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No ano anterior à expedição até Oriximiná eu havia discutido com os companheiros do grupo de pesquisa “o que era mergulhar no campo de pesquisa e da etnografia?”, mas até então essas conversas aconteciam num solo que nos parecia estável. Ou pelo menos ainda não estávamos cercados por muita água.

Quando saímos da margem do porto de Manaus, à medida que o tempo passava, deparamo-nos com situações em que tudo era inédito e onde nós éramos inéditos a nós mesmos frente aos acontecimentos, às experiências desconhecidas, ao desgaste físico, a proximidade de rede com estranhos, a necessidade de criar modos de organização para comer, dormir e ir ao banheiro em um barco lotado de passageiros.

Nas conversas teóricas sobre a pesquisa, poucas vezes falávamos sobre o corpo. Não à toa, tendo em vista que herdamos das instituições da Igreja, da Ciência e da Escola a prática de dissecação da utilidade do corpo, culminando em uma determinada apropriação dele que está repleta do desejo de apagamento de algumas necessidades. E, justamente, na travessia de barco as intervenções passavam pelas urgências do corpo de modo que era muito difícil negá-las, em um ambiente nada parecido com as nossas zonas de conforto.

Na condição de navegação, hábitos necessitavam ser forçosamente abandonados para a adaptação, tornando emergencial para mim a discussão de que não há outro lugar de intervenção que não seja o corpo. A saída da zona de conforto trazia atenção ao corpo de tal forma que era impossível desconsiderá-lo na pesquisa. Lidávamos com reações ao calor equatorial, ao movimento do barco, picadas de insetos, paisagens deslumbrantes e tudo o que pudesse contribuir para avivar o corpo em estímulos variáveis entre o incômodo e a surpresa. Tornava-se necessário saber como adequar-se àquele meio, não apenas socialmente como também fisicamente.

O preparo do corpo era exigido no ritmo dos acontecimentos, sem pausas ou avisos, estávamos nos fabricando para estarmos à altura do que nos acontecia. Esse tempo que chamei de “ritmo dos acontecimentos” é o próprio fazer de si e do mundo em invenção. O ritmo dos acontecimentos não nos dava a oportunidade de digerir o que

estava se processando, e o corpo era atualização da pura novidade de um território inédito.

Quando me refiro ao corpo não estou dizendo apenas do corpo fisiológico, faço isso sem reduzi-lo ao organismo. Parafraseando a maneira como Foucault (2013) descreveu o corpo: “lugar do qual se irradiam todos os possíveis”, objetivo falar do corpo como produção de si no mundo, através do qual fabricamos relações com os outros.

Certas noções de corpo se apresentam como o problema da pesquisa, partindo do princípio de que o corpo é ao mesmo tempo efeito do processo de subjetivação do sujeito e também produtor de subjetividade. O corpo como o que nos constitui na conexão com o mundo é ao mesmo tempo o efeito e a causa do que Guattari e Rolnik (2013) chamaram de “atividades de semiotização”, dizendo que a maneira como o sujeito se relaciona com o mundo afeta diretamente a produção de capacidades de percepção, memória, vontades, nos modos de existir e nos modos como o real se produz.

São atividades de semiotização todas as experiências sociais que produzem sentido para o mundo (a linguagem, a ocupação dos espaços, a vivência em comunidade, as formas de relacionamento adotadas, etc.). É essa fabricação dos sentidos e dos efeitos que são gerados a partir das noções construídas que Guattari e Rolnik (2013) nomeiam semiótica, isso é, a maneira como os modelos sociais e a produção dos discursos operam modos de estar no mundo e instituem realidades, referenciando percepções e criando territórios, produzindo sujeitos e planos de partilha do sensível.

A travessia de barco nos ajuda a pensar a fabricação do real pelo viés da semiótica, uma vez que a dificuldade de adaptação àquele meio consistia justamente em transpor-se a um território com o qual eu não possuía nenhum vínculo, nenhuma relação anterior e por isso me colocava em uma nova atividade de semiotização ou certa produção de um “novo” modo de vida.

Apesar de ter crescido em uma aldeia de pescadores e de, ao longo da vida, ter muito contato com barcos em navegação não era somente o caminho inédito, mas também a ocasião que trazia a nova experiência. Sem dúvidas, estar construindo um corpo-pesquisadora era a principal atividade semiótica que ali se produzia. Novas

relações eram estabelecidas com o outro e comigo mesma, e a cada vez que novas atividades eram forjadas novas percepções emergiam desse processo. Escrevi no meu diário de campo todas as percepções, sensações, incômodos e êxtases que dizem das alterações de estado às quais me submeti:

“É proibido casal dormir na mesma rede”, diz a placa afixada no barco. Mais cedo, pude ver o encontro do Rio Negro e do Rio Solimões. Agora a noite todas as luzes se apagaram e não consigo ver nada lá fora. O barulho do motor ecoa e o casco rompendo o rio é de uma sonoridade fresca. Alguém ronca na rede ao lado e algumas crianças choram no colo de suas mães, que estão deitadas nas redes, assim como eu. As redes quando balançam produzem rangidos e as cordas que as sustentam às vezes estalam. Estranhamente não me sinto ao relento nesse breu, penso que talvez seja a quantidade de pessoas à minha volta e o fato de estar surpresa com a cordialidade desse povo. Há uma excelência no modo como conseguem se organizar em espaços pequenos e transitórios, especialmente na mesa onde servem a comida e não há lugar para todos de uma vez. Um acordo silencioso, que estou aprendendo a cada vez que vou comer, define quem serão as pessoas priorizadas” (Fragmento do diário de campo).

Figura 3 – Mesa do café da manhã no barco de passageiros