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Controle de Convencionalidade quando há interseção entre sistemas

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4 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

4.3 Controle de Convencionalidade quando há interseção entre sistemas

Conforme mencionado, é difícil considerar, em termos práticos, os cenários onde os sis- temas interamericano e nacional não se conectam em nenhum ponto ou onde eles conec- tam-se tanto que passam a um fazer parte integralmente do outro. Por outro lado, numa aná- lise intermediária entre esses extremos, é possível considerar o cenário onde há interseção entre sistemas, em menor ou maior grau, e quais seriam os impactos dessa interseção para a aplicação do controle de convencionalidade.

Considerar que os sistemas possuem pontos de interseção direta não implica afirmar que eles não são sistemas autopoiéticos, pois cada sistema é capaz de existir e funcionar de forma autônoma. Em verdade, a interseção aponta mais para um contexto em que as influên- cias das particularidades normativas e jurisprudenciais de um sistema passam a influenciar a formação normativa e jurisprudencial do outro, fazendo com que normas mais semelhantes ao outro sistema tendam a gravitar mais próximo e sejam atraídas ao ponto de interseção, en- quanto normas profundamente distintas da realidade do outro sistema permanecem afasta- das do centro gravitacional de interseção. É o que pode ser demonstrado na imagem a seguir:

Figura 3 – Interseção entre Sistemas

Esse cenário apresenta uma série de situações e particularidades interessantes, as quais influenciam diretamente a aplicação do controle de convencionalidade. Inicialmente, toman- do por referência o elemento “E”, presente no sistema nacional, verifica-se que a aplicação do controle de convencionalidade nesse caso estaria muito próxima do cenário de ausência de interseção direta, na qual há uma tendência de a interpretação da norma ser bem mais influenciada pelo contexto do ordenamento jurídico interno e com ressalvas quanto à inter- pretação conforme as regras convencionais. Seria o caso, por exemplo, de um país com uma legislação bastante soberanista em matéria de Lei de Anistia de regimes de exceção, como foi a tônica em diversos casos no continente americano.

Cenário distinto é o caso do elemento “F”. A maior proximidade do ponto de interse- ção entre os sistemas contribui para que a interpretação conforme as normas convencionais seja mais verificável, o que pode ocorrer tanto da própria criação da norma, em um período de aproximação do Sistema Interamericano, quanto com uma paulatina mudança na inter- pretação jurisprudencial dos Tribunais internos por atração à jurisprudência da Corte Intera- mericana. Talvez um dos exemplos mais conhecido seja a figura da proibição da prisão civil do depositário infiel, matéria que, inclusive, chegou a ser tratada em normas constitucionais por alguns Estados americanos e passou a ser gradativamente revista, aplicando o controle de convencionalidade para se aproximar da tratativa presente no Pacto de San José da Costa Rica.

De outro plano, pode também o sistema nacional influenciar o Sistema Interamericano e alterar a jurisprudência da Corte, o que se verifica no elemento “C”. Nesse cenário, a apli- cação das normas convencionais pode se aproximar da interpretação conferida dentro dos Estados a certos temas, como é o exemplo da interpretação que a Corte Interamericana pas- sou a conferir para o conceito de terras comunitárias, bastante influenciada pelo novo cons- titucionalismo latino-americano de Estados andinos, com forte representação de populações indígenas.

Por fim, é possível que certas normas surjam ou passem a integrar-se dentro do ponto de interseção entre os sistemas. É o exemplo do elemento “D”, que se distingue do cená- rio de inclusão de um sistema como subsistema do outro, pois a elaboração e consolidação da norma é resultado de um esforço complementar dos distintos sistemas, em um processo de diálogo que permita o reconhecimento mútuo entre os sistemas de direitos humanos, o que garante a mais fácil aplicação do controle de convencionalidade tanto por parte da Corte quanto dos Tribunais nacionais, que estão cientes da participação do Estado na negociação das normas convencionais e da sua adequação ao restante de seu ordenamento jurídico. Po- de-se citar, nesse cenário, iniciativas como as recentes convenções que tratam do combate ao racismo e outras formas de discriminação e intolerância.

Esse cenário de interseção parcial entre os sistemas parece ser o mais verificável na realidade atual do contexto americano. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sem dúvida, evoluiu bastante nas últimas décadas, principalmente após o fim do período de re- gimes de exceção no continente americano, passando a interagir e dialogar, cada vez mais, com os sistemas nacionais de direitos humanos. Mesmo assim, a interação e interseção entre

eles ainda está em processo de consolidação, o que faz com que a efetividade do controle de convencionalidade varie a depender da matéria tratada e do grau de diálogo existente entre os distintos sistemas.

Nesse cenário, é necessário reconhecer as particularidades de cada contexto, sabendo verificar bem qual cenário de interação intersistêmica ocorre in casu, para, desse modo, evi- tar-se frustrações na aplicação da jurisprudência da Corte Interamericana, bem como garantir a consolidação e expansão da aplicação do controle de convencionalidade por parte dos Esta- dos americanos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A temática dos direitos humanos vem ganhando importância no continente america- no nas últimas décadas e a crescente participação dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem sido acompanhada por uma interação cada vez mais intensa entre os Estados e seus órgãos. Nesse contexto, é preciso buscar compreender melhor quais os ele- mentos que influenciam a interação intersistêmica entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e os Tribunais internos.

É patente a importância da aplicação do controle de convencionalidade por parte dos Estados, principalmente por seus tribunais internos, para garantir a efetividade das convenções interamericanas, contudo nem sempre é claro qual o melhor caminho para a efetivação de tal controle e quais elementos dificultam a sua aplicação. Não há dúvida, entre- tanto, de que o diálogo entre os distintos níveis é essencial para o funcionamento do controle de convencionalidade, conforme aponta Victor Bazán ao afirmar que:

Uma significativa via de articulação consiste no traçado de linhas de cooperação dos tri- bunais internos e a Corte IDH e na prefiguração de um “diálogo judicial” entre eles, de ordem que os órgãos máximos de justiça constitucional dos Estados integrados ao sis- tema da CADH acatem com os standards fixados pelo Tribunal Interamericano, mas que correlativamente este tenha presente as observações que desde os contextos jurisdicio- nais nacionais se formulem a seus critérios jurisprudenciais. Isso é assim para fortalecer qualitativamente a tutela multinível dos direitos humanos e diminuir os riscos de even- tuais dificuldades no funcionamento concreto do controle de convencionalidade (2015, p. 37-38, tradução nossa).9

O acatamento a certos standards fixados pela Corte Interamericana, todavia, não ocor- re sempre de forma automática, variando sensivelmente a considerar o grau de interseção e interação intersistêmica existente entre o sistema nacional e o interamericano. Assim, para compreender a real efetividade de uma exigência da Corte para que Tribunais internos apli- 9 No original: “Una significativa vía de articulación consiste en el trazado de líneas de cooperación de los tribunales internos y

la Corte IDH y en la prefiguración de un “diálogo judicial” entre ellos, en orden a que los órganos máximos de justicia consti- tucional de los Estados integrados al sistema de la CADH acaten los estándares fijados por el Tribunal Interamericano, pero que correlativamente éste tenga presente las observaciones que desde los contextos jurisdiccionales nacionales se formu- len a sus criterios jurisprudenciales. Ello así para fortalecer cualitativamente la tutela multinivel de los derechos humanos y disminuir los riesgos de eventuales dificultades en el funcionamiento concreto del control de convencionalidad”.

quem o controle de convencionalidade, é importante saber se há interseção entre a esfera interamericana e a nacional na interpretação da norma alvo do controle e, se houver, qual sua abrangência.

Nesse contexto, apresenta-se, como um cenário mais realista e de fácil verificação a situação da existência de pontos de interseção entre o Sistema Interamericano e os sistemas nacionais de direitos humanos, porém persistindo ainda matérias específicas que são tratadas de maneira bastante diversas pelos distintos sistemas, as quais muitas vezes constituem os maiores desafios para a realização de uma coordenação entre a interpretação da Corte Intera- mericana e dos Tribunais nacionais. É preciso prosseguir, portanto, com bastante cautela, bus- cando vislumbrar de maneira bastante clara os distintos cenários, para não frustrar a eficácia do controle de convencionalidade.

É certo que outros fatores influenciam tal eficácia – relativismos culturais, discursos políticos de certos Estados, menor abrangência da temática de direitos humanos nas cortes internas são alguns desses exemplos. É, todavia, um ponto de partida crucial compreender a natureza da relação intersistêmica na matéria específica. Sem isso, é possível que sejam adotadas interpretações bastante abrangentes do controle de convencionalidade por parte da Corte Interamericana que não são acompanhadas pelos Tribunais nacionais, não por uma rejeição da jurisprudência da Corte, mas por uma ausência ou fragilidade da interseção da temática conforme é abordada no âmbito interamericano com a prática nacional.

A eficácia do controle de convencionalidade, portanto, não deve ser fragilizada por ní- veis distintos de interação intersistêmica. Em verdade, é necessário compreender quais os diferentes cenários apresentados e buscar avançar no diálogo em diversos níveis de maneira adequada, para que tanto sejam respeitadas as recomendações e decisões da Corte Intera- mericana quanto os Tribunais internos possam reconhecer nas convenções interamericanas elementos comuns a seus ordenamentos, que facilitem seu trabalho hermenêutico.

Toda essa preocupação com a aplicação do controle de convencionalidade está focada no cuidado maior em garantir a aplicação dos direitos humanos da forma mais benéfica pos- sível aos indivíduos. Sabe-se que muito da evolução da temática de direitos humanos, nas últimas décadas, tem sido no sentido de garantir a aplicação das normas mais benéficas aos indivíduos, os quais têm, cada vez mais, protagonismo na esfera internacional. O funciona- mento adequado do controle de convencionalidade, portanto, deve servir para garantir mais ainda o acesso desses indivíduos a tais direitos.

Não há solução simples nem interpretação absoluta quando a temática é direitos huma- nos, muito menos na interação entre seus distintos sistemas, não sendo o Sistema Interameri- cano de Direitos Humanos exceção nesse cenário. Considerar os distintos graus de interseção entre os sistemas quando da aplicação do controle de convencionalidade, contudo, é uma efetiva ferramenta para evitar surpresas e frustrações na relação entre as diversas cortes en- volvidas.

6 REFERÊNCIAS

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http://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2019.13.129-151

Violações a Direitos Humanos por Empresas

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