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Convivendo com os pequenos: tempo, espaço e a relação adulto/criança

4 PRÁTICAS SOCIAIS E APRENDIZAGEM

4.2 Convivendo com os pequenos: tempo, espaço e a relação adulto/criança

Para adentramos na temática do Lazer e da Aprendizagem no contexto pataxó, convêm indagar sobre a relação tempo/espaço nas sociedades indígenas e urbanas. Ao tratar deste assunto, Angela Nunes (2002) lança luz sobre as relações espaço-temporais experimentadas pelas crianças A´uwe-Xavante.

A fase correspondente à infância é marcada pelo que consideramos ser uma enorme liberdade na vivência do tempo e do espaço, e das relações

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societárias que por meio destes se estabelecem, antecedendo ao período de transição para a idade adulta que, então, inaugura limites e constrangimentos muito precisos (NUNES, 2002; p.65).

A autora acrescenta ainda que essa liberdade vivênciada pelas crianças xavantes permite a elas uma melhor compreensão de seu universo pela partilha do social (NUNES, 2002).

Essa liberdade experimentada pelas crianças nos contextos indígenas, por vez assume um importante papel de mediadoras dos diversos grupos sociais. Esse aspecto é colocado em relevo por Tassinari (2007; p.20) quando cita diversos exemplos em sociedades indígenas onde as crianças desempenham o papel de informantes e mediadoras entre os adultos. No Guarani as crianças levam recados, encomendas, marcam encontros e estabelecem a comunicação entre as pessoas da aldeia e, às vezes, até fora dela.

Mibkoy (6), Txakin (7), Goyá (5) e Tawá (7) jogavam futebol em frente a casa de Tapuritú quando a partida foi interrompida por alguns minutos. Koriê, motorista da ambulância trazia as contas de energia de algumas casas do Guarani e pediu a Mibkoy para entregar as contas do senhor Nitinawã, seu avô, e Tapuritú seu tio. Txakin ficou incubido de entregar as contas de Epotôy, sua tia, e Tsiápa sua avó.

Notas de campo, 20 de abril de 2010

Essas funções também são observadas por COHN (2000) entre as crianças Xikrin do Bacajá, um subgrupo Kayapó. Segundo a autora essa função de mensageira é atribuída às crianças, pois os Xikrin consideram que as crianças não possuem o pia’am (vergonha e respeito), que caracteriza a relação dos adultos entre si (COHN, 2000; p.71). Também entre os Maxakali, as crianças pequenas circulam livremente entre todas as casas, ocupam o pátio central da aldeia com suas brincadeiras e são as mensageiras entre os diversos grupos familiares; transmitindo recados e circulando pequenos objetos, notícias e acontecimentos entre as casas (ALVARES, 2004, p.54).

Esse trânsito livre experimentado pelas crianças indígenas permite que estas tenham acesso a diversos espaços em suas aldeias. Segundo Cohn (2000) um exemplo da autonomia e do processo de aprendizagem das crianças Xikrin está representado no termo mari, que na língua Kayapó, significa ouvir, fazer sentido, compreender, ensinar e aprender. O processo de aprendizagem Kayapó envolve não só a transmissão de saberes, mas o fortalecimento dos órgãos sensoriais. Segundo a autora, os Kayapó dizem que as crianças ―tudo sabem por que tudo vêem e ouvem‖ (COHN, 2000; p. 180). Esse processo de aprendizagem facilitado pelo acesso aos diferentes espaços está ligado

98 à relação de proximidade entre crianças e adultos. Entre os A‘wue-Xavantes, Nunes (2002) afirma que a vivência do cotidiano das crianças não se distancia muito da dos adultos, embora seja realizada de modo diverso (NUNES, 2002; p.69). Para abranger a discussão sobre tempo e espaço nos contextos indígenas a autora, faz ainda um paralelo com o distanciamento existente entre adultos e crianças em sociedades urbanas.

Faz-se necessário ressaltar que ao nos referenciarmos aos contextos urbanos é preciso cautela para evitar generalizações precipitadas. Em sua pesquisa realizada em dois bairros de Belo Horizonte, Debortoli et al (2008) chama a atenção para as particularidades dos diferentes espaços da cidade. No bairro Belvedere, considerado um refúgio da elite econômica belorizontina, as relações adulto/criança são marcadas pelo distanciamento. Segundo o autor a lógica dos edifícios opulentos, com ―diversos equipamentos de lazer‖, deixa em segundo plano a reunião das pessoas (DEBORTOLI et al, 2008, p.39). Sobre a apropriação do espaço público neste contexto abastado o autor destaca ainda a escasses de relações espontâneas, de atividades que não acontecem fora de espaços e horários predeterminados. Fazendo um contraponto a isso, o bairro Confisco, constituído pela periferia deserdada da cidade, tem suas ruas como um espaço público, com possibilidade de encontro e trocas, mesmo que de forma e sentido nostálgico (DEBORTOLI et al, 2008; p.35).

Esse paralelo entre o contexto urbano e indígena é feito mais claramente por Carvalho (2007) ao realizar o trabalho de campo de sua pesquisa de mestrado no Taquaril, na periferia da cidade de Belo Horizonte, e no Imbiruçu, uma das aldeias pataxó da Terra Indígena Fazenda Guarani. Voltando o olhar sobre o repertório lúdico das crianças destes dois contextos o autor descreve as relações destas crianças com seu entorno:

Taquaril

Administrando suas rotinas, as crianças brincam de muitas coisas e conhecem muito da comunidade, fazem da sua permanência e circulação pelas ruas um tempo para cartografar os diferentes espaços de brincar (CARVALHO, 2007; p.122)

Imbiruçu

Uma característica marcante na compreensão dos usos dos espaços nas brincadeiras das crianças pataxó é o fato de esses serem ambientes da natureza. As crianças brincam e convivem em meio às àrvores, aos rios, à horta, aos animais. A natureza está envolvida em seu cotidiano e em suas tarefas. (CARVALHO, 2007; p.114)

99 Em ambas as passagens ficam implícitas a liberdade e o conhecimento das crianças dos espaços onde vivem e a suas apropriações através do brincar. Essa riqueza lúdica e uso autônomo dos espaços são carateríticas marcantes entre as crianças pataxó do Guarani. Esse fato é corroborado por Cardoso (2000) ao afirmar que:

as crianças são criadas de forma bem solta e sem muita repreensão, correndo para todos os lados, subindo em árvores, usando e abusando da pouca água

que corre pelos pequenos cursos d‘água que cortam a área da Reserva.

Geralmente as crianças mais velhas tomam conta dos mais novos, ainda que tenham apenas 6 anos de idade. (CARDOSO, 2000, p.71).

Outra caracterítica recorrente dos contextos indígenas é a disposição de tempo e atenção dos adultos para suas crianças. Seja nas tarefas domésticas, nos trabalhos agrícolas, na caça ou nas brincadeiras há um notável dispoimento dos adultos para participação das crianças. Entre os Xavantes, Nunes (2002) chama atenção para o comportamento da mãe diante da filha na lavagem de roupas e panelas no rio.

Lembro-me de um dia estar voltando do rio com uma mulher e sua filha de 4 ou 5 anos, a mãe levando uma cesta com roupa acabada de lavar, e a menina, atrás dela, levando uma cesta com pratos de alumínio e uma panela, igualmente lavados. Ao subir o pequeno barranco, a menina derruba tudo no chão de areia. Ao ouvir o barulho, a mãe volta-se para ver o que tinha acontecido, e depois olha pra mim. A menina não fica nem um pouco constrangida, e, enquanto a mãe pousa sua carga no chão e continua a conversar comigo, a menina vai levando de novo as coisas para o rio, para passar tudo pela água mais uma vez, fazendo boiar cada prato...(NUNES, 2002; p.75)

Entre os Pataxó do Imbiruçu, Carvalho (2007) chama a atenção para o envolvimento dos adultos nas brincadeiras das crianças.

O cacique Soin Pataxó estava voltando da horta com um saco cheio de mandiocas que acabavam de ser colhidas. Ele chamou as crianças para mostrar um brinquedo [...]. Separaram as mandiocas boas das ruins (que pelo que pude entender são as que ficariam amargas ao serem cozidas), explicando às crianças como fazer para saber qual estava ruim, pela dureza da casca e disse:

– Essas vão para panela e essas vão para o brinquedo.

Falando com calma, cada passo da construção do brinquedo, com a ajuda de um facão ele mostrou às crianças que podem fazer com as mandiocas ‗ruins‘ um burrinho para brincar. O cacique lembra ainda às crianças, que no seu tempo de menino, ele morava em Barra velha na Bahia e que esse era uns dos brinquedos de que mais gostava (CARVALHO, 2007; p.113).

Entre os Pataxó do Guarani é possível observar diversas situações semelhantes a essas, onde os adultos dispõem de seu tempo para ensinar, participar, envolver ou apenas observar as crianças em suas práticas cotidianas.

100 Como ressaltado por Nunes (2002; p.7) esse tempo disponível por parte de

adultos e crianças para o desempenho de determinadas tarefas é uma caracterítica

marcante nos conextos indígenas. No Guarani, estas relações espaço/temporais estão imbricadas em uma lógica muito peculiar57.

Enquanto os meninos pescavam fui ao pé de jabuticaba com Kayãbá, Tãikotxó, Aió (16), Kawatá (15) e Aióira (12). Chegando lá, Sirnã (15) e Mãtxó (11) estavam caladinhas dependurada em um pé logo ao lado. As pessoas chegavam a todo o momento e os pés de jabuticaba ficavam cada vez mais disputados. Fiquei intrigado com o fato de estarmos em uma quarta- feira, às 14:30, e vários adultos e crianças com tempo disponível para subir nas árvores e se deliciar com seus frutos.

Notas de campo, 14 de outubro de 2009.

Esse ritmo de vida no Guarani se expressa no fato de que por lá quase ninguém usa relógio. Como tenho por hábito fazer uso deste instrumento, durante boa parte do trabalho de campo exerci a função de ―informante do tempo‖. Apesar disso, era notável que a hora do dia não determinava o ritmo, ou o começo e término, de suas tarefas cotidianas. Com excessão dos momentos em que trabalhavam em empreitadas, como no reflorestamento das nascentes ou na construção do posto de saúde, onde os horários de chegada e saída são controlados pelos contratantes de fora da aldeia, os Pataxó não possuem uma relação de dependência com o tempo determinado pelo relógio.

É válido ressaltar que os Pataxó do Guarani possuem um histórico considerável de contato com a sociedade nacional e que hoje vivem muito próximos aos centros urbanos58, por isso não estão totalmente alheios aos ritmos de vida que regem as grandes cidades do país. Entretanto, a escola, uma instituição marcada pela lógica do tempo urbano, onde os minutos determinam a rotina diária, no Guarani esta tem seus ritmos reestruturados.

Pela manhã estive na escola, que nesse turno, estudam as crianças maiores com idade aproximada de 9 a 12 anos. Haviam aproximadamente seis crianças na escola e estas faziam naquele momento suas atividades nas mesas do pátio central. Não havia ninguém nas salas. A professora (esposa do cacique) e os alunos conversavam sobre vários assuntos e faziam a atividade ao mesmo tempo. Quando cheguei demorei a perceber que naquele momento as crianças estavam tendo aula. As pessoas chegavam e saiam com imensa naturalidade e as crianças não deixavam que isso atrapalhasse o

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Entre os Maxakali, Alves (1999) também observa que não existe um tempo determinado para cumprir nenhuma dessas esferas [de trabalho] nem há como estabelecer um ritmo ou horário para a realização das atividades cotidianas da vida Maxacali. (ALVES, 1999, p.66).

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A aldeia está localizada a aproximadamente 200 quilômetros de Belo Horizonte, uma das maiores capitais do país, a 50 quilômetros de Guanhães, uma cidade com população de aproximadamente 30 mil habitantes e a seis quilômetros de Carmésia, cidade mais próxima da reserva.

101 andamento das atividades. Num determinado momento uma garota sugeriu à professora:

- “Vamos passar pra Ciências agora professora?”

Notas de campo, 27 de julho de 2009

Mesmo quando precisam sair da aldeia, para fazer consultas médicas ou participar de eventos nas cidades os Pataxó não tem dificuldade para se organizar e cumprir horários pré-determinados e essa relações conflitante de ritmos de vida - dentro e fora da aldeia – são habilmente contornados por eles. O Guarani preserva uma relação temporal bastante peculiar que está intimamente ligada ao uso do espaço e da apropriação das práticas sociais que regem a vida neste contexto.

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