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1.2 A Pós-modernidade e a ‘retrotopia’ na educação

1.2.4 Convivência ética na escola: o que considerar

Inúmeros autores, de diferentes países, têm contribuído com estudos e pesquisas que identificam as características de uma educação que busque garantir uma qualidade ética para o tipo de convivência escolar socialmente desejável e necessária para a vida planetária. Temos buscado conhecer de maneira mais aprofundada as experiências espanholas, desenvolvidas a partir de implementação de políticas públicas nacionais direcionadas para o combate à violência escolar e, portanto, voltadas para a convivência ética nas instituições educacionais. Sendo

assim, traremos, a seguir, ideias e propostas de alguns autores e pesquisadores que se debruçam sobre a temática da convivência e da educação moral nas escolas. Martínez et al. (2003) apresentam e defendem quais dimensões devem ser consideradas em um trabalho de educação moral voltado para a autonomia, contribuindo para uma convivência ética na escola. São elas:

a- As relações interpessoais; b- As tarefas curriculares; c- A cultura escolar; d- O espaço comunitário.

A. A dimensão das relações interpessoais.

A atenção para esse primeiro espaço está voltada muito mais para a qualidade das relações estabelecidas entre professores e alunos, assim como entre pares, do que para a multiplicidade e diversidade das relações que existem na escola. Martínez, Puig e Trilla (2003) destacam que a escola tem dirigido seu olhar disciplinador para com as relações e que melhor seria analisar menos os alunos e criar mais vínculos afetivos com eles. Os autores defendem que em uma relação educacional autêntica não se deve visar somente a disciplina imposta, mas sim o reconhecimento dos laços morais existentes e que têm dupla direção: a responsabilidade do adulto sobre o jovem e do respeito do jovem pelo adulto. Didaticamente os autores (MARTÍNEZ; PUIG; TRILLA, 2003. p.71), apresentam três elementos que compõem uma relação educacional autêntica:

a) o encontro

b) o encontro de acolhimento e reconhecimento

c) o encontro que gera qualidades morais de responsabilidade e respeito.

Martínez, Puig e Trilla (2003) inferem sobre a necessidade de se qualificar os contatos entre professor e aluno, transformando-os em encontros onde haja por parte do professor uma postura de acolhimento, reconhecimento e aceitação desse sujeito aluno. Tal postura não deve ser confundida, porém, com passividade. Mas encarada como uma possibilidade real de disposição e disponibilidade para com a formação. Destacam que a entrada no mundo social deve se dar por meio do acolhimento e do reconhecimento: “A socialização depende de alguém estar disposto a receber e reconhecer: de alguém estar disposto a se relacionar afetivamente [...]” (MARTÍNEZ; PUIG; TRILLA, 2003, p. 70, tradução nossa).

A. O espaço das tarefas curriculares. – A apropriação racional da moral

Essa dimensão do modelo de educação moral proposto por Martínez et al. (2003), tem a atenção voltada para as tarefas desenvolvidas em sala de aula, cuja intenção poderá ser exclusiva, ou não, ao trabalho sobre os valores moral. Assim, tais tarefas podem estar distribuídas de forma transversal, por todas as matérias curriculares, destinar-se um tempo exclusivo para o que chamam de aulas de “tutoria” ou reflexão ética, ou ainda, oferecer-se uma matéria eletiva, com tempo e espaço exclusivos de trabalho voltado às questões morais. Quanto ao conteúdo dessas tarefas curriculares, os autores apontam três grandes blocos:

➢ questões pessoais ou socialmente relevantes;

➢ as disposições que constituem a moralidade humana; ➢ elementos básicos da cultura moral de uma sociedade.

Consideram que os próprios blocos de conteúdo estabelecem alguns objetivos da formação moral: aprender a considerar reflexiva e criticamente questões conflitivas da vida pessoal e social, desenvolver as diferentes capacidades da moralidade, bem como, predispor os alunos a usá-las corretamente em situações de deliberação moral e, finalmente, conhecer, apreciar e usar um conjunto de conceitos e elementos essenciais de uma cultura moral – nessa perspectiva, a cultura moral reflete as ações e comportamentos socialmente desejáveis, mais habituais, presentes em uma comunidade; o reflexo de relações éticas duradouras e cristalizadas ao longo do exercício permanente do respeito mútuo. Os autores fazem um paralelo sobre o desenvolvimento cognitivo e o moral como condições de adaptação: “Se a inteligência nos permite conduzir um processo de adaptação ideal ao ambiente físico e cultural, a inteligência moral11 nos permite adaptar e, ao mesmo tempo, otimizar nosso relacionamento com o ambiente social” (MARTÍNEZ; PUIG; TRILLA, 2003, p. 72). Alertam sobre a inadequação de um trabalho de doutrinamento ou de transmissão de conhecimento, quando se pretende espaços escolares destinados ao trabalho de educação moral voltada para a construção da autonomia e de personalidades éticas.

Martínez, Puig e Trilla (2003) também pontuam matérias cujo trabalho com valores seria mais compatível e possível de se realizar, como a Educação Física, a Leitura e Literatura, o Cinema e a Televisão, as Ciências Sociais e a Filosofia. Por fim, propõem um número de horas semanais para a educação moral, distribuídas em: horas de atendimento individual e para

11 Cabe-nos ressaltar que, a perspectiva piagetiana do desenvolvimento não considera a existência de

diferentes tipos de inteligência, portanto, de uma inteligência moral. O que os autores nominam como ‘inteligência moral’ refere-se ao conceito de autonomia moral defendido por Piaget, ou seja, à capacidade humana de coordenar reciprocamente, diferentes perspectivas, tomando decisões em que o individualismo não se sobreponha ao coletivo.

famílias; horas para reuniões entre a coordenação e os demais tutores. É evidente que o destino de horas de estudos, sugerido pelos autores, indica uma perspectiva de educação moral que considera a relevância da parceria entre as duas instituições sociais: a família e a escola. Trata- se de uma visão contrária à doutrinação ainda presente na educação meramente discursiva e transmissiva. Estreitar laços com as famílias contribui para que as relações junto à escola, sejam pautadas em princípios morais defendidos pela instituição. É estender para as famílias, o exercício diário dos valores, ressaltando na prática, a relevância da convivência ética na sociedade como um todo, em uma perspectiva planetária. Nessa direção, a matriz curricular da Espanha, já contempla uma disciplina para o trabalho com os valores e a convivência. Trata-se de Política Nacional de Educação a garantia desse espaço/tempo. No Brasil, temos iniciativas isoladas por parte de escolas, o apoio ainda tímido de algumas redes públicas para a mudança de uma matriz curricular. Nosso trabalho junto às escolas tem sido de defender intensamente a figura e a existência na instituição do professor tutor, porém, sob uma ótica mais ampla daquela tomada por muitas instituições. Em geral, no Brasil, o professor tutor atua quase que restritamente junto ao desempenho escolar dos estudantes. Escolhemos, portanto, a terminologia de professor de referência para o profissional que ocupar o papel de lidar com os conflitos e o desenvolvimento dos valores morais. No entanto, ao professor de referência cabe difundir no dia a dia da escola práticas e posturas que tanto inspirem os colegas e alunos, quanto mobilizem a todos para uma mudança na qualidade das relações. Sendo assim, não se trata de desenvolver o trabalho somente durante as aulas destinadas para essas temáticas. Mas, sobretudo, de auxiliar efetivamente na promoção de uma convivência respeitosa entre todos da comunidade.

Martínez et al. (2003) enfatizam o papel do professor/tutor. Esse papel pode ser desenvolvido por professores considerados de referência na perspectiva dos alunos e que demonstrem perfil de abertura e compromisso para com estudos e atuação na dimensão das relações interpessoais da escola. Ao professor/tutor cabe também, o papel de incentivador e condutor do processo dialógico que norteia o trabalho da educação moral, sendo, portanto, necessário impulsionar a formação inicial e permanente dos colegas professores, com uma dedicação voltada para as questões relacionadas com a educação em valores.

B. O espaço da cultura escolar.

Tal dimensão refere-se à criação de relações moralmente estáveis e duradouras. Que perdurem diante dos conflitos diários, deles extraindo oportunidades de revisar continuamente

as práticas da escola com vistas ao pleno desenvolvimento moral, intelectual e social dos sujeitos. A tese defendida pelos autores aponta para os efeitos que o todo da instituição educativa exerce na construção da personalidade moral. Sendo assim, a atmosfera da escola, os valores que expressa, serão traduzidos em atitudes e hábitos pessoais. Quanto mais a escola oferecer espaços de convivência e atividades que incitem a prática dos valores, mais estará impulsionando um processo real de implantação de hábitos e atitudes. Os autores definem instituição educativa como um “sistema de práticas pensadas expressamente para educar” (MARTÍNEZ; PUIG; TRILLA, 2003, p. 75). Coerentemente, as práticas morais são definidas e defendidas como sendo o exercício planejado e sistemático de todas as atividades que, se bem desenvolvidas, expressam valores que serão cristalizados em hábitos. O incentivo ao aprender, ao debater, ao se organizar, simultaneamente relacionados aos valores – aprender cooperativamente, debater respeitosa e racionalmente e organizar as salas respeitando-se os diferentes turnos que dela farão uso. Aprendizagem e formação ao mesmo tempo. Nesse nível, os autores também incluem a necessidade de se abrir a escola para a comunidade, não só no sentido físico (permitindo a utilização dos espaços físicos da escola pela comunidade, nos finais de semana) mas que sejam promovidas atividades de dupla direção: na e para a comunidade. A escola tanto participar da vida da comunidade, como oferecer espaço de convívio para ela. Finalmente propõem a criação de uma nova figura educativa, mesclando o perfil do pedagogo com o de um agente sociocultural, sendo responsável por coordenar e impulsionar as propostas de interação com a comunidade, atividades não curriculares, bem como o de coordenar os demais tutores e organizar um ‘Plano de Ação Tutorial’. Tal Plano, integra as atribuições da orientação escolar, atentando para as questões ligadas ao conhecimento e às relações sociais, buscando atender à diversidade do alunado, considerando as variáveis que podem interferir no processo de desenvolvimento escolar e social, bem como, na formação ética dos estudantes. Nessa direção, de maneira articulada com os diferentes atores da comunidade escolar, (incluindo aqui, as famílias), o Plano de Ação Tutorial prevê, para a escola, uma dinâmica de interações em que as diferentes aprendizagens são favorecidas. Podemos inferir que nesse nível de atuação correspondente ao que os autores chamaram de cultura escolar, situam-se as normas de convivência. A maneira como são concebidas e praticadas as regras, bem como, são resolvidos os conflitos, refletem e contribuem para a construção da cultura escolar, podendo essa ser orientada por relações éticas, democráticas e equilibradas, constituintes da cultura de paz, ou, para a presença marcante de relações desiguais e coercitivas, revelando uma cultura do autoritarismo. Sendo assim, são benvindas na dinâmica escolar, as práticas que demandem o exercício do diálogo; e pertinente, a adoção dos mais diversos sistemas de apoio entre pares,

como estratégias para viabilizar e favorecer o protagonismo dos alunos, por meio de diferentes estruturas de participação e gestão. Os sistemas de apoio entre iguais (SAI) são compostos por estudantes que atuam na escola de maneiras distintas: na recepção de novos alunos; na ajuda em geral com informações e orientações referentes à dinâmica da instituição; na mediação dos conflitos; na tutoria de estudos e atividades escolares. De maneira intencional e planejada, cada um dos sistemas de apoio entre iguais, dá destaque aos alunos na gestão de sua própria convivência (AVILÉS MARTÍNEZ, 2017).

C. Espaço comunitário.

Acerca dessa dimensão, Martínez et al. (2003) discorrem mais detalhadamente sobre o trabalho na e com a comunidade, destacando uma participação crítica e reflexiva tanto no que se refere ao “o que” buscar, como ao “o que” oferecer para a comunidade. A essência estaria na experiência ativa da educação moral, quando ligada ao exercício da prática social. O conhecimento de experiências oferecidas pela comunidade, assim como a preparação dos alunos para uma atuação eficaz em seu entorno.

Sobre essa dimensão, acrescentamos a metodologia da Aprendizagem-Serviço (ApS) que representa uma estratégia cada vez mais utilizada no universo educacional. Trata-se de uma proposta educacional que combina processos de aprendizagem e serviço comunitário, em um único projeto, bem articulado. Os participantes aprendem trabalhando nas reais necessidades do ambiente em que vivem, para melhorá-lo. Não se trata de isolar duas ações diferentes, mas, ao contrário, serviço e aprendizagem se fundem no mesmo projeto (URUÑELA, 2018).

Puig (2000), retrata quais vias de trabalho em uma escola devem ser consideradas quando a convivência ética e a promoção da autonomia são intencionais e, portanto, merecedoras de planejamento.

Embora apresente três vias diferentes, ressalta que são inter-relacionadas (PUIG, 2000). São elas:

• A via interpessoal, que trata da maneira de ser e de fazer dos educadores, o que compõe um conjunto de influências especialmente sobre a relação que estabelecem com seus alunos.

• A via curricular, que diz respeito ao planejamento e à execução de atividades programadas especificamente para trabalhar a formação moral dos alunos.

• E, por último, a via institucional, constituída por atividades educativas organizadas pela escola e para as aulas, tendo como pressuposto a participação democrática.

Concordamos com a perspectiva dos autores espanhóis principalmente porque destacam nas dimensões a serem consideradas no planejamento da convivência, elementos de essencial relevância para a construção e manutenção de um clima escolar favorável para as aprendizagens. No entanto, julgamos necessário evidenciar os elementos que constituem o clima escolar, bem como, o que consideramos como clima escolar positivo e favorável para o fazer educativo.