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Corpo – do invisível ao visível ao longo do tempo

Estudos voltados à temática corporal vêm se intensificando com o passar dos anos em diversas áreas, sobretudo na contemporaneidade e principalmente aquelas nas quais o corpo fica em maior evidência, tais como a dança e a educação física, como dito na seção anterior desta dissertação. Porém, recentemente se observa uma preocupação crescente sobre a temática no campo pedagógico, mais especificamente nos cursos de graduação em Pedagogia. Sabe-se, na atualidade, que a forma que o ser humano lida com o seu corpo é uma construção social, resultado de um processo histórico. Maciel (1997) explica que,

A marca do pensamento filosófico de Merleau-Ponty é a abertura da percepção ao que existe de invisível no visível, a isto que se abre de invisível no espaço de sua aparição. Ele procura esclarecer isto que não cessa de aparecer no fenômeno da percepção. (MACIEL, 1997, p.147).

O posicionamento de Maciel (1997) através de Merleau-Ponty adquire uma argumentação crítica que nos leva a pensar sobre a invisibilidade dos corpos em âmbito escolar. O conceito que o filósofo acaba se utilizando diz respeito ao corpo como detentor de conhecimento e supera, assim, o paradigma cartesiano que dissocia corpo e mente. Trazendo também a reflexão sobre o corpo sensível, que é justamente o “meio em que pode existir o ser.”

Partimos do pressuposto de um ser humano em constante e dinâmica interação com o meio social, cultural e histórico. Trata-se, portanto, de um ser que atua sobre a realidade e a modifica, ao mesmo tempo em que sofre influências e é modificado por essa realidade. Nesse sentido, as concepções sobre corpo e corporeidade são condicionadas social e culturalmente. O corpo de cada indivíduo guarda ao mesmo tempo sua singularidade e suas características (intelectuais, afetivas, morais, físicas, etc.) de seu grupo cultural,

32 a partir de valores, normas, leis e sentimentos comuns a um determinado tempo histórico (GONÇALVES, 1994).

A noção dualista de ser humano (corpo-mente), que vigorou durante muito tempo na história da humanidade, imprime uma imagem negativa ao corpo, passível de se observar em expressões que o colocam como prisão da alma, como instrumento ou máquina (KUNZ, 1991 apud FIORENTIN, 2006). De acordo com Gallo (2010), durante muito tempo o corpo representou “uma pedra no meio do caminho” da existência do homem. Ainda que isso tenha mudado, não se chegou, todavia, na contemporaneidade, a uma igualdade de posição entre corpo e alma. Esse autor nos fala de uma mudança radical na forma de se perceber a corporeidade durante o século XX, a partir do existencialismo, que tenta superar o dualismo filosófico.

Na perspectiva existencialista, um só pode existir através do outro, ou seja, não se pode falar em corpo sem se falar de consciência (espírito, alma) e vice-versa. Assim, o existencialismo nos diz de um corpo como um “ser de relações no mundo e com o mundo”. A partir dessa premissa, pode-se afirmar, segundo Gallo (2010), que ele é a própria estrutura da consciência e a razão de nossa existência.

As concepções de corpo que temos em pleno Século XXI certamente sofreu alterações ao longo da história da humanidade, desse modo, as concepções de corpo são diversas e as mais complexas possíveis, tendo em vista o espaço e o tempo em que se situaram. Aqui, irei me ater às definições e/ou concepções dos estudos foucaultianos e merleau-pontyanos.

Existem diferentes olhares que nos permitem compreender de diferentes maneiras os sentidos de corporeidade — concepção materialista, concepção sistêmica-holística, entre outras. Como dito anteriormente no início deste trabalho, iremos dialogar com os estudos de Foucault e do filósofo existencialista Merleau-Ponty, na tentativa de evidenciar o sentido de urgência na ressignificação do corpo, através do entendimento do homem de forma plena, integral.

Para Merleau-Ponty (2011, p.122), “o corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para uma pessoa viva, juntar-se a um meio definido, confundir- se com alguns projetos e engajar-se continuamente neles”. Corroborando com

33 esse pensamento, na perspectiva de compreensão de integralidade do corpo, pactuamos com a reflexão de Gonçalves (1994) a respeito dos escritos do Merleau-Ponty, pois, para a autora, esse argumento “possibilita uma visão do corpo e do movimento integrados na totalidade humana”.

Elenquei Merleau-Ponty pelo fato de este ser um dos precursores na discussão sobre a temática em estudo no que diz respeito ao entendimento da integralidade do corpo. Trazemos as impressões de Gallo (2010) por ser um dos estudiosos que corroboram com a teoria Merleau-Pontyana.

Gallo (2010) considera-o o filósofo que mais contribuiu para a compreensão do corpo a partir de uma crítica a toda filosofia e, mais especificamente, a metafísica cartesiana, que divide o homem em corpo e alma. Pois a premissa do Merleau-Ponty é a da busca de uma unidade existencial do ser humano, em que propõe uma visão somática na qual o homem é compreendido não só como razão, mas dotado de sentimentos e emoções. A corporeidade proposta por Merleau-Ponty se constitui a partir de uma relação dialética entre “corpo e espírito, tempo e espaço, interioridade e exterioridade, sujeito e objeto, natureza e cultura” (GALLO, 2010, p. 66).

Sobre esse modo de entender o ser – humano, seu corpo e suas relações no mundo e com o mundo, pode-se afirmar que,

O paradigma da corporeidade rompe com o modelo cartesiano, pois, não há mais distinção entre a essência e existência, ou a razão e o sentimento. O cérebro não é o órgão da inteligência, mas o corpo é todo inteligente; Nem o coração, a sede dos sentimentos, pois, o corpo é todo sensível. O homem deixou de ter um corpo e passou a ser um corpo [...] (OLIVIER, 1998, p. 62 apud FIORENTIN, 2006).

Ainda sobre a noção de corporeidade, Nóbrega (2000) afirma que a visão de corpo assim como entendida por Merleau-Ponty quebra com a tradição cartesiana porque,

[...] nem coisa nem ideia, o corpo está associado à motricidade, à percepção, à sexualidade, à linguagem, ao mito, à experiência vivida, à poesia, ao sensível e ao invisível, apresentando-se como fenômeno complexo, não se reduzindo à perspectiva do objeto (apud FIORENTIN, 2006, p. 3).

34 Assim fica claro que tomo como princípio a ideia de Merleau-Ponty que evidencia que nos tornamos conscientes de nosso corpo através do mundo e vice-versa (GONÇALVES, 1994), portanto, o corpo é ao mesmo tempo causa e consequência de nossa relação conosco, com o outro e com o mundo, e essa relação, as trocas que estabelecemos com essas esferas em diferentes naturezas (física, social, histórica, cultural, afetiva, cognitiva) é que nos constituem como sujeitos. Referente ao pensamento de Foucault, concordamos com Courtine (2013) ao inferir que,

o corpo iria verdadeiramente aceder ao estatuto de objeto de pleno direito, quando ele mostra como, em Vigiar e punir, a generalização dos encarceramentos e a sistematização das disciplinas haviam feito do corpo o alvo essencial de uma tecnologia política, de uma “microfísica” do poder. (COURTINE, 2013, p. 16)

Esse entendimento do corpo imerso num campo político faz com que as relações de poder operem sobre ele (o corpo), marcando-o, adestrando-o, supliciando-o, constrangendo-o e/ou obrigando-o a trabalhos, tornando-o, por vezes, num corpo reprimido.

Por esse motivo, penso na possibilidade de que a dualidade entre corpo e alma vigorou/perpassou todos os corpos, incluindo, desse modo, o corpo das crianças. Sendo assim, compreendo que as concepções de criança e infância são construídas e/ou modificadas ao longo da história também nas relações que se estabelecem com esse corpo infantil.