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2. POR ENTRE FRESTAS, LABIRINTOS E MARGENS: ESPREITANDO O ATO DE

5.3 O corpo trans e seus acenos por uma existência “menor”

Todo aparato conceitual em que está assentado o paradigma e as políticas de inclusão está atrelado a um ordenamento disciplinar e marcado por uma epistemologia que carrega um desejo impetuoso de certeza.

A educação moderna é tarefa do homem que faz, que projeta, que intervém, que toma a iniciativa, que encontra seu destino na fabricação de um produto, na realização de uma obra. [...] A educação é, em suma, a obra de um pensamento calculador e de uma ação técnica, em que se trata de conseguir um produto real mediante a intervenção calculada num processo concebido como um campo de possibilidades. Uma prática técnica, definitivamente, em que o resultado deve se produzir segundo o que foi resultado deve se produzir segundo o que foi previsto antes de iniciar (LARROSA, 2010b, p. 193).

Assim tem se configurado as práticas desenvolvidas na educação: mediante uma intervenção calculada investe na fabricação de sujeitos a partir de projetos e programas cujos resultados são previstos de antemão. Jorge Larrosa assevera ainda que “talvez a pior tentação a que sucumbiu a pedagogia tenha sido aquela que lhe oferecia ser a dona do futuro e a construtora do mundo” (Idem, p.196). Ao proceder dessa maneira, investe em uma prática totalitária de transformação da realidade por atuar em virtuais e na fabricação de um mundo a partir de uma prática orientada à realização de uma ideia, de uma projeção sua, esvaziando de seu projeto a presença da multidão queer que habita este mundo.

A proposta de uma nova compreensão da subjetividade faz ranger os cânones da pedagogia totalitária e seu desejo de estabilidade e repulsa da incerteza, característica do dinamismo da subjetividade carnal. Esta inevitavelmente desestabiliza a pretensão da proposta de inclusão de todos, em geral projetada pelos “funcionários da verdade”, o que tem como efeito o travamento do pensamento pedagógico por celebrar “verdades únicas anunciadas pelos arautos que arrogam a si a tarefa messiânica de salvadores do mundo” (VEIGA- NETO, 2009, p. 22).

A diferença irrompe este projeto seguro e seu desejo de continuidade porque impõe sua presença enigmática e absoluta. Sua alteridade radical inquieta a pretensão da

inclusão em educação dada sua incompatibilidade com aqueles projetos e planificações, onde não há espaço nem acolhimento para o novo. Daí o tratamento hostil dispensado à diferença, este “hóspede indesejado”, que não cabe nas medidas ditadas pela “senhora da casa”.

A partir do momento que a diferença é deslocada para o terreno da ética e entendida enquanto intensidade, desterritorializa princípios e normas do paradigma da inclusão. Ao colocarmos em evidência a agonística do corpo trans frente às diferentes normatividades, lançamos outra compreensão sobre a experiência de si, entendida agora como exercício de liberdade em processo permanente de produção de singularidade. O que significa reconhecer a instabilidade das posições e que “não se tem em momento algum a interrupção definitiva da luta e a cristalização do real em uma de suas possíveis configurações complexas” (CASANOVA, 2011, p. 199).

Daí a dificuldade de olhar o mundo a partir de uma perspectiva trágica, uma vez que nosso pensamento foi constituído referenciado por um modo de operar abrigado em certezas fixas e naturalizadas. Pensar o corpo como organização política instável desatrelado de um quadro identitário nos causa náusea e desamparo. Afinal, como posicionar socialmente o corpo deslocado dos enquadramentos identitários?

A experiência trans encarna uma “subjetividade carnal”, uma vez que esta “propõe uma universalidade do absolutamente singular. A universalidade do absolutamente singular é uma doxa que se torna episteme, pois aponta para a experiência vivida que pode ser carnal, para aquilo que é nosso, que é singular e único, mas que pode ser compreendido pelo outro, pode ser partilhado” (BARRENECHEA, 2011, p. 15). Por isso consideramos que o corpo trans nos faz vestir sua pele ao nos posicionarmos frente à arbitrária e absurda exigência da idealização normativa, uma vez que ninguém consegue satisfazê-la, seja referida ao ideal de masculinidade ou de feminilidade.

Aqui não estamos nos referindo a viver uma solidariedade fictícia, estética, do olhar e da imaginação. Trata-se de uma solidariedade do coração e dos nervos21 (WOOLF,

2012). Na experiência vivida, todo humano experimenta a dor, a solidão e a miséria de existir sob os investimentos do sistema heterossexual e de seus dispositivos de produção engessada

21Virgínia Woolf, ao relatar a luta de mulheres no início do século XX (1913) por direitos civis e trabalhistas,

discorre sobre a diferença entre essas formas de solidariedade, colocando-se como “expectadora benevolente” e “irremediavelmente separada” das demais mulheres que participavam do encontro da União das Trabalhadoras, uma vez que frente àquelas reivindicações, já gozava de boa parte delas por pertencer a uma classe social mais favorecida. Para ela, aquelas mulheres viviam uma “solidariedade do coração e dos nervos”. Afirma que: “O espírito [o de Virgínia] podia estar ativo; o espírito podia ser agressivo, mas o espírito não tinha corpo, não tinha pernas ou braços para impor sua vontade”, o que para ela era condição fundamental para transformar discursos que soavam vazios e vagos em carne e osso. (WOOLF, 2012, p. 71).

de masculinidade ou de feminilidade.

Dessa forma, viver a singularidade é caminhar à beira das falésias. A agonística do corpo trans assume um valor político e coletivo na metamorfose experimentada por todos os corpos, sempre caótica e processual. “Nietzsche leva em consideração a carne, o corpo. Não um corpo idealizado ou teorizado. Mas um corpo que se alimenta, caminha, sofre, um corpo que entende, que gosta e vê, sente e toca” (ONFRAY, 2014, p. 132), um corpo que somos todos nós.

Aqui, com licença poética, nos permitimos “roubar” o deslocamento feito por Sílvio Gallo do conceito de deleuziano de “literatura menor” para pensar a experiência do corpo trans como existência menor, dado seu valor desterritorializado, político e coletivo, uma vez que a vivência de sua singularidade desconstrói transversalmente os saberes sobre o sexo, o gênero, bem como suas territorialidades forçadas. Corrói ainda a noção basilar do paradigma e das políticas de inclusão (a identidade), ao colocar a subjetividade carnal como potência capaz de universalizar o absolutamente singular por meio da arte de transfigurar.

Uma existência que fala por toda coletividade, dada impossibilidade de vivermos enclausurados naquelas territorialidades forçadas de masculinidade ou feminilidade, limitando-se ao par binário idealizado. Afinal, quem nunca sentiu a náusea da inadequação? Quem nunca se sentiu “farto dos semi-deuses” e desejou encontrar a gente de carne, osso, sangue e deserto? Uma existência menor com potencial de se conectar a diferentes multiplicidades, diversas formas de existir.

Assim, todo ato singular se coletiviza e todo ato coletivo se singulariza. Num rizoma, as singularidades desenvolvem devires que implicam em hecceidades. Não há sujeitos, não há objetos, não há ações centradas em um ou outro; há projetos, acontecimentos, individuações sem sujeitos. Todo projeto é coletivo. Todo valor é coletivo. Todo fracasso também (GALLO, 2003, p. 84).

O pensamento da diferença entendida como singularidade se coloca em confronto com uma educação pretensamente inclusiva, a chamada “educação maior”, com seus sistemas totalitários, ordenados e previsíveis (GALLO, 2003; VEIGA-NETO, 2009; LARROSA, 2010b). No deslocamento proposto por Sílvio Gallo, uma “educação menor” aposta intervenções no mundo por meio de atos cotidianos, sendo comprometida com a singularidade, não com grandes projetos revolucionários de transformação radical da sociedade direcionados à “produção objetivada do sujeito da educação”. A “educação menor” se permite agir a partir do diagnóstico, atuando nas brechas, nas fissuras produzidas pelas interpelações da diferença. Neste caso, a diferença não só tem potencial de irrupção, como

também de intervenção.

O corpo trans é uma irrupção que não quer ser decifrada pela nossa linguagem habitual. Exige seu lugar e uma experiência de encontro poético, de modo a não tornar a existência anêmica dada pela condução moral e renúncia em nome de supostos valores superiores. Nosso desejo é fazer dessa escrita dinamite22: implodir a “educação maior”, não a

partir de projetos revolucionários pautados em modelos totalitários, mas guiados por uma ética da singularidade e do acontecimento capaz de potencializar novas experimentações de vida e acolher o acontecimento daquele que nasce. Uma “educação menor” comprometida em promover encontros, conexões entre singularidades.

Nosso intuito aqui não é arrematar o pensamento desenvolvido neste trabalho apontando caminhos, tampouco afirmando certezas. Desejamos elevar o pensamento a ponto de mobilizar mais questionamentos e inquietar outros pesquisadores a expandir os estudos da temática no campo da educação. De alguma forma produzir um efeito ético-político ao tornar problemático o que fazemos na inclusão em educação, de modo a “incitar a produção de um outro de nós mesmos” (MARTINS, 2009, p. 52). Acima de tudo, nosso desejo é produzir pontes para que, diante do imponderável, frente ao poder daqueles que atravancam nosso caminho, sermos passarinhos23.

22Fazemos alusão à afirmação de Nietzsche (2008a), em Por que sou um destino: “Eu não sou um homem, sou

dinamite”.

23Metáfora utilizada por Veiga-Neto (2009) em O currículo e seus três adversários: os funcionários da verdade, os técnicos do desejo e o fascismo, em referência ao Poeminha do Contra, de Mário Quintana. “Todos esses que