• Nenhum resultado encontrado

3. Corpo e atualidade

3.1. O corpo e o cogito

O transcendental repetirá, portanto, o empírico, uma dupla fundação que marca o que se chamou, segundo Foucault, de “o homem”. Da mesma forma que podemos observar na análise da imagem acima e os discursos que ela aloja, o corpo ocupa um espaço que se faz sentir pelo estudo de uma percepção, de mecanismos sensoriais. A discursividade daquela imagem nos remete a esquemas neuro-motores, uma articulação entre coisa – o airbus – e

36 “Du bout à l’autre de l’expérience, la finitude se répond à elle-même ; elle est dans la figure du Même – où la

Différence est la même chose que l’Identité – l’étalement de la représentation, avec son épanouissement en tableau, tel que l’ordonnait le savoir classique. C’est dans cet espace mince et immense ouvert par la répétition du positif dans le fondamental que toute cette analytique de la finitude, - si liée au destin de la pensée moderne – va se déployer : c’est là qu’on va voir successivement le transcendantal répéter l’empirique, le cogito répéter l’impensé, le retour de l’origine répéter son recul ; c’est là que va s’affirmer à partir d’elle-même une pensée du Même irréductible à la philosophie classique. » In M. Foucault, Les Mots et les Choses.

organismo – o corpo, um tipo de estética transcendental, relevando formas e nervos corporais que não podem se dissociar das singularidades do funcionamento que lhe dá a vida. O entrelaçamento anatomo-fisiológico do corpo com a máquina determina um presente histórico, social e econômico37, prescrevendo formas e maneiras de se viver o nosso corpo, a partir da manifestação desses conteúdos empíricos que essas imagens na revista Superinteressante nos evocam.

Sob essa perspectiva, o cogito repetirá o impensado. Para Foucault, essa reduplicação empírico transcendental que define o homem no mundo é uma figura paradoxal em que os conteúdos empíricos do conhecimento possibilitam as condições que as tornaram possíveis, momento em que a partir de si o homem não se revela por meio de uma transparência imediata e soberana de um cogito. “Como pode se dar o fato de que o homem pense o que não pensa, habite o que lhe escapa como forma de uma ocupação muda, anime, à maneira de um movimento cristalizado, essa figura dele mesmo que a ele se apresenta sob a forma de uma exterioridade teimosa?”38, questiona Foucault (1966, p.333).

O corpo humano, nesse sentido, parece se estender em suas próteses e acoplarem-se tecnologias que prolonguem e assegurem sua vitalidade, diversidades que se ligam pela denominação dada em Capa para a imagem da yoga e Tecnologia para a foto do airbus, fonte em vermelho para ambas, fontes para uma representação do corpo como máquina. A chamada para a reportagem do airbus tem como título Meu dia de piloto, seguida do seguinte texto:

“Comandar um Airbus A320, aeronave capaz de atingir uma velocidade de 900km/h, é moleza. (A bordo do simulador mais moderno do planeta, claro)”

37 “Il y a eu aussi les analyses qui par l’étude des illusions, plus ou moins anciennes, plus ou moins difficiles à

vaincre de l’humanité, ont fonctionné comme une sorte de dialectique transcendantale ; on montrait ainsi que la connaissance avait des conditions historiques, sociales, ou économiques, qu’elle se formait à l’intérieur des rapports qui se tissent entre les hommes et qu’elle n’était pas indépendante de la figure particulière qu’ils pouvaient prendre ici ou là, bref qu’il y avait une histoire de la connaissance humaine, qui pouvait à la fois être donnée au savoir empirique et lui prescrire ses formes. » Cf. Michel Foucault, Les mots et les choses, 1966, p. 330.

A interferência clara da posição do autor no texto, misturando os dados que deseja apresentar a sua bouffonerie lingüística, marcando sua singularidade numa inscrição determinada pela lógica cartesiana das informações midiáticas, abre a capa de uma filosofia mecanicista. Aponta, dessa maneira, um universo de precisões calcado na numeração do airbus – um A320 – ou na especificidade de sua velocidade – 900km/h, firmando noções de medida, de rigor e exatidão que se fixaram durante a revolução galileana, como nos explicou Breton (1998: 64), momento em que a natureza se situa no nível “a altura do homem”, visando a racionalização do homem e rejeitando as percepções sensoriais no domínio da ilusão. Ilusão que é encorajada pelo imbricamento discursivo dos dois enunciados em questão. Por isso, a visão matemática de se ler o mundo é, no entanto, na minha percepção das imagens, a de orientar nossa leitura e entrelaçá-las. A distância evidenciada pelo corpo e pela máquina parece separá-las, porém, essa dimensão faz nada mais que religar uma a outra dentro da perspectiva de um pensamento sobre si mesmo, isto é, um pensamento que se funda no não-pensamento. Repetindo Foucault (1966, p.335), é preciso « percorrer, redobrar e reativar sob uma forma explícita a articulação do pensamento sobre o que nela, em torno dela, abaixo dela não é pensado, mas não lhe é, no entanto, estranho, segundo uma irredutível, uma instransponível exterioridade”», elementos que me fazem pensar que a discursividade iconográfica para qual olhamos não caracteriza uma dualidade, mas parece constituir nossos corpos em carne e aço : um cogito moderno39.

39 « C’est qu’il s’agissait pour Descartes de mettre au jour la pensée comme forme la plus générale de toutes ces

pensées que sont l’erreur ou l’illusion, de manière à en conjurer le péril, quitte à les retrouver, à la fin de sa démarche, à les expliquer, et a donner alors la méthode pour s’en prévenir. Dans le cogito moderne, il s’agit au contraire de laisser valoir selon sa plus grande dimension la distance qui à la fois sépare et relie la pensée présente à soi, et ce qui, de la pensée, s’enracine dans le non-pensé ». Michel Foucault, Les mots et les choses, 1966, p. 335

O corpo da filosofia cartesiana, portanto, se desfaz na epistéme da interpretação. E passamos a entender de uma outra posição a filosofia de Descartes. Numa carta sobre seu postulado sobre o corpo, M. Morus40 escreve a Descartes:

Eu passo silenciosamente para várias outras qualidades mais remarcáveis da compreensão divina, que não são necessárias explicar aqui. Já temos o suficiente para demonstrar que teria sido melhor definir o corpo como uma substância tátil, ou como disse acima, uma substância impenetrável, como uma coisa estedda,, pois o tocar ou a impenetrabilidade convêm totalmente ao corpo, lugar no qual sua definição peca contra as regras e não diz respeito a uma única definição. (DESCARTES, 1953, p.101)

Descartes responderá41:

Sua primeira dificuldade é sobre a definição do corpo, a qual chama de substância estendida, e que o senhor preferira nomear de uma substância sensível, tátil ou impenetrável; mas preste atenção, por favor, pois ao dizer um substância sensível o senhor somente a define na relação que ela tem com nossos sentidos, explicando somente uma propriedade, em vez de compreender a essência total dos corpos, que, podendo existir mesmo quando não houvesse o homem, não depende, conseqüentemente, de nossos sentidos. Não vejo, portanto, porque o senhor diz que é absolutamente necessário que toda matéria seja sensível; ao contrário, não há nada também que não seja inteiramente sensível, se estiver dividida em partes muito menores do que aquelas que os nossos nervos, além de cada uma ter em particular um movimento bastante rápido. (DESCARTES, 1953, p.111)

Nas palavras de Descartes, o corpo desejável se torna a evocação desesperadora no âmbito de suas especulações, que visam a tomar o corpo na esfera de frágeis mecânicas previsíveis, explicando o corpo, sobretudo seu mecanismo, como um resultado autônomo do fenômeno corporal, ao entendê-lo a partir dele e somente por meio dele. Nesse ínterim, a alma real - vetor de movimentos42 - e o corpo do homem – matéria, máquina, onde se repetem os

40 Carta de M. Morus a M. Descartes escrita em Cambridge, em 11 décembre 1648, no Collège de Christ.

Tradução minha.

41 Descartes responde a Morus em Egmont, perto de almarc, em 5 de fevereiro de 1649. Tradução minha.

42 « Le mécanisme repose en effet sur un dualisme entre le mouvement et la matière. Le temps, la durée

n’apparaissent dans ce système que de façon spatialisée (l’horloge). L’homme est l’objet de la même scission, entre l’âme, vecteur de mouvements, et le corps, matière, machine, où se répercutent les mouvements de l’âme. » Cf. LE BRETON, David. Aux sources d’une représentation moderne du corps : le corps machine. In :

movimentos da alma43 - são domínios autônomos, distinção que firma a presença de uma vida breve e a imortalidade da alma, isto é, de um homem-máquina associando naturalmente a medicina e a mecânica.

Dessa maneira, Descartes opõe a realidade das coisas, de uma lado, sob a perspectiva de uma condução da vida cotidiana e, de outra, sob a luz da razão, apagando o simbólico que nos caracteriza como corpos nas suas relações de saber e poder. Para Ramond (2005: 117-8), a partir do momento que o corpo humano é concebido como uma máquina, a identidade do indivíduo se coloca como um problema. O autor prossegue:

A identidade de um indivíduo, dito de outra maneira, por meio do que ele assim se torna, apesar das modificações que podem afetá-lo, não pode, portanto, por definição, ser determinada em referência a seu corpo sem cessar uma mudança. O mecanismo é, assim, obrigado a supor uma alma se ele quiser poder continuar a falar de identidade ou de individualidade. [...] O laço entre princípio de identidade e finalidade aparece aqui claramente: pois uma máquina, inanimada não tem identidade e não procura nela se manter, isto é, preservar esta identidade. (RAMOND, 2005, pp.117-8)

Esse duplo movimento, portanto, do cogito, nos esclarece porque a máxima « eu penso » não nos leva diretamente ao “eu sou”. Efetivamente, para Foucault (1966, p.335), o “‘Eu penso’ se mostrou engajado a toda uma espessura na qual ele está quase presente, animando-o, mas sobre a forma ambígua de uma vigília sonolenta, não sendo mais possível poder manter a afirmação ‘eu sou’”. Fica claro, então, que o cogito não conduz a uma afirmação do ser. Entretanto, abre vias para uma gama de interrogações que terá o ser no centro da questão, levando em conta o corpo, suas metáforas e seus mitos, uma anatomia política do corpo marcada pela sua cultura de si, este último anunciando o ponto de chegada para o trajeto que tenho percorrido.

Documentos relacionados