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As contribuições da Teoria Queer: gênero e sexualidade desnaturalizados Segundo Miskolci (2009), emergiu nos Estados Unidos, em fins da década

UM APORTE TEÓRICO PARA O ESTUDO DAS IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO TRABALHADOR LGBT

3.2 As contribuições da Teoria Queer: gênero e sexualidade desnaturalizados Segundo Miskolci (2009), emergiu nos Estados Unidos, em fins da década

de 1980, uma corrente teórica denominada Teoria Queer, cujo objeto de análise é a dinâmica da sexualidade e do desejo na organização das relações sociais. Louro (2001) afirma que a Teoria Queer, enquanto teoria e política pós-identitárias, objetiva a crítica

à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que organiza as práticas sociais e as relações entre os sujeitos.

A Teoria Queer (termo primeiramente utilizado por Tereza de Lauretis) faz parte de um conjunto de saberes sujeitados denominados por Foucault como Saberes Insurgentes (MISKOLCI , 2014). Segundo Miskolci (2014), saberes sujeitados é um termo que se refere a históricos blocos de saber que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos, bem como uma série de saberes, até então, desqualificados como saberes não conceituais, ingênuos, hierarquicamente inferiores, abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. Formavam assim, um conjunto de conhecimentos que não possuíam poder, ou seja, autoridade e consequente reconhecimento para aquilo que estavam produzindo. Estas novas formas de produção do conhecimento, herdeiras do marxismo e da psicanálise, relacionam-se às questões feministas (principalmente da segunda onda do feminismo), às demandas étnico-raciais e ao movimento homossexual do final da década de 1960. Aqueles grupos, até então objeto de estudos, passaram a ser sujeitos do conhecimento.

Ganharam relevância as questões das mulheres, homossexuais, negros, imigrantes das ex-colônias, prisioneiros, loucos, pessoas com deficiência, todos aqueles e aquelas que antes eram vistos como minorias ou anormais, mas que passam – progressivamente – a demandar direitos e questionar as disciplinas e suas teorias sobre eles/as. Exemplos são os de como as mulheres demandaram igualdade jurídica e direito de escolha sobre a concepção; homossexuais contestaram o diagnóstico médico que os qualificava de doentes; negros exigiram direitos civis no Sul dos Estados Unidos; o movimento anti-manicomial se expandiu; e a compreensão das “deficiências” físicas e mentais exigiu uma reconfiguração dos saberes, das instituições e, mais recentemente, a adaptação do espaço público às suas necessidades (MISKOLCI, 2014, p.7).

As novas pesquisas que daí surgiram buscavam problematizar a tendência, então adotada pelas ciências sociais, de essencializar as identidades. Isto ocorreu no início da década de 1970, logo após a retirada da homossexualidade do manual de diagnóstico de doenças mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM). Os primeiros estudos realizados por gays e lésbicas seguiram a lógica minorizante e o material teórico até então produzido por heterossexuais, os quais consideravam os desejos homoafetivos como desviantes e incorretos. Como foi apontado por Foucault (1999), a explosão discursiva dos séculos XVIII e XIX tanto permaneceu apontando a heterossexualidade e a monogamia heterossexual como regra

interna das práticas e dos prazeres, como também passou a interrogar a sexualidade das crianças, dos loucos, criminosos, o prazer dos que não amavam o outro sexo. Enfim, neste período, toda a variedade de sexualidades periféricas foi convidada a tomar a palavra para confessar as suas essências desviantes, as suas motivações obsessivas, as características típicas dos membros do seu restrito grupo.

Consonantes ao pensamento científico-sociológico essencializador, naturalizante e minorizante, os primeiros estudos feitos por pessoas gays e lésbicas, ao focarem seu discurso unicamente na homossexualidade, mantiveram a heterossexualidade intocada, inquestionável. De acordo com Miskolci (2014), é somente na década de 1980, quando da epidemia da AIDS e o pânico por ela causado, que pesquisas começaram a questionar este pressuposto. Interessante, a esta altura, relembrar o que Gayle Rubin diz nas linhas iniciais de seu texto “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade” (2003) quanto aos pânicos morais e sexuais:

Para alguns a sexualidade pode parecer um tópico sem importância, um desvio frívolo de problemas mais críticos como a pobreza, guerra, doença, racismo, fome ou aniquilação nuclear. Mas é em tempos como esse, quando vivemos com a possibilidade de destruição sem precedentes, que as pessoas são mais propensas a se tornarem perigosamente malucas sobre a sexualidade (RUBIN, 2003, p. 1).

As abordagens pós-estruturalista que surgiram em 1980, influenciadas pelos estudos de Jacques Derrida e Michel Foucault, romperam com a lógica dos estudos sobre minorias na compreensão das sexualidades homossexuais. De acordo com Bento (2014a), nos estudos por ela chamados de Transviados, os discursos médicos são entendidos e analisados enquanto discursos que limitam a existência da diversidade dos desejos, gêneros e sexualidades ao âmbito das estruturas fixas corpóreas, estabelecendo- se uma disputa epistemológica na qual o corpo torna-se “(...) um significante com múltiplos significados, uma estrutura estruturante em permanente processo de transformação” (BENTO, 2014a, p. 49). Surgiram, assim, os estudos Queer, que questionam a premissa de uma heterossexualidade natural do sexo e evidenciam o seu caráter compulsório por meio da pesquisa e análise das relações de poder que a instituem como hegemônica (MISKOLCI, 2014). Por décadas a referência básica de que se dispunha para explicar os trânsitos entre os gêneros foram os conceitos definidos pelo pensamento médico/psicológico.

De acordo com Bento (2014a), com a adesão de ativistas e acadêmicos a uma perspectiva de análise contrária à naturalização das identidades, aos binarismos identitários e à análise de tais discursos, passou-se a estabelecer novas possibilidades de interpretação. Ainda segundo a autora, com a desnaturalização das identidades, iniciada pelos estudos e políticas feministas, entendeu-se que as expressões de gênero, as sexualidades, as subjetividades só apresentam, de fato, uma correspondência/continuidade com o corpo quando a heteronormatividade é que orienta as relações. “A produção de seres abjetos e poluentes (gays, lésbicas, travestis, transexuais, e todos os seres que fogem à norma de gênero) e a desumanização do humano são fundamentais para garantir a reprodução da heteronormatividade” (BENTO, 2011, p. 554).

Heteronormatividade é um termo utilizado inicialmente por Michael Warner e Adrienne Rich e refere-se a uma crença da superioridade da orientação heterossexual, o que, segundo (IRIGARAY, 2010), implica a exclusão, quer seja de forma calculada ou não, de sujeitos não-heterossexuais de políticas públicas e também organizacionais. A presença desta norma heterossexual é o que, segundo Irigaray e Freitas (2013) explica, por exemplo: a quase total exclusão de gays e lésbicas da mídia, dos anúncios; a premissa de que homossexuais são fúteis, devassos, engraçados; e a inclusão da homossexualidade como assunto obrigatório quando se discute a pandemia de AIDS e não quando o tópico é direitos humanos, por exemplo.

Como aponta Miskolci (2009), a Teoria Queer desafia a Sociologia a não mais estudar apenas aqueles que rompem as normas (o que redundaria nos limitados estudos de minorias até então já realizados), nem apenas os processos sociais que os criam como desviantes, mas antes focar nos processos normalizadores marcados pela produção simultânea do hegemônico e do subalterno, do abjeto. Diferentemente dos estudos minoritários, a Teoria Queer não reproduz o modelo essencializante dos estudos étnico-raciais, à medida que busca ainda questionar a hegemonia heterossexual, traduzida em uma heteronormatividade, uma norma social hétero que rege as relações sociais e as configurações de sexo e identidades de gênero.

Para Bento (2011), este processo de desnaturalização desloca a explicação da constituição das identidades do sujeito para as genealogias dos discursos, responsáveis por dotar de humanidade apenas dois e excludentes modos de vida: “(...) ou você tem pênis ou vagina. Ou você é mulher ou é homem. Ou você é masculino ou

feminino, mas sejamos todos heterossexuais. Nada de ambiguidade, um horror a indeterminação” (BENTO, 2011, p. 558).

Abre-se assim a possibilidade para conceber a existência de mais que apenas dois tipos de sujeitos sexuais, heterossexual e seu “oposto” homossexual, como, por exemplo: travestis e transexuais (operados ou não); intersexuais; bissexuais;

crossdressers; homens que fazem sexo com outros homens, sem, no entanto, entenderem-se como homossexuais; e demais corpos que não se enquadram no binarismo de gênero e sexual. Enfim, uma ampla gama de sujeitos que permeia os extremos binários de macho/fêmea, heterossexual/homossexual, nos quais o “original” coloca-se em situação de superioridade aquele que dele destoa.

Em uma perspectiva psicanalítica, Butler (2003) contesta a premissa de que a heterossexualidade seja uma lei natural a ser seguida afirmando que:

A perspectiva alternativa sobre identificação que emerge da teoria psicanalítica sugere que as identidades múltiplas e coexistentes produzem conflitos, convergências e dissonâncias inovadoras nas configurações do gênero, as quais contestam a fixidez das posições masculina e feminina em relação à lei paterna. Com efeito, a possibilidade de identificações múltiplas (que finalmente não são redutíveis a identificações primárias ou fundadoras, fixadas em posições masculinas e femininas) sugere que a Lei não é determinante e que “a” lei pode até não ser singular (BUTLER, 2003, p. 103-104). Como afirma Pereira (2012, p. 373), “(...) o queer é, assim, tanto adjetivo (ou substantivo) como, mais apropriadamente, verbo. Um verbo que desenha ações e deslocamentos arriscados, delineando trajetórias múltiplas de corpos instáveis, provisórios e cindidos”. A possibilidade de mudança que se vislumbra é o que, de fato, incomoda as pessoas. A multiplicidade de configurações dos corpos e dos desejos, a possibilidade de transformação em si, denunciam a instabilidade dos corpos, a precariedade da heteronormatividade e da heterossexualidade como natural, hierarquicamente superior, coerente, privilegiada, inteligível. As experiências de trânsito entre os gêneros, para Bento (2011), demonstram que não há para nós e nossos corpos um destino pré-fixado. Pelo contrário, há corpos que escapam ao processo de produção dos gêneros reconhecidos por nossa sociedade como inteligíveis e, dessa maneira, à medida que revelam as múltiplas possibilidades de transformação, do corpo e também das normas, arriscam-se por desobedecerem tais normas. Para a autora:

O corpo-sexuado (o corpo-homem e o corpo-mulher), que dá inteligibilidade aos gêneros, encontra nas existências trans seus próprios limites discursivos, uma vez que aqui o gênero significará o corpo, revertendo assim um dos pilares de sustentação das normas de gênero. Ao realizar tal inversão, depara-se com outra “revelação”: a de que o corpo tem sido desde sempre gênero e que, portanto, não existe uma essência interior e anterior aos gêneros. (BENTO, 2014a, p. 52).

Também Veras e Guasch (2015) afirmam que o estigma e a abjeção travesti, representados pela confusão gerada por suas ambíguas marcas corporais, seus modos, seus seios de silicone, seus hormônios, “(...) surgem como ameaça à pretensa coerência do sistema sexo/gênero, à suposta inteligibilidade dos gêneros e à fictícia verdade das categorias homem/mulher” (p. 43). Dessa forma, se há uma situação de inconformidade das expressões de gênero de um sujeito, com base naquilo que se espera que ele cumpra por ser portador de determinado aparelho reprodutor, abre-se, segundo Bento (2011), uma possibilidade para que se desestabilizem as normas de gênero, que, por meio de violências físicas e/ou simbólicas, atuam em um processo de marginalização das práticas e dos sujeitos considerados humanamente anormais.

CAPÍTULO 4

LGBTTRABALHADORES: TRAJETÓRIAS DE VIDA E REPRESENTAÇÕES