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Os artistas Krzysztof Wodiczko e Vito Aconcci, estiveram presentes no projeto ArteCidadeZonaLeste em São Paulo. Em sua quarta versão o projeto realizado em 2002, tomou como campo de ação para as intervenções urbanas o bairro do Brás e seus adjacentes – Pari, Belenzinho e Mooca. As escolhas dessas regiões deram-se pela pertinência do seu contexto urbano na história e no processo de industrialização que ocorrera no século XX, tendo sido importante pólo fabril e o primeiro bairro da zona leste de São Paulo a ser permeado pela expansão urbana do Centro.

No entanto, é importante pontuar que a região foi literalmente dilacerada por esses processos de expansão urbana, aumentando as barreiras físicas no espaço e isolando a região do resto da cidade, de forma que o lugar se configura hoje, como:

Uma organização de edifícios institucionais com viadutos recortando todo o plano, impedindo a integração do tecido urbano. De forma que toda a região foi urbanisticamente desconfigurada, o que afastou investimentos imobiliários e atraiu uma grande massa de população carente e sem-teto.41

40 “O espetáculo domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ele nada mais é que a economia desenvolvendo-se por si mesma. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtos”. Tese 16.

As experiências destes dois artistas na região trouxeram confrontações pertinentes entre o papel da arquitetura e do design na configuração urbana e social da cidade, tal como hoje percebe-se e de onde é possível presenciar um adensamento significativo de moradores em situação de rua ocupando os cenários dos planos viários que atravessam a cidade e que formam os vazios urbanos ou as áreas resquiciais que são logo ocupados numa transmutação espacial onde o êxodo urbano de uma massa de desabrigados, que não tendo para onde ir passam a alojar-se nestas estruturas, fazendo dali seu repouso às sombras de árvores e viadutos.

As propostas de Wodiczco e de Acconci, em São Paulo, durante o

Artecidadezonaleste, criaram aproximações destes discursos com os moradores da

região do Glicério e suas propostas aproximaram-se, chegando a ter interesses comuns ao apontarem para as questões de segregação produzidas no espaço urbano de uma grande cidade. Cada um, no entanto, direcionou seu olhar para uma problemática específica, mirando sobremodo para as potencialidades de visibilização desses desequilíbrios arraigados e presentes nas paisagens.

Wodiczco, por exemplo, tomou como público de seu trabalho a comunidade de catadores de papel no Largo do Glicério, enquanto Acconci esmerou-se em intervir nas situações de desabrigo dos sem tetos do mesmo sitio. Os trabalhos plásticos de ambos os artistas, assim como seus processos tiveram como olhar atento às necessidades desses públicos excluídos que sobrevivem às margens da sociedade. Buscaram através da arte urbana e suas possíveis formas de comunicação com o espaço, uma humanização não somente da arquitetura e do

design, mas sobretudo do próprio homem.

Desta forma, os trabalhos de Intervenção Urbana de Wodiczko e de Acconci contribuem significativamente para as questões que venho levantando até o momento, pois suas poéticas parecem estabelecer um discurso estreito aos interesses desta pesquisa, ao tomar o homem como elemento frutificador dum senso político-social na construção da paisagem urbana.

Wodiscko

O trabalho de Wodiscko no Artecidadezonaleste consistiu na idealização e

design dum vehicle critical para os catadores de papel da região. Seu trabalho-

processo iniciou-se com a pesquisa de campo, levantamento e interlocuções feitas por ele junto às cooperativas de catadores de papel, aproximação esta que fora importante para a compreensão e adequação do vehicle as necessidades reais das comunidades envolvidas. Destes estudos resultou-se como produto plástico dois protótipos do homeless vehicle project para o contexto de São Paulo, que ficaram expostos ao público no pátio do Pari com os respectivos estudos e ficha técnica.

Na década de 80, na cidade de Nova Iorque, o artista elaborou seu

homeless vehicle project tendo como referência, naquele momento, os carrinhos de

supermercados usados pelo público sem-teto nova-iorquino. Propunha que os veículos servissem de instrumento de sobrevivência a esses cidadãos na cidade embrutecida, possibilitando aos homeless enquanto nômades, a possibilidade de deslocar-se pela cidade, uma vez que “para eles, tudo acaba sendo uma questão de logística: carregar, guardar, esconder, passar para frente42” como formas de arquitetura feitas para o corpo em contraponto ao enrijecimento provocado pelas despolitizações que embotaram as relações humanas, seus prazeres e desejos, assim:

O trabalho de Krzysztof Wodiczko consistiu em equipar essas populações para as batalhas pela ocupação dos espaços intermediários, os intervalos indefinidos entre os enclaves de habitação e comércio, as grandes estruturas arquitetônicas que dominam a paisagem urbana43.

Outro projeto pertinente de Wodiczco que se aproxima desta discussão foi o seu trabalho homeless projection onde por meio de projeções em espaços públicos narrou os processos de gentrification ocorridos durante a "revitalização" do Union

42 Disponível In: http://www.pucsp.br/artecidade/novo/txcurador_wodi.htm Acesso em 18-08-09 (grifos meu)

square garden, em Nova Iorque. Suas projeções de homeless eram sobrepostas às

esculturas e monumentos instalados no Parque.

Pode-se perceber que a problematização levantada nos trabalho Wodiczco busca tornar visível a condição social dos desabrigados cegadas pela alienação do homem e pelas diversas formas de controle do corpo-cidadão.

44 fig. 54 The Homeless Projection 2

O critical vehicles, longe de ser um dispositivo de solução ao problema de moradia, acaba carregando em sua arquitetura-móbile, uma ação política aos processos de segregação que engendram a cidade, frutos de processos maiores de especulação e interesses em áreas centrais. Sua proposta parece possibilitar uma visibilidade às condições humanas vividas pelos sem-tetos, frutos das cidades e de suas arquiteturas de exclusão. Torna público um estado social e seus processos de segregação presentes nas formas de controle deste corpo pelos mobiliários e equipamentos urbanos, uma vez que o público homeless vem sendo submetido aos mecanismos de evacuação, seja pela expulsão violenta para suas cidades de

44 Projeção pública no memorial civil da guerra em Boston (1986) Disponível em: www.exitmedia.net/prueba/eng/autores.php?id=946 Acesso em 08-07-09

origem, dando um incentivo simbólico-financeiro para abandonarem a cidade ou nos deslocamentos para os bolsões de pobreza que se espalham e amontoam nas periferias da cidade, ou ainda nas estratégias construídas no espaço que se apresentam de forma explícita com a:

Construção de bancos convexos, que os impedem de se deitar, de superfícies irregulares, grades, espetos, e, até mesmo, de “esguichadas” de água, a fim de afastá-los de onde estejam. Esta é a resposta que o Estado e a cidade lhes oferecem: ratifica-os como excluídos. (QUINTÃO, 2008, p.104-107).

Wodiczco iniciou em 1998 sua pesquisa-ação, em São Paulo, contando com uma rede que colaborou com ele, fosse mediando os interesses envolvidos, fosse criando situações onde os usuários eram postos como sujeitos de sua proposta artística.

O veículo por ele projetado coloca-se como métodos críticos a fim de assegurar as operações de sobrevivência numa sociedade desigual. Baseia-se assim, na dinâmica de um nômade urbano, criando pela ação de seu corpo uma tática de sobrevivência no espaço-cidade e expondo a situação de segregação por ele vivenciada ao mesmo tempo em que instaura uma interlocução entre inteligências distintas na rede social.

Buscou assim uma publicização ao problema social pelo uso do design desenvolvido para o vehicle critical como forma de ação crítica à segregação presente. Acima de tudo importava para ele a formação de uma consciência política do problema, para que o cidadão pudesse ser capaz de modificar a paisagem pelas suas percepções e vivências, onde “sua movimentação visivelmente proposital pela cidade lhes daria identidade como atores no espaço urbano” (WODICZCO, 1999, p. 82)45.

45 Grifos meu

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fig.55-57 projetos do homeless vehicle e protótipo pelas ruas de Nova Iorque

Acconci

O trabalho do artista Vito Acconci intitulado "Equipamento para moradores

de rua" (2002) no viaduto do largo do Glicério, consistiu em intervir construindo um

“dispositivo urbano-arquitetônico”, capaz de ser utilizado pela grande população de rua do local. A obra se define como um abrigo de apoio, instalado embaixo do viaduto, sem portas e sem teto. De forma que a própria estrutura de concreto do viaduto servira de cobertura ao abrigo instalado.

Acconci vem trabalhando com precisão nas formas de ocupação do espaço, desde a década de 80, desenvolvendo formas de abrigos como House Of Cars (83) e Mobile Linear City (91). Neste período seu trabalho já vinculava arquitetura, design e paisagem. A sua composição de arquitetura se baseia, sobretudo, como lugar de vivência e prática social ao criar espaços fluidos mutáveis e facilmente desmontáveis47.

Para ele a arquitetura é construída de formas leves e fluidas para permanecerem estáveis, pois para ele, vive-se num momento em que a arquitetura ocupa o lugar do homem. Uma arquitetura midiática e veloz que se torna ator e cenário de si mesmo, uma arquitetura que com suas formas e materiais seduzem o olhar e aliena a vida, cegando os olhos de ver a realidade como ela é de fato, para apenas se ver e se viver uma ficção que esconde a essência humana.

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fig.61 House Of Cars

47 Vide em http://www.acconci.com/ Acesso em 08-07-09

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fig.62 Mobile Linear City

Em São Paulo, Acconci buscou trabalhar com as tensões presentes entre os espaços públicos e privados e isso pareceu ficar claro quando o artista determinou que as vedações do equipamento fossem feitas de placas de acrílicos translúcidos, pois, ao serem observadas pelo público-passante, o olhar do outro ao abrigo poderia penetrar e revelar a realidade presentes nos desequilíbrios sociais da cidade.

Essa transparência se contrapõe à compartimentalização e ao confinamento imperantes no espaço doméstico, reorientando o movimento e o olhar. Uma reconfiguração estrutural que altera a experiência e a percepção do espaço construído.50

Dado as características do material empregado, o que se podia ver através das placas translúcidas eram imagens turvas de silhuetas em movimento no interior do abrigo, que emulavam ali a presença humana, evitando criar uma simulação da realidade vivida pelos moradores de rua, uma vez que os mesmos têm na realidade sua intimidade devassada pela ausência de paredes, de abrigo. A escolha por não usar portas, estabeleceu ao equipamento uma fluidez permitida ao corpo, que passara a incorporar a paisagem externa à sua ambiência interna, ao mesmo tempo em que potencializava a contaminação recíproca entre as partes que compunham a vida e o cotidiano da cidade criando camadas permeáveis entre si.

O projeto primeiro fora desenvolvido em 2000, tendo sido pensado para intervir em um prédio que se encontrara abandonado até aquele momento e que havia sido ocupado até 2002 pelos moradores em situação de rua da região do Glicério. A proposta inicial de Acconci previa uma resignificação da estrutura funcional deste prédio já ocupado pelos sem-teto criando ali uma espécie de

49 http://www.terminartors.com/acconci-vito/mobile-linear-city-1000276- acesso em 08-07-09 50 http://www.pucsp.br/artecidade/novo/txcurador_vito.htm acesso em 08-07-09

pequena cidade ou vila independente. Sairiam tentaculamente do edifício, três passarelas que avançariam no espaço da rua, agarrando-se aos postes de iluminação pertencentes ao mobiliário do entorno.

As passarelas permitiam ligações entre si que se comunicavam pelas escadas helicoidais e alças, formando calçadas elevadas onde os moradores da “vila” poderiam circular entre o espaço público e o privado, o fora e o dentro. Na sua composição mórfica os postes de luz apresentavam-se como núcleo de encontros formando ambiências diversas que versavam sobre as funções e usos domésticos no espaço público da cidade. No entanto, como o projeto artecidade passara por uma reestruturação organizacional neste período, a intervenção só pudera ser executada em 2002 e com significativas mudanças projetuais, uma vez que durante estes dois anos o prédio tivera suas instalações retomadas e restabelecidas pelo poder público. Esta guinada fez com que Acconci rapidamente refizesse seu projeto e o adaptasse às novas configurações sócio-espacial do Largo do Glicério.

Fez assim, um abrigo público, aberto e montado no plano protegido da auto- pista do Glicério, com instalação de ambientes separados pelas necessidades e uso. Acconci buscou, assim como Wodiczco, criar com estes embates no espaço urbano uma reflexão da paisagem segregada, buscando nestes conflitos forjar uma audiência e visibilidades aos problemas existentes, ora relegados aos planos distantes e descomprometidos com o cidadão.

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fig.63 esboço da proposta inicial do “equipamento para moradores de rua”

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fig.64-65 “Equipamento para moradores de rua” Largo do Glicério Nas intervenções destes dois artistas percebe-se que a poética de suas ações não estavam na estetização do espaço urbano, da proposta e tão pouco na qualificação do design por eles propostos, mas sim na prática, vivência e reflexão desse espaço pelo corpo, de forma que suas propostas, enquanto processos, buscaram a valorização do público excluso e o exercício de escuta, sensibilização e percepção da paisagem. Eles assim o fizeram criando como respostas instrumentos de contestação as anti-arquiteturas que buscam desmontar o bem-estar social.

Estas idéias podem ser multiplicadoras no momento em que o artista se aproxima do público pondo-o como agente do seu processo poético.

Pode-se pontuar que os trabalhos de Wodiczco e de Acconci, enquanto trabalhos de arte site-specific levaram consigo uma rede de significados, de histórias de vidas e de memórias e que ao apropriarem-se da arquitetura e design busca potencializar as transformações sociais pela ação de um corpo-crítico e agente na cidade.

Muito mais que abrigos e arquiteturas-nômades eles revelam um mundo de possibilidades presentes no ato criativo e na força de transformação deste corpo no processo de percepção das estruturas de poder que provocam o disciplinamento e exclusão do corpo. Contribuindo de forma significativa para as experiências que venho desenvolvendo nesta pesquisa e que tencionam levantar através das intervenções urbanas um corpo agente que re-signifique a cidade e suas arquiteturas, sobretudo a dos mobiliários urbanos que costumeiramente servem de abrigo aos moradores em situação de rua que criam com seus corpos, arquiteturas que buscam escapar a apreensão do lugar na medida em que praticam e vivenciam o espaço urbano e suas paisagens, tornando-se agente nela e contribuindo para a formação do que denomino nesta pesquisa como um ato de colher com o corpo para formar um “Corpo-crítico”.

3 COLHENDO COM O CORPO

Conforme apresentado na introdução, mais especificamente na estrutura do texto, este capítulo visa uma reflexão sobre o desenvolvimento do trabalho plástico. Para maior entendimento dos processos presentes é mister mostrá-los conforme o percurso praticado. Ressaltando que em um primeiro momento, fora por meio do mapeamento e da investigação das arquiteturas dos mobiliários urbanos que essa etapa construiu-se como poética de colher com o corpo, ceifando da cidade suas imagens, capturadas para fomentar a discussão sobre a segregação presentes nas arquiteturas. Assim, dividi este capítulo em três partes que se completam por constituí-se como peças fundantes para as reflexões buscadas no fazer artístico de onde apresento: (1) o Re-projeto "Abrigo", (2) a maquete físico-volumétrica de uma área da cidade de São Paulo e (3) a captura e composição da paisagem sonora para o site "Abrigo" utilizado no vídeo "Fio-de-pedra".

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