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O corpo e o habitus

No documento fabiodantasjannuzzi (páginas 49-53)

1 MAPEANDO CAMINHOS EM UM “ESPAÇO ENTRE”: NOS INTERSTÍCIOS

2.3 O corpo onde se processam as experiências e onde se expressam as

2.3.2 O corpo e o habitus

O marco mais significativo a respeito das concepções sobre o corpo, na Antropologia clássica, foi a idéia desenvolvida por Mauss (2003), já descrita, na qual o corpo físico é modelado pela sociedade e pela cultura. A partir da idéia de “Homem Total”, da associação entre expressões de sentimentos e emoções com técnicas corporais e mais um somatório de representações é que se passa a conduzir as práticas e comportamentos que vão ter suas atuações sobre o que é da ordem fisiológica promovendo um sentido e significado, ou seja, delineando uma linguagem simbólica coerente.

Nas suas discussões sobre pessoa e corpo, Mauss (1974) em “As técnicas corporais”, escreveu em termos de habitus ao tratar das atividades regulares da vida como andar, correr, nadar, etc. Para este autor, o habitus é entendido como uma variável histórica, ou seja, como uma incorporação de diferenças culturais embutidas na educação. Seria, assim, o aspecto não consciente e apreendido que formaria as rotinas corporais; sendo o corpo o primeiro e mais natural instrumento ou objeto de técnica do homem. Dessa forma, ficam evidenciadas a importância do corpo na expressão individual e o caráter coletivo dos fenômenos sociais. Ele havia mostrado, em “A expressão obrigatória dos sentimentos” (MAUSS, 1974), uma força coercitiva e um regramento moral, que passam a ser internalizados pelo indivíduo. Em seu entendimento, portanto, o corpo materializa um eixo de interseção entre todos os sistemas de símbolos e a força da sociedade.

Por sua vez, Bourdieu (1991) entende que é possível abandonar a idéia de que o idealismo objetivista ordena o mundo, sem deixar de lado o “aspecto ativo” da apreensão do mundo. Sua ênfase é na relação prática com o mundo com suas urgências e suas coisas por fazer ou dizer. Trata-se de aludir o realismo da estrutura

sem cair em um subjetivismo incapaz de dar conta da necessidade do social: é necessário dirigir-se à prática dos produtos objetivados e dos produtos incorporados da prática histórica, das estruturas e dos habitus. O autor afirma que

os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duradouras e tranferíveis, estruturas estruturadas pré-dispostas para funcionar como estruturas estruturantes, quer dizer, como princípios geradores e organizadores das práticas e representações que podem estar objetivamente adaptadas a seu fim sem passar pela esfera do consciente [...] objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser produto da obediência às regras e [...] coletivamente harmonizadas (BOURDIEU, 1991, p. 92, grifo do autor).

Para a prática, os estímulos só atuam com a condição de reencontrar os agentes já condicionados para reconhecê-los. O mundo prático que se constitui na relação com o habitus, como sistema de estruturas cognitivas e motivacionais, é um mundo de fins já realizados, pois as regularidades próprias de uma condição arbitrária tendem a aparecer como necessárias já que estão na origem dos princípios da percepção e da apreciação através das quais são apreendidas. Há uma espécie de regras de cálculos onde as antecipações do habitus se baseiam em experiências passadas (com bastante peso para as primeiras experiências) e estruturam uma determinada condição de existências. O habitus é produto da história e produz práticas, individuais e coletivas, e produz história. Sob a presença ativa das experiências passadas depositadas nos organismos como princípios, percepções, pensamentos e ações; tendem a garantir a conformidade da prática e sua constância através do tempo. Essas práticas são atualizadas por suas leis interiores, promovendo a interiorização da exterioridade, permitindo que as forças exteriores se exerçam segundo a lógica específica do organismo que as incorpora de maneira duradoura, sistemática e mecânica. O habitus possibilita a produção livre de todos os pensamentos, percepções e ações inscritas dentro dos limites que marcam as condições particulares de sua produção; dessa forma, a estrutura que o produz (histórica e socialmente situadas) governa a prática. É produto de uma classe determinada de regularidades objetivas, tende a engendrar as condutas “razoáveis” ou de “sentido comum” possíveis dentro dos limites dessas regularidades e que podem ser sancionadas positivamente porque está ajustado à lógica característica de um determinado campo. As sancionadas negativamente por serem incompatíveis

com as condições objetivas, são excluídas. É um acontecimento como contingência de um acidente, que é um problema, permite ao habitus a arte de inventar, produzindo novas práticas imprevisíveis, mas limitadas em sua diversidade (essas situações que são vivenciadas como positivas e negativas e que então modelam as práticas ao renova-las e recria-las ficam evidentes nos contextos observados em campo e que serão descritos a seguir). A independência relativa em relação às determinações exteriores do presente imediato que o habitus possui, deve-se ao fato de nele estar contido a presença ativa de todo o passado do qual é produto, funcionando como capital acumulado. Assim, como sentido prático, realiza sua reativação do sentido objetivado nas instituições: a virtude da incorporação que aproveita a capacidade do corpo para tomar a magia performática do social. A instituição se objetiva não só na lógica transcendente dos agentes particulares de um campo particular, mas também nos corpos, quer dizer, nas disposições duradouras para reconhecer e efetuar as exigências imanentes a esse campo. (BOURDIEU, 1991).

As práticas são compreensivas e ajustadas às estruturas, transcendendo as intenções subjetivas e os propósitos conscientes, individuais ou coletivos. Um dos efeitos mais evidentes entre o sentido prático e o sentido objetivado é a produção de um mundo de sentido comum fundamentado nas estruturas objetivas, ou seja, com uma objetividade que assegura o consenso sobre o sentido das práticas e do mundo, resultando na homogeneidade das condições de existência. A partir daí, os ajustes conscientes passam a depender de um código comum que intermedeia os habitus e os agentes mobilizadores. Dessa maneira, pode-se entender o habitus individual como um sistema subjetivo, mas não individual de estruturas interiorizadas, princípios comuns de percepção, concepção e ação. Eles constituem a condição de toda a objetivação e de toda apercepção, refletindo a diversidade de homogeneidade característica das condições sociais de produção. O estilo “pessoal” é apenas um desvio a respeito de um estilo de uma época ou classe. O princípio das diferenças entre os habitus individuais reside na singularidade das trajetórias sociais. As práticas dependem das probabilidades específicas que pode um agente ou uma classe em função de seu capital, instrumento de apropriação das oportunidades teoricamente oferecidas a todos (BOURDIEU, 1991).

Nesse cenário, é a partir das experiências e estruturas objetivas do espaço do jogo (regularidades específicas constitutivas da economia de um campo) que se faz

que o jogo tenha um sentido subjetivo (sem se entrar no jogo mediante um ato consciente), ou seja, uma significação, razão de ser, uma direção, uma orientação, um porvir para aqueles que dele participam. A fé prática promove a adesão sem discussão e pré-reflexiva aos pressupostos fundamentais do campo, ficando a lógica do funcionamento do campo ignorada. Sabe-se que não se entra nesse círculo por uma decisão instantânea da vontade. A “crença prática” é um estado do corpo. O sentido prático convertido em princípios motores e em automatismos corporais é o que faz com que as práticas permaneçam sem chegar a esfera consciente e revela os princípios sensatos de sua produção, quer dizer, os do senso comum. Assim, toda ordem social tira partido sistematicamente da disposição do corpo e da linguagem para funcionar como depósito de pensamentos, estando a eficácia simbólica originada no poder sobre o corpo e a crença dessa atuação coletiva. (BOURDIEU, 1991).

A hexis corporal é a mitologia política realizada, incorporada, convertida em disposição permanente, maneira duradoura de se manter, de falar, de caminhar, de sentir e pensar, carregados de um acúmulo de significações e valores sociais. A relação com o corpo está na base das relações com os outros, com o tempo e com o mundo, com os sistemas de valores; sendo que a relação com o corpo não se reduz a uma “imagem do corpo” enquanto representação subjetiva, mas constituída a partir das representações do corpo produzidas e reenviadas pelos outros (produto da vivência). Portanto, o que se aprende pelo corpo não é algo que se tem, mas algo que se é. O material proposto para aprendizagem é produto da aplicação sistemática de um pequeno número de princípios praticamente coerentes que revelam a razão de todas as séries sensíveis apropriadas sob a forma de um princípio gerador de práticas organizadas segundo a mesma razão. É através dos exercícios estruturais que se pretende transmitir uma ou outra forma de domínio prático. Todas as manipulações simbólicas da experiência corporal tendem a impor a integração do espaço corporal, espaço cósmico e espaço social; a partir das mesmas categorias e sob os olhares da lógica (BOURDIEU, 1991).

No documento fabiodantasjannuzzi (páginas 49-53)