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Para a psicanálise, o sujeito surge por sua relação com o Outro e com os objetos, o que ficou bem demonstrado pelo estudo empreendido sobre o Estádio do Espelho. No caso do autista, tal constituição passa por idiossincrasias que

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promovem suas dificuldades. A observação acurada de seus comportamentos permite concluir que não houve uma constituição imaginária que desse suporte à sua relação com o mundo. Os meandros que a justificam não são distinguíveis. Alguns autores os localizam em uma ausência do Ideal do Eu, que não teria propiciado os mecanismos identificastes básicos para a composição especular. Tais considerações serão retomadas no capítulo seguinte.

A elaboração de Lacan sobre o Estádio do Espelho e seus desdobramentos circunscreve a constituição do Eu, e do sujeito, por sua relação ao Outro e aos objetos. Essa composição pressupõe a extração do objeto que passa a “ex-sistir”, organizando o imaginário e suas conexões com a realidade, pelo anteparo de uma “outra cena”. Também as pulsões sofrem uma regulação pela extração do objeto a, que gerencia as relações do sujeito com seus objetos pulsionais.

É na estrutura da relação do sujeito com o Outro que se encontra o objeto a. Em O Seminário, livro 10, Lacan define sua função por sua constituição circular. “Em todos os níveis dessa constituição, o objeto adere a si mesmo como objeto a.” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 320). Sua função é a de se ligar à constituição do sujeito no lugar do Outro, representando-o. A figura das “formas dos objetos nos diferentes estágios” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 320), ilustrada no Anexo G deste trabalho, mostra a fase fálica como central e extrema em relação aos demais estágios do objeto, trazendo a função do a representada por uma falta — “a falta do falo como constitutiva da disjunção que une o desejo ao gozo” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 321). As demais representações libidinais do objeto que perpassam o eixo ascendente da curva são a oral, relativa aos alimentos e também à voz, e a anal, referente aos excrementos, mas também ao olhar. A via descendente traz as correspondências libidinais daqueles dois primeiros, com o objeto escópico dando ênfase ao olhar e o supereu sublinhando suas manifestações primárias relativas à voz.

Por não ter havido a separação entre Outro-objeto a, no autismo, não há a constituição das zonas erógenas, onde o gozo se aloja, fazendo um corpo. As partes destacáveis do corpo — seio, fezes, voz e olhar —, marcam, ao mesmo tempo, uma promessa e uma perda, tornando-se propícias a encarnarem o semblante desse objeto. Sendo assim, cabe a pergunta sobre como os autistas se

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posicionam em relação a essas configurações princeps da pulsão. A resposta é encontrada na compilação dos fenômenos de comportamento característicos dessas crianças, feita pelos profissionais da instituição belga Antènne 110, que as acolhe para tratamento (Baio & Kusnierek, 1993).

Desse modo, em relação ao corpo, naquilo em que ele pode ser afetado, observa-se que são frequentes certa insensibilidade à dor e a ausência de doenças. Quanto à imagem do corpo, mensurada em sua relação com o espelho ou com o corpo do outro, algumas crianças não se mostram interessadas pela imagem, mas sim pelos buracos nela presentes. Outras, entretanto, instituem a relação com a imagem como sendo essencial, mas a sequência dessa relação deve ser regulada minimamente.

Em relação aos objetos destacáveis do corpo que presentificam o desejo do Outro — olhar e voz —, algumas crianças os evitam, olhando para outro lugar, não falando e parecendo surdas à voz do Outro135 que lhes fala. Outras encaram o olhar do Outro de maneira fixa e perturbadora, sem desviar os olhos, ou utilizam a voz, mas não como objeto de troca com o Outro136. Outras, ainda, conseguem uma troca de olhar, o que lhes parece bastante apaziguador, ou utilizam-se da voz como suporte para uma troca. Nesses dois casos, no entanto, também há a imperiosa necessidade de regulação: o olhar do Outro deve ser controlado por uma batida ou por uma vigilância extrema, por parte da criança, e a voz do Outro deve ser ritmada, musical, não tendo outra intenção senão a de cantar.

Quanto aos objetos destacáveis do corpo que presentificam a demanda do Outro — alimentos e excrementos —, algumas crianças anulam esse Outro da demanda, mostrando-se totalmente dependentes na alimentação (se não forem alimentadas, morrem) ou não comendo na presença do Outro. Também se mantêm constipadas ou evacuam em locais escondidos do Outro. Outras pedem a presença do Outro, para regulá-la, controlando os gestos do Outro que serve seus alimentos ou que abre suas calças, que dá descarga (ou que é impedido de fazê-lo). Esses objetos da demanda do Outro são, também, eles mesmos,

135 Outro ou outro? A justificativa de Baio e Kusnierek, apresentada em nota de rodapé de seu texto, fornece

o apoio para as opções aqui escolhidas: “Com respeito à criança psicótica é às vezes difícil optar, quando falamos de sua relação com o Outro, pela escrita do Outro com maiúscula ou com minúscula, seja para o outro imaginário ou para o Outro em sua dimensão significante. É que, para eles o outro se transforma no Outro e vice-versa. Nós, no entanto, escolhemos, quando falamos do olhar do Outro, da voz do Outro, do desejo do Outro, da demanda do Outro, escrever o Outro com maiúscula.” (Baio & Kusnierek, 1993).

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submetidos a tratamentos diversos: manipulados, amassados, espalhados, antes de serem ingeridos ou jogados fora.

A relação dessas crianças com o espaço estabelece-se, com frequência, por meio de circuitos inteiramente obrigatórios, devendo passar somente em determinados lugares ou andar de determinada forma. Configuram-se, aqui, seus rituais. “O espaço é o resultado de uma apreensão visual global que nos dá, por antecipação, a geografia dos lugares, a partir da qual nós sabemos como nos deslocar.” (Baio & Kusnierek, 1993). Para além da geografia dos lugares, os “falasseres” (parlêtres) procuram uma outra medida para se deslocarem: a do desejo do Outro. A falta desse organizador simbólico, que distribui e ordena as percepções, produz uma deficiência na assimilação da nuances espaciais, por parte do autista. O tratamento do espaço, no autismo, faz com que o dentro e o fora sejam contínuos, como um toro.

...supomos um espaço que não está construído com um dentro e um fora (...) mas um espaço estruturado como um toro, onde, do ponto de vista da superfície, o interior do círculo do toro ou o exterior, são sempre exterior. Pode-se olhar para o centro, mas está-se sempre olhando para o infinito. (...) O Outro pode, assim, invadir sempre o corpo do sujeito com um gozo atroz, de maneiras catastróficas, sem que as bordas possam marcar uma pulsação regrada.” (Laurent, 1992/1998, p. 88).

Em seu Comentário sobre Maurice Merleau-Ponty, Miller (1995) elucida a crítica de Lacan à concepção psiquiátrica da alucinação, que afirma ser a percepção, primariamente, simbólica. Sendo assim, a indiscriminação espacial do autista não é atribuída a uma deficiência de sua capacidade sensorial, como quer a Terapia de Integração Sensorial137, mas à ausência do sistema de oposições linguístico, que instituiria, nesse caso, um “aqui” em contraponto a um “ali”. Essa é a indicação de Lacan, em sua resposta a Sami-Ali, quando afirma que a construção do espaço comporta algo de linguístico138.

Por serem puramente reais, os objetos carecem de conotação imaginária. John, um dos pacientes de Kanner (1943/1997), não diferenciava a bidimensionalidade da tridimensionalidade. Ao se deparar com pessoas em uma

136 O objeto voz será tema especial do capítulo 3, sobre a linguagem. 137

Mencionada no capítulo 1.

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fotografia, perguntava-se quando elas sairiam dali e passariam à sala em que estava.

Assim como ocorre com a noção espacial, a ausência do organizador simbólico produz distorções também na temporalidade do autista. Na neurose, a significação fálica que o sujeito dá ao desejo do Outro organiza seu tempo, entre antecipação e retroação. A relação com o tempo, totalmente desorganizada no autismo, leva esses sujeitos a responderem a uma pergunta demasiadamente cedo, fazendo eco, em lugar da resposta, ou demasiadamente tarde, interpondo entre a pergunta e a resposta um tal lapso de tempo que uma se desconecta da outra. Pode-se pensar que algumas ecopraxias autistas são “respostas” tardias a vivências anteriores. Uma das crianças de nossa clínica fazia em nosso atendimento os exercícios que a fisioterapeuta lhe demandava. O aspecto de interesse remete à sua recusa em realizá-los na fisioterapia, por oposição ao que apresentava conosco, espontaneamente. Certamente não será deixada de fora a observação de que sobre ela pairava a demanda do Outro fisioterapeuta, o que inexistia conosco.

Quanto à linguagem dos autistas, uns não falam nada, outros apenas repetem as mesmas palavras ou fonemas, pronunciados de maneira holofrástica. Alguns se dispõem a falar: uns sob o modelo da mensagem não invertida e outros em uma ordem própria e bastante precisa, parecendo querer inventar uma nova significação139.

Por fim, os autores assinalam a manipulação de objetos variados feita por essas crianças, os quais são, para elas, frequentemente, indispensáveis, e aos quais sempre é aplicada uma batida. Destaca-se, aqui, na observação dos autores, a referência direta ao objeto desta pesquisa, os “objetos autísticos”.

Diante do levantamento desses fenômenos, o que se observa é a total ausência de padronização do comportamento do autista. Ele pode falar, ou não falar. Manter contato pelo olhar, ou não fazê-lo. Responder ecolalicamente, ou não. Esse dado reforça a inconfiabilidade do diagnóstico do autismo realizado unicamente sobre a observação do comportamento da criança, tal como propõe o DSM, incorrendo em equívocos diagnósticos por vezes graves, como alertou Kindgard (1997). O critério diagnóstico da psicanálise toma os comportamentos

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como itens consideráveis, mas a eles acrescenta a identificação da posição do sujeito frente ao Outro e ao objeto, para denominá-lo “autista”.

Colette Soler (1994) procura formalizar a relação do autista com o Outro, reagrupando os traços dessas crianças, revelados nos estudos de casos da literatura psicanalítica. Sua classificação se orienta no mesmo sentido da sistematização dos pesquisadores da Anténne 110.

A autora indica, primeiramente, que os autistas são crianças que se sentem perseguidas pelos signos da presença do Outro, em especial por dois objetos: olhar e voz. Deduzem-se daí as estratégias daqueles que se ocupam delas: abordá-las dando-lhes as costas ou lhes falar cantando, por exemplo.

Soler toma o imprevisível como um índice da presença do Outro. Quando algo se move do lado do Outro, e multiplica suas demandas, obtém-se um impacto direto sobre essas crianças. Instauram-se, então, suas tendências aos rituais: nada pode se mexer ou se apresentar como instável, pois a presença do Outro é intrusiva. “No fundo, sua própria estabilidade depende de que o Outro não se mexa.” (Soler, 1994, p. 76). Considera-se que essa necessidade imperiosa de controlar o Outro justifica a relativa cooperação dos autistas aos programas educativos da terapia comportamental. Uma vez aprendida a sequência de atitudes que lhes é demandada, os autistas podem não apresentar dificuldades em repeti-las outras vezes. O que não querem é que novas demandas lhes sejam feitas.

A segunda característica formalizada por Soler diz respeito à anulação do Outro. Os autistas parecem surdos ou apresentam problemas no olhar. Esse traço é uma consequência do primeiro, à medida que visa a uma aniquilação dos signos da presença do Outro.

O terceiro traço é o que a psicanalista chama de uma recusa da intimação do Outro e que Bruno (1997, p. 52) traduziu como uma “demanda grau zero”. O Outro chama pela voz e pelo olhar. Essa recusa de serem chamadas pelo Outro produz, nessas crianças, uma ausência da dimensão do apelo. O autista é uma criança que não faz apelo, não entra na dialética da demanda.

A variabilidade das aprendizagens funcionais habituais dos autistas, ilustrada pelo texto da Antènne 110, leva a encontrar, em uma mesma criança,

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uma dificuldade do controle esfincteriano coexistindo com uma memória prodigiosa, por exemplo. Essa multiplicidade faz considerar a anomalia autista não como deficitária, mas “fora-das-normas”. (Soler, 1994). Esse fora-das-normas autista relaciona-se, sobretudo, ao desenvolvimento pulsional. Se Lacan afirma que a ordem das pulsões corresponde à sucessão das demandas do Outro e se há uma anomalia da relação com o Outro no autismo, a própria diacronia dos estados libidinais encontra-se perturbada.

Um quarto e último traço refere-se ao problema de separação, concretamente considerada, do autista em relação à mãe ou ao terapeuta. Esse aspecto é elucidado por Soler ao analisar a questão do corpo no autismo. Uma das observações feitas pelos psicanalistas que atendem essas crianças refere-se à aparente ausência de fronteira entre seu corpo e o corpo do Outro, como se o Outro fosse um prolongamento de seu corpo. Com efeito, o comportamento autista de pegar, com sua própria mão, a mão do outro para que este abra a torneira, ou de olhar para a porta e, sem mais um gesto, aguardar que o outro a abra, é demasiado típico.

Soler afirma ser esse procedimento menos uma confusão de fronteiras imaginárias do que uma confusão quanto ao ponto de inserção da libido. Não haveria um deficit na percepção dos limites da imagem na criança, mas uma perturbação do “instrumento-libido”. Essa é uma interessante contribuição para a clínica do autismo, ao compor com o conceito de duplo, e será discutida no capítulo seguinte.

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