise reflete o grande problema gerado pela dificuldade de expressão de grandezas discretas e contínuas dentro da linguagem matemática que estava em evolução.

Portanto, também a construção dos números racionais está na dependência de uma abordagem que leve em conta o discreto e o contínuo. O número racional surge então como um nó de uma rede conceitual formado por três linhas principais:

• a vertente egípcia das frações unitárias, como parte de um todo;

• o uso do valor posição para representar números quebrados na Mesopotâmia;

• a noção de razão grega, tendo como contrapartida os incomensuráveis. Assim, uma estratégia de ensino que leve em conta esses aspectos estará administrando a tensão entre o discreto e o contínuo, trabalhando tanto com um quanto com o outro aspecto, para construir a noção de número racional e expandir, assim, o campo numérico do aluno. É preciso formar um elenco das componentes conceituais do número racional. Nossos estudos sobre os números racionais apontam três componentes fundamentais:

• tomar uma parte de um todo; • dividir um número inteiro por outro; • comparar duas grandezas.

Esses componentes da idéia de número racional precisam ser trabalhadas em conjunto, pois somente uma delas, sem as outras, não é suficiente para criar um ensino significativo.

Quanto à construção dos números reais, também concluímos que só pode ser levada a cabo de uma forma significativa se considerarmos tanto o discreto quanto o contínuo, administrando a tensão entre ambos. Para chegarmos a essa conclusão, foi muito elucidativo verificar que nem os povos da Mesopotâmia nem os egípcios preocuparam-se em identificar a existência dos números irracionais.

Os babilônios calculavam com uma aproximação muito boa números irracionais, como a diagonal do quadrado de lado unitário, sem nenhum constrangimento. Como o algoritmo que utilizavam para calcular a raiz quadrada de um número permitia chegar a aproximações tão boas quanto quisessem, não tinha sentido para eles a preocupação sobre a natureza do número em questão. Pelo que pudemos entender, os babilônios lidavam diretamente com a continuidade, através das aproximações de medidas, sem questionar sobre a “racionalidade” do valor encontrado.

Os egípcios desenvolveram as frações para lidar com as medidas, trabalhando com números inteiros e com frações unitárias, ou seja, divisões da unidade em um número inteiro de partes. Apenas com frações unitárias, nunca iriam reparar na existência dos irracionais, pois limitavam-se de um modo ou de outro ao reino discreto dos números naturais, aplicando-os tanto a medidas quanto a contagens.

Somente os gregos, ao comparar o discreto e o contínuo, puderam vislumbrar, com bastante surpresa, a existência dos irracionais. Se não tivessem tentado olhar o mundo em busca de uma visão unificadora, tentando lidar tanto com os números (discretos) pitagóricos quanto com a teoria das proporções entre grandezas (contínuas), os gregos não teriam percebido a existência de grandezas incomensuráveis. É claro que a reação grega de horror ao infinito, de repúdio aos números irracionais e de fuga na álgebra geométrica, não resultou em uma imediata assimilação dos números reais. Mas possibilitou uma abertura tão grande de perspectiva que chegou quase à invenção do Cálculo Diferencial e Integral por Arquimedes, dois mil anos antes de Newton e Leibniz.

Concluímos, assim, que levar em conta a interação entre discreto e contínuo é fundamental para se compreender os números reais, mesmo que essa “compreensão” traga os riscos de se ficar um pouco confuso com os paradoxos da continuidade. Aliás, os próprios gregos, com os paradoxos de Zeno, deixaram registrado que não foi fácil, de início, lidar com ambas as noções de discreto e contínuo. Mas é claro que valeu a pena. Basta verificar o avanço que a Matemática, junto com outros ramos do conhecimento, obteve em um par de séculos na Grécia, em comparação com os milênios de estagnação egípcia ou babilônica. Podemos dizer que os gregos de certo modo quase preencheram o abismo que antes separava a visão discreta do Egito e a abordagem contínua da Mesopotâmia. Não souberam administrar perfeitamente a tensão entre discreto e contínuo, pois optaram por separá-los criando áreas totalmente distintas - a Teoria dos Números e a Geometria. Mas tiveram o mérito de não ignorar nenhum deles, dando atenção tanto ao estudo dos Números quanto da Geometria.

Com relação ao ensino dos números reais e suas propriedades, e particularmente sobre o trabalho com os irracionais, nosso estudo revelou que é muito importante imitar o que os gregos fizeram de bom, evitando apenas a sua reação de surpresa desmedida. Ou seja, não ficar somente na visão discreta nem na contínua, mas lidar com ambas as noções, para se construir a idéia de número real. Para isso é de grande utilidade fazer uso da Álgebra Geométrica. A Álgebra Geométrica foi uma grande invenção grega, que visava evitar um confronto direto com o mundo dos números irracionais. Nosso estudo mostra que a Álgebra Geométrica deveria assim ser mais valorizada, pois é uma grande fonte de estratégias de ensino para os números reais. Podemos assim tecer um elenco de elementos que consideramos valiosos para o desenvolvimento da idéia de número real:

• explorar a representação geométrica de valores numéricos, dentro da Álgebra Geométrica;

• considerar os casos extremos propostos pelos paradoxos de Zeno ou seus similares, não como episódios folclóricos, mas como modo de

entender melhor e valorizar a relação entre discreto e contínuo na composição da reta real;

• estudar a natureza da notação posicional e das aproximações dos números irracionais;

• não ignorar os casos mais “complicados” das representações periódicas infinitas de números, quer irracionais ou não;

• mostrar a idéia de infinito sem deixar de lado tanto o infinitamente grande quanto o infinitamente pequeno. Para isso, pode-se fazer uso do princípio da exaustão e das representações geométricas intuitivas dessas idéias. Essas são, segundo as análises desse trabalho, alguns dos componentes necessários para se trabalhar com os reais, fazendo referência simultaneamente ao discreto e ao contínuo para se construir os conceitos relacionados aos números reais.

No documento UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (páginas 50-52)