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3. CONFIGURANDO O PONTO DE PARTIDA

3.3 Do CORPO COMO CAMPO DE BATALHA ao CORPO COMO

3.3.3 O corpo em estado de palhaço

A criatividade é por definição, transgressão. Paolo Nani

Até o momento procurei estabelecer algumas pontes que me ajudassem a contextualizar a visão do palhaço e do corpo que guiaram esta pesquisa. A partir deste momento pretendo começar a elucidar as escolhas que foram configurando a metodologia praticada com os grupos de trabalho, frisando que durante a realização das experiências práticas, a forma de abordagem do corpo e do estado de palhaço, teve que ser modificada a partir da escuta das particularidades de cada grupo.

Dentre vários referenciais que Annie Suquet apresenta sobre a percepção, há uma pequena introdução ao pensamento de Rudolf Laban que em 1910 afirma que “O primeiro dever do bailarino, como também do ator e do mímico, é desenvolver um „saber-sentir‟” (LABAN, apud SUQUET, 2011, p. 525). E é justamente sobre este processo de desenvolvimento do „saber-sentir‟ que o corpo do palhaço é trabalhado através de múltiplas vias de acesso que ajudem a recuperar e aprimorar o contato com o corpo em estado vibrátil, vulnerável, intensivo.

Aproximamo-nos do corpo do palhaço, sob a lente desta pesquisa, na procura de uma ampla abertura que nos permita perceber na pele os impulsos mais internos e os atravessamentos do entorno, da alteridade e dos fenômenos como um todo.

O corpo em estado de palhaço pode ser entendido como uma antena que captura movimentos para traduzi-los em ações. Inicialmente, captura as e-moções, esse turbilhão de movimentos que podem ter ou não nome nem medida, seguindo com as sensações, para aumentar seu raio às ondulações que percebe do outro e do entorno.

Considero que introduzir algumas reflexões sobre o estado de palhaço, pode contribuir para dimensionar as qualidades desse corpo em estado de palhaço. Ricardo Puccetti define o estado de palhaço como:

[...] o despir-se de seus próprios estereótipos na maneira como o ator age e reage às coisas que acontecem a ele, buscando uma vulnerabilidade que revela a pessoa do ator livre de suas armaduras. É a redescoberta do prazer de fazer as coisas, do prazer de brincar, do prazer de se permitir, do prazer de simplesmente ser. É um estado de afetividade, no sentido de “ser afetado”, tocado, vulnerável ao momento e às diferentes situações. É se permitir, enquanto ator e clown, surpreender-se a si próprio, não ter nada premeditado, mesmo se estiver trabalhando com uma partitura já codificada [...] O estado de clown é levar ao extremo a importância da relação, a relação consigo mesmo, o saber ouvir-se, e a relação com o “fora”, o elemento externo, o parceiro, os objetos de cena, as pessoas do público” (PUCCETTI, 2006, p. 138).

O estado de palhaço poderia ser entendido então, como certa forma de estar no mundo, com a qualidade da disponibilidade aos atravessamentos que o mundo oferece. É uma condição de pré-existência, que implica a latência de um amplíssimo campo de possibilidades. O estado de palhaço é o silêncio antes de pronunciar a primeira palavra, é um vazio que engendra a criação em plenitude de potencialidades. Implica também um estado de presença que será revelado pelo prazer de ser e estar no „aqui e agora‟ como espaço-tempo existencial que privilegia a integralidade do ser sem dissociar o que pensa do que sente e age. Está todo integrado.

Juliana Jardim em sua pesquisa sobre a máscara do palhaço e do bufão refere-se ao estado de transparência do ator que:

[...] se deixa atravessar, que comunica, possibilitando a visão do outro, que permite distinguir através de si, de sua espessura, levando simultaneamente o outro a perceber um sentido oculto, enquanto ele, o ator, é evidente, claro. (JARDIM, 2002, p. 18)

O estado de transparência pode ser entendido como um ato de confiança que provoca a abertura e a vertigem diante do abismo que produz a situação de exposição frente aos outros. Atua em mão dupla entre o que eu permito libertar dentro de mim e o que o outro pode perceber desse processo e, por sua vez, libertar dentro de si próprio. O palhaço procura esses estados de exposição que incluem uma condição de comunhão consigo mesmo, tendo como testemunha o público e fazendo dessa troca o momento privilegiado da criação.

Desta afirmação como situação ideal, pode se desprender um trabalho que permita desemaranhar o complexo de mecanismos que criamos para nos proteger.

Ao nos defrontar com nossa habilidade vulnerável que acessa o campo intensivo de nosso corpo vibrátil, nos deparamos com a hostilidade que muitas vezes rege o „fora‟, e que nos impele inconscientemente a gerar „couraças‟ de proteção. Santiago Harris clarifica a utilização do termo „couraça‟, idealizado por Wilhlem Reich, que:

[...] desenvolveu este conceito enquanto examinava a relação entre o corpo e o funcionamento emocional, estabelecendo a noção de couraça como uma cronicidade do funcionamento corporal que limita a pulsão do corpo e, portanto, a função de vida [...] mecanismo de endurecimento da expressão corporal, que vale a pena examinar, pelo menos no tocante às bases do seu funcionamento no corpo cotidiano, assim como sua relação com a personalidade do ator-palhaço. (HARRIS, 2011, p. 87)

Harris continua sua argumentação junto com Mario Müller, estabelecendo o caráter não estático da couraça e a observação de que as defesas estão ali para salvaguardar a integridade da vida de maneira criativa e sensível...

Vista desta maneira, a couraça, sendo uma expressão de si mesmo e ainda que reduza as possibilidades expressivas e limite a capacidade de entrega ao movimento espontâneo, constitui uma manifestação pessoal como possibilidades de flexibilização e, portanto, de ampliação do funcionamento expressivo, o qual pode ser aproveitado para uma exploração cênica do palhaço, por exemplo. (HARRIS, 2011, p. 88)

Podemos observar que o processo para acordar o próprio palhaço transita por vários lugares íntimos, que nos põe em contato com algumas de nossas características – cheias de luzes e de sombras - adquirindo uma variedade de matizes que podem ser potencializados dentro da criação cênica e da recriação de nós mesmos. Quando enxergamos estas particularidades que possivelmente não se encaixam dentro dos padrões constituídos de sucesso e valor, através da lente do palhaço, podemos integrar um material criativo interessante e, além disso, reintegrar em nosso corpo e nossa experiência as particularidades que muitas vezes não aceitamos.

Este reencontro nos devolve a oportunidade de brincar prazerosamente com nós mesmos e nossas limitações, em um processo de autoconhecimento para trazer para um lugar de visibilidade os aspectos do risível e do ridículo que temos dentro de nós. Esse é um caminho que nunca tem fim. Cada vez que achamos alguma coisa nova dentro de nós, com a qual permitir ao palhaço brincar, temos outro milhar que está esperando a sua vez. A experiência do palhaço não permite que cheguemos a fixar as formas, o palhaço tem a liberdade de experimentar a mesma situação muitas vezes e de formas diferentes a cada vez.

Puccetti se refere à ideia do corpo do palhaço como um feixe de impulsos que o levam a „pensar em movimento‟. Sua metodologia busca o caminho da exaustão física, para entrar em contato com camadas cada vez mais profundas da musculatura, acessando lugares de não pensamento e de espontaneidade da ação. Quando o palhaço se encontra em estado de abertura, entra em contato também com a própria lógica que vai determinar sua forma de ação:

[...] o que dá sentido às ações e reações de um clown, ao seu comportamento físico, é o rigor com que ele segue a sua lógica pessoal. Conhecer profundamente esta lógica pessoal abre amplas possibilidades de criação, permitindo o encontro de soluções que têm íntima relação com o clown. (PUCCETTI, 2006, p. 140)

Por esta via, o palhaço nos apresenta outras muitas maneiras de ação e pensamento que geram surpresa e estranhamento, conseguindo assim ampliar a lente com a qual estamos acostumados a analisar os fenômenos e originando qualquer resposta que motive o corpo a reagir de alguma forma inesperada, espontânea. O corpo vai colocar algumas armadilhas na razão para permitir-lhe descansar de si mesma, deixar o corpo respirar e brincar à vontade.

É um lugar de criação que permite, acolhe e precisa de todas as nossas esquisitices, estranhezas, singularidades, fracassos, nosso jeito desajustado de pensar as coisas, nossa lógica tão própria e tão orgânica que se pergunta o tempo todo o porquê das coisas serem como elas são. O palhaço mostra a partir de sua singular capacidade de apreensão do mundo, sua forma de in-compreender o mundo, as relações, os acontecimentos.

Retornando à vontade de Hélia Borges de „desajustar‟ o sentido sobre o corpo e a saúde, o palhaço pode sugerir certo tipo de „desajuste‟ de algumas dinâmicas sociais e culturais, ao brincar com a forma como se estabelecem as „realidades‟ da „lógica imperante‟, em contraste com sua própria lógica. Ele pode nos coloca no lugar da incerteza e, portanto, no lugar das possibilidades abertas.

E do mesmo jeito como esse „corpo-palhaço‟ está aberto para todas as possibilidades, se faz necessário que esteja aberto e com capacidade de sustentar o amplo leque de experiências humanas, pois em algum momento vai se defrontar com elas. É um corpo preparado para o acaso e o risco. O risco de ser frente aos outros, de se expor, de ficar em estado de transparente vulnerabilidade. Prestes ao fracasso. O palhaço sabe da sua conexão e relação de interdependência com o outro e com os fenômenos. Poderíamos afirmar então que esse corpo-em-estado-de-palhaço é um corpo-em-estado-de-saúde.

Um corpo em estado de palhaço pode criar novos lugares para sua existência a partir dos acasos que encontra tanto em si mesmo, quanto no entorno, nos objetos, nas pessoas, nas lógicas das coisas. O palhaço realiza um ato político ao reafirmar sua existência do jeito que ele é, propondo também novas formas de estar, sentir, pensar e significar o mundo e a Vida. Podemos até construir as novas „epistemes da bobagem‟ como pedras fundantes de um estar- no-mundo mais leve, mais brincalhão, mais consciente da transitoriedade da existência, das próprias fraquezas, da aceitação profunda do que somos e da alegria de Existir!

Para os efeitos desta pesquisa, o processo para acordar o próprio palhaço aborda o treinar do „saber-sentir‟ como refere Laban. Vamos conferir ao palhaço a confiança para que ele nos leve pelos caminhos que podem nos conduzir a um lugar que há tempo não visitamos, ou que vamos revisitar uma e outra vez, mas sempre com um olhar diferente. O jogo e o brincar com e de palhaço é uma das múltiplas vias que temos para acordar essa sensibilidade adormecida nas correrias da funcionalidade e na formatação do pensamento, da ação e do gesto.