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Este segundo capítulo continua a abordar aspectos da cultura e modos de vida dos Laklãnõ/Xokleng, porém com foco nas mudanças corporais ocorridas ao longo da história desses indígenas. Partindo de um conceito amplo, o corpo possui formas, ocupa espaços, reage a diversos momentos e a todo instante está se movimentando, seja um simples ato de respirar ou de piscar os olhos. Ele é a representação de uma sociedade, do modo como ela age no mundo e de suas relações com o Outro. O Corpo, como matriz cultural e histórica de uma dada sociedade, a representa e explicita como esta se relaciona com o mundo e com o Outro, outros corpos, grupos étnicos, sociedades.

Este corpo que é construído socialmente e expressa a cultura de uma dada sociedade, ou grupo social, o faz a partir de movimentos/formas, que têm sentidos distintos para cada sujeito e que são identificados no grupo que cria e desenvolve esses movimentos. A

partir de Marcel Mauss (1974), que cria o conceito de “técnicas corporais” como expressão de uma cultura específica, Grando (2004, p. 44) afirma que o corpo é “o primeiro utensílio sobre o qual o homem atua e o qual transforma, controlando sua natureza, desde o nascimento até a morte”.

Ao revisar a literatura para compreender o conceito de corpo e de técnicas corporais, trago uma revisão do conceito de corpo na história ocidental, na qual a visão não é a mesma dos estudos da literatura antropológica, onde este não é fragmentado, e sim a expressão da totalidade da pessoa.

Na história do corpo, os autores Corbin, Courtine e Vigarello (2008, p. 8), afirmam que no final do Século XIX houve uma distinção entre o corpo como “objeto da ciência” e o “corpo espiritualizado”. E que no Século XX a perspectiva era de um corpo “culturalista, [...] como resultado de uma construção, de um equilíbrio estabelecido entre o dentro e o fora, entre a carne e o mundo”. Quebra-se o dualismo entre corpo e espírito, passando por uma visão de que não há como considerar o corpo como autor de um movimento somente mecânico. Para haver o movimento, a técnica deve ser guiada por um pensamento, uma reflexão para efetuar a ação.

“A construção do corpo na modernidade se sustenta na ciência que, por sua vez, apresenta métodos mais eficazes e estudos biomecânicos, fundamentada em uma concepção que fragmenta o corpo, considerando este como uma máquina” (ALMEIDA, 2008, p. 109), modelo este que caracterizava o modo capitalista de pensar o homem para o desenvolvimento econômico das sociedades. Corpos fortes, saudáveis e dispostos para o trabalho “em uma sociedade guiada pelas leis do capital”, caracterizando dessa maneira uma técnica de rendimento, o uso do corpo para o capitalismo, homens treinados para trabalharem nas indústrias. Mauss explica que “estes foram provavelmente os primeiros seres que foram assim treinados”, no sentido de compreender estes movimentos como sendo coordenados com a finalidade de exercer determinado cargo, função ou tarefa de maneira rápida e eficiente, “que foi preciso primeiro domesticar, antes de todos os animais” (MAUSS, 1974, p. 221).

Douglas (1982, apud FASSHEBER 2010, p. 53), “categorizou o corpo como corpo físico, como corpo social e o inter-relacionamento contínuo entre ambos, onde o corpo social determina a maneira de se perceber o corpo físico”. Dentro desta perspectiva podemos compreender o controle que a sociedade mantém sobre o corpo físico, é

ela que determina suas condições de tratá-lo como objeto de uma condição dominada pela sociedade.

No entanto, mesmo que caracterizado como corpo físico, compreende-se que o movimento e a própria forma física do corpo são determinados por valores e compreensões que se tem em cada momento histórico do papel que as características físicas da pessoa assumem. O controle do corpo físico, portanto, é o controle da própria pessoa em cada sociedade, atendendo aos determinantes socioeconômicos (o que se come, quem pode ou não comer determinadas comidas, onde e quando, quais são os movimentos recomendados a cada grupo, gênero, idade, etc.).

Assim, “A sociedade exerce algumas pressões sobre os corpos determinando as formas de utilizá-los. Por meio desta pressão a marca da estrutura social imprime-se sobre a própria estrutura somática individual”. Esta surge para resgatar/criar/estimular a “[...] ordem e consonância de percepção nos níveis social e fisiológico da experiência do corpo” (FASSHEBER, 2010, p. 53).

Com isso, o corpo é compreendido também como uma forma de linguagem, um meio de comunicação e de exaltação dos padrões culturais estabelecidos e modificados, refletindo a “experiência cultural”. Ou seja:

O corpo ocupa um lugar no espaço. E ele mesmo é um espaço que possui seus desdobramentos: a pele, as ondas sonoras de sua voz, a aura de sua respiração. Esse corpo físico, material, pode ser tocado, sentido, contemplado. Ele é esta coisa que os outros veem, sondam em seu desejo. Desgasta-se com o tempo. É objeto de ciência. Os cientistas o manuseiam e o dissecam. Medem sua massa, sua densidade, seu volume, sua temperatura. Analisam seu movimento. Transformam-no. Mas este corpo dos anatomistas ou dos fisiologistas é radicalmente diferente do corpo do prazer ou da dor. (CORBIN, COURTINE, VIGARELLO, 2008, p. 7). É através dele que experimentamos os mais íntimos contatos, criamos e recriamos gestos, ações, é um modelo de exibição para uns,

para outros, instrumento de trabalho. Sendo o corpo,

[...] um conjunto de regras, um trabalho cotidiano das aparências, de complexos, rituais de interação, a liberdade de que cada um dispõe para lidar com o estilo comum, com as posturas, as atitudes determinadas, os modos usuais de olhar, de portar-se de mover-se, compõem a fábrica social do corpo. As maneiras de se maquiar, de se pentear, inclusive de se tatuar – se necessário, se mutilar – e de se vestir, são igualmente características do gênero, da classe etária, do status social ou da pretensão de pertencer a determinada classe [ou grupo social]. Até a própria transgressão manifesta a força do contexto social ideológico. (Id., 2008, p. 8-9).

Essas maneiras de significar e apresentar como técnicas de um determinado grupo social vêm ao encontro do conceito de “Fronteira” apontando por Barth (1969, p. 196), que nos auxilia na compreensão de como na relação entre um corpo e outro “a identificação de outra pessoa como pertencente a um grupo étnico implica compartilhamento de avaliação e julgamento”.

Podemos entender as fronteiras como um visitante em sua casa. Você como o anfitrião lhe apresentará seus cômodos, seus móveis, seu jeito de cuidar da casa e ele mesmo sendo um visitante fará algumas considerações a respeito de como sua casa está sendo organizada. Isto significa que há um espaço de troca entre essas diferentes formas de organização, mas que não há nenhum ponto determinante em que essas formas de pensar não possam ser ressignificadas a partir da nova experiência adquirida.

Logo, isso leva à aceitação de que os dois estão fundamentalmente “jogando o mesmo jogo”, e isto significa que existe entre eles um determinado potencial de diversificação e de expansão de seus relacionamentos sociais que pode recobrir de forma eventual todos os

setores e campos diferentes de atividade (BARTH, 1969, p. 196).

Para Tassinari (2001, p. 62), “O termo ‘fronteira’ evoca várias noções do senso comum, como a de ‘fronteiras da civilização’, as ‘terras de ninguém’ habitadas apenas por ‘selvagens’, prontas para serem ‘desbravadas’ e colonizadas”. Atrevo-me a acrescentar que o termo remete às fronteiras de uma guerra, tanto no sentido bélico, tanto quanto no sentido mercadológico (capitalista) e como espaços de contato dos grupos.

Grando (2004), em diálogo com os dois autores acima, busca sintetizar sua compreensão do conceito de fronteiras étnicas e culturais (BARTH, 1969), para pontuar como compreende as relações que se estabelecem no confronto entre diferentes formas de ser, de identificar- se, tendo o corpo como a centralidade da pessoa. Na fronteira, as formas de ser se apresentam:

Como franjas de uma cortina que se tocam quando balançadas pelo vento, cada cultura mantém-se presa a sua parte, seu grupo, ao mesmo tempo em que é tocada pelo contato com outro grupo étnico. Como franjas que, ao sabor do vento, se aproximam, se distanciam, se entrelaçam; as culturas dependendo do contexto histórico, interpenetram-se, entrelaçam-se, aproximando-se ou distanciando-se (GRANDO, 2004, p. 43).

Assim, compreende-se com a autora que um grupo étnico, ao entrar em contato com outros grupos étnicos, não deixa de pertencer às suas raízes e passa a pertencer às outras, mas ao contrário, passam a relacionar-se entre si proporcionando um intercâmbio de saberes e significados.

Para Geertz (1973) a cultura deve ser compreendida como “teias de significados” que o próprio homem criou a partir de suas relações com o mundo. Como afirma Aranha (2000, p. 6), denota tudo que o homem produz ao construir sua existência: as práticas, as teorias, as instituições, os valores materiais e espirituais, ou seja, a “[...] cultura é, portanto, um processo de auto-liberação progressiva do homem, o que o caracteriza como um ser de mutação, um ser de projeto”.

Como Geertz (1973) apresenta no exemplo da pedra e do vidro da catedral de Chartres, na França, não basta entender o homem apenas pelo homem, para compreendê-lo devemos entender o local onde ele vive, nasceu e foi criado. É necessário compreender as relações sociais que cercam o sujeito no seu mais íntimo ser e estar, e compreendê-lo num contexto social que é histórico, mantendo-se no seu curso, no entanto, em constante mudança conforme as relações estabelecidas com outros homens e com a natureza. Ou seja, não são só as relações com os outros grupos com os quais tem contato que mudam as práticas cotidianas, mas também o local, o território onde está, as formas de produzir a vida em cada local, e nas condições objetivas nele estabelecidas, inclusive por consequência das relações com outros homens/grupos.

Nesta dinâmica das relações que produzem o corpo, cabe destacar que as mudanças do corpo passam pelas mudanças nas técnicas corporais, conceito fundamental do qual Marcel Mauss (1974), é a primeira e principal referência nos estudos da antropologia, especialmente nos estudos sobre as sociedades indígenas.

Para Mauss (1974, p. 211), as “técnicas corporais” são “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade, e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. Referindo-se ao autor, Fassheber (2010, p. 53) explica que “Mauss indica-nos que fazer um inventário das técnicas corporais eficazes e tradicionais de uma sociedade permite-nos consolidar certas especificidades de determinada cultura”. Desse modo, podemos compreender as diferenças entre as sociedades, como as mudanças dessas técnicas ocorreram e de que maneira influenciaram ou afetaram o sentido de pertencimento num determinado grupo. E é com esta proposição que passamos a analisar as técnicas corporais marcadas nos corpos Laklãnõ/Xokleng.