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2.2 Percurso metodológico: uma inspiração etnográfica

2.2.3 Conversas com as crianças

As conversas com as crianças aconteceram no Centro Social Lumen nos períodos em que elas estavam participando de alguma atividade na instituição. Devido aos horários das atividades, dividi as seis crianças em duplas para realizar as conversas profundidade. As duplas foram montadas de acordo com a afinidade e a idade das crianças: as meninas que eram da mesma turma da catequese se dividiram em duas duplas e as crianças do surf formaram a outra dupla. Desse modo, as duplas formadas foram: Melody e Lis (10 anos), Monalisa e Mirela (11 anos), Gabi e Cauê (12 anos).

Optamos por não utilizar o termo entrevista com as crianças considerando que a estrutura rígida de pergunta-resposta pudesse deixá-las inibidas ou até mesmo constrangidas. Assim, elas foram convidadas para participar de uma conversa e não de uma entrevista formal. Apesar de utilizarmos um roteiro com as temáticas pré-definidas, nosso contato com as crianças esteve mais próximo da conversa, pois foi mais flexível e dialógico do que uma entrevista.

Alguns autores, como Rocha (2008), por exemplo, criticam o uso da entrevista individual com crianças, pelo menos como metodologia única. Nesta pesquisa, as conversas

não foram feitas de forma individual, mas em duplas na tentativa de atenuar os possíveis constrangimentos entre pesquisador e crianças. Ainda que as conversas não fossem individuais, algumas posturas foram adotadas para minimizar, ao máximo, algum constrangimento ou prejuízo às crianças. A primeira delas foi a de não utilizar um roteiro impresso no momento da conversa com elas, desse modo foi possível diminuir a sensação de entrevista e aproximar a estratégia de uma conversa informal, além de não deixar a criança ansiosa pela quantidade de perguntas. O roteiro estava disponível no meu celular, caso fosse necessário consultá-lo em algum momento da conversa. Outra postura adotada foi a de não sentar frente a frente, mas lado a lado, na tentativa de não assumir a postura de interrogador e fazer com que as crianças buscassem respostas corretas.

Rocha (2008) pondera que a entrevista com criança não é adequada, pois provoca constrangimento de várias ordens – geracionais, de classe, gênero etc. – além de manter relações hierárquicas de poder. Apesar de concordar que o uso da entrevista individual não é a melhor estratégia com criança, pelo menos não como única, argumento que relações de poder também estão presentes no uso de outras metodologias, de forma mais visível ou não. No uso de desenhos, por exemplo, a criança tem liberdade para desenhar o que deseja, mas cabe ao pesquisador o “poder” de interpretá-los. No uso de grupos de discussão, é certo que as crianças se fortalecem na presença de seus pares, mas também o pesquisador assume o papel de condutor. Desse modo, ao invés de apontar uma estratégia como totalmente inadequada, considero mais apropriado discutir e assumir as relações de poder presentes em qualquer processo de pesquisa e tomá-las como parte dos dados produzidos.

As conversas duraram em torno de 40 minutos a uma hora, em uma sala do centro social, e eram captadas com gravador de áudio. No início, as crianças reagiram ao gravador de formas distintas. Algumas pediam pra escutar suas próprias vozes, outras ficavam tímidas e falavam baixo, na tentativa de não terem as vozes captadas pelo aparelho. Senti, então, a necessidade de explicar novamente qual era a razão de usar o gravador. Expliquei que as informações que elas estavam me dando eram muito importantes para o meu trabalho e que não teria condições de anotar ou memorizar tudo, então estava usando o gravador para me ajudar. Enfatizei que ninguém, além de mim, escutaria aqueles áudios e que, portanto, elas não precisariam se preocupar. Com tempo, elas ficaram mais relaxadas com o gravador e, em alguns momentos, até esqueciam que estavam sendo gravadas.

As conversas foram realizadas em três momentos, divididas por subtemas: a) caracterização das crianças e consumo midiático, b) percepções gerais sobre público e privado e c) exposição de si nos sites de redes sociais. Para facilitar a conversa, antes de iniciar com as

questões, utilizei dinâmicas para introduzir a temática daquele encontro. Desse modo, o uso de dinâmicas também foi uma estratégia metodológica, pois ao conversar com as crianças em grupo, nos deparamos com uma dificuldade: muitas vezes elas não levam a sério aquele encontro, respondem a primeira coisa que vem à cabeça ou simplesmente repetem o que outras crianças falam. Assim, era muito fácil que elas se distraíssem com conversas paralelas e brincadeiras entre elas. As dinâmicas, portanto, foram pensadas como uma oportunidade de motivá-las a participar da conversa. Além disso, elas já introduziam algumas questões importantes para a pesquisa.

No primeiro encontro, realizamos uma dinâmica com ícones de aplicativos de internet para que as crianças pudessem identificar a que se referiam e dizer quais daqueles aplicativos elas conheciam e se deles faziam uso. Os ícones escolhidos foram os dos aplicativos: Facebook, Instagram, Whatsapp, Twitter, Snapchat, Gmail, Google, YouTube, Mozilla, Internet Explorer e Google Crome. Durante a dinâmica, as crianças se animavam quando conheciam os aplicativos e, às vezes, recriminavam o colega que não conhecia. Permiti que eles discutissem entre si a razão de conhecerem ou não aquele aplicativo, mas solicitava à criança que conhecia que explicasse ao colega como aquele site, rede social ou navegador funcionava. Assim era possível perceber o nível de conhecimento que as crianças tinham sobre os aplicativos e quais usos faziam deles.

A dinâmica do segundo encontro foi relacionada com o uso de imagens de rede social. Levei uma moldura feita de papelão, como um porta-retratos, para que pudéssemos refletir sobre as fotos de perfil em sites de redes sociais. Pedi às crianças que, usando a moldura, reproduzissem como elas achavam que deveria ser uma foto de perfil. Essa foi a dinâmica que levou mais tempo, pois as crianças se identificaram com a atividade e permaneceram muito tempo fazendo poses e argumentando entre si quais eram as melhores. Com essa dinâmica foi possível observar quais eram os tipos de fotos que elas mais gostavam de ver e de produzir.

A dinâmica do terceiro encontro tinha o objetivo de classificar imagens como públicas ou privadas. Apresentei às crianças fotos de pessoas em diferentes situações (com família, amigos, selfie17, com a farda da escola, em frente sua casa e de biquíni). As crianças podiam analisar os conteúdos em conjunto e decidir quais deles seriam considerados como conteúdos privados e quais eram considerados como públicos.

Após a realização das conversas, propomos uma pequena oficina sobre uso seguro da internet com as crianças, tendo em vista as dificuldades, apresentadas por elas, de realizar

17 Palavra em inglês, junção do substantivo self (eu, a própria pessoa) e o sufixo ie, que significa uma fotografia que alguém tira de si mesmo, em geral com smartphone ou webcam.

algumas atividades na internet e de compreender alguns aspectos das plataformas digitais, como será apresentado mais adiante. Nosso propósito foi o de abordar algumas das lacunas identificadas no relato das crianças e, junto com elas, explorar as funcionalidades dos sites de redes sociais.

Dois aspectos contextuais, entretanto, dificultaram a realização da oficina planejada com as crianças. O primeiro aspecto foi o fato da presença das crianças nas atividades do centro social e também da pesquisa oscilar. O segundo aspecto diz respeito à estrutura do centro social que, no momento da pesquisa, não contava com conexão à internet.

Na data marcada para a oficina, apenas duas meninas apareceram. Como as crianças se conheciam e conviviam semanalmente, indaguei se as meninas sabiam a razão das demais crianças não terem aparecido, mas elas não souberam responder. Como já foi relatada, a presença das crianças nas atividades variou, o que não caracteriza esse fato, portanto, como um caso isolado.

Mesmo com duas crianças, tentamos realizar a oficina, mas a infraestrutura do centro social dificultou a realização da atividade. Por não contar com conexão, a oficina aconteceu muito mais como a exposição de dados e informações, por meio de uma apresentação em slides, do que uma exploração mais ativa das interfaces dos sites de redes sociais. Apresentamos às duas meninas um conjunto de dados sobre os usos que as crianças brasileiras fazem da internet para que elas observassem o quanto seus usos estavam em consonância com os de outras crianças espalhadas pelo país.

Além disso, assistimos a alguns vídeos sobre os riscos e as oportunidades presentes no uso dos sites de redes sociais, para que elas pudessem refletir sobre suas publicações na rede. Os vídeos despertaram o interesse das crianças, muito mais do que a apresentação de dados, já que exemplificavam melhor o contexto e a temática que estava sendo abordado por nós durante aquele período. Os comentários feitos pelas meninas sobre os vídeos e os dados de pesquisa foram gravados, mas não foram utilizados diretamente nesta pesquisa, mas colaboraram para a construção deste texto.

Nosso tempo para realizar a atividade foi curto e, dessa forma, não conseguimos concluir todas as atividades que haviam sido pensadas. Tínhamos a pretensão de explorar as interfaces das páginas do Facebook e, junto com as crianças, ir pontuando a utilidade de algumas funções da plataforma, mas o tempo e a impossibilidade de conexão inviabilizaram a atividade.

Considerando o compromisso do pesquisador em fazer uma devolução de dados aos participantes da pesquisa (KRAMER, 2002), a proposta de oficina será mantida e utilizada

como recurso para apresentar às crianças os dados da pesquisa. Devido ao limite da condição de acesso à internet no local, vamos procurar montar uma estrutura de oficina que não necessite de conexão.

Além do compromisso em apresentar os dados da investigação, o pesquisador na pesquisa com crianças deve assumir outros compromissos e posturas. Esses aspectos, bem como suas implicações, serão discutidos no próximo tópico.