ETAPA 1- O CONCEITO DE PERFORMANCE: TEORIA E PRÁTICA
4- Corporeidade
É bem verdade que se pode perceber, a partir do surgimento da figura do diretor
teatral, no início do século XX, e, com ele, o nascimento do chamado Teatro
Moderno, uma crescente preocupação com o corpo como instrumento de trabalho
do ator, o que assume relevância nas teorias teatrais em diversos estudos, como
A corporeidade é para Roubine a dimensão que fundamenta a especificidade do
teatral. Segundo o estudioso, podemos perceber a relevância que o corpo assume
não só nas teorias, como também em práticas teatrais da contemporaneidade.
Ao longo do século, mais especificamente nos últimos 30 anos (o original data de 1985) , observa-se que a revalorização do corpo desencadeia um grande números de pesquisas teatrais ... o corpo do ator passou a ser objeto de reflexão e de saber. E também de experimentação. 76
Uma concepção mais experimental do teatro esteve em evidência nas décadas de
60-70, com as performances, os happnnings e ações, nas quais se pode perceber
de maneira concreta o que Artaud formulou mais em propostas e menos em ação.
As propostas de Antonin Artaud rompem a estrutura hierárquica entre texto e
encenação, palco e platéia, destacando-se pela radicalidade, em seu jogo de
duplos. Ao considerar a palavra como uma “representação sonora de uma
excitação nervosa”, Artaud busca uma linguagem encantatória, que envolva o
espectador de uma maneira que fuja ao intelecto, inserindo o corpo do ator como
caminho para se chegar a percepções mais instintivas e menos racionais no
teatro. Artaud reclama a existência pelo corpo, mais exatamente pela dor, que o
acompanha durante toda sua trajetória.
Não sei mas sei que o espaço o tempo 76 ROUBINE, 1995. p.52.
a dimensão o devir o futuro o destino o ser o não-ser o eu o não-eu
nada são para mim; mas há uma coisa que é algo, uma só coisa que é algo e que sinto por ela querer SAIR: a presença da minha dor do corpo, a presença ameaçadora infatigável do meu corpo;77
É desse lugar de afirmação de presença do corpo que nascem suas propostas
para o Teatro da Crueldade; teatro que afirma sua corporeidade, negando a
fragmentação do corpo em órgãos e buscando sua inteireza, sua plenitude, sua
liberdade das amarras sociais. Artaud, o ruminador, produtor de um som que deve
ser situado muito mais na esfera do sentido pleno, do acontecimento, como
escopo do devir78, propõe, de certa maneira, a recuperação da dimensão ritual do
77
ARTAUD, 1983. p.158.
78
teatro e ressalta a importância do corpo num nível limite, do risco, da
transgressão, na dimensão da doença, da morte, da orgia.
No caminho da procura do que vem a chamar Teatro da Crueldade, Artaud depara
com o Corpo sem Órgãos: “A realidade não foi construída porque os órgãos
verdadeiros do corpo humano ainda não estão compostos e instalados ... O teatro
da crueldade quer fazer dançar as pálpebras com os cotovelos, as rótulas, os
fêmures e os dedos dos pés”79. A busca por uma “liberdade corporal” passa pela
construção de um corpo diferenciado, e isso fica ainda mais evidente em Para
acadar com o juízo dn Dnus:
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força mas não existe coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, E devolvido sua verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas Como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será seu verdadeiro lugar80.
As referências corporais de Artaud denunciam uma visceralidade de propostas
corporais para o teatro e para a vida. Através da exacerbação do corporal,
percebe-se a tentativa de construção de uma nova maneira de encarar a cena –
de um estar presente num corpo pleno – respirado, trespassado por fluxos e
impulsos. A corporeidade que o teatro de Artaud propõe implica um rompimento
79
ARTAUD, In: LINS, 2000, p.47.
80
com a representação a partir do estreitamento da relação entre arte e vida, num
teatro chamado da crueldade.
Não mais será uma representação, se representação quer dizer superfície exposta de um espetáculo oferecido a curiosos. Nem mesmo nos oferecerá a apresentação de um presente, se presente significa o que se ergue diantn dn mim. A representação cruel deve investir-me. E a não-representação é, portanto, representação originária, se representação significa também desdobramento de um volume, de um meio em várias dimensões, experiência produtora de seu próprio espaço81.
A representação torna-se “auto-apresentação do visível e mesmo do sensível
puros”82. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o sentido da performance surge do
acontecimento, da relação que se estabelece entre performer e participante;
relação calcada nas trocas sensoriais e corporais, possibilitada pelo vivenciar de
uma experiência comum que, para Artaud, encontraria lugar no teatro. Daniel Lins,
em seu livro Antonin Artaud - O Artnsão do Corpo snm Órgãos, explicita a
aproximação entre os escritos de Artaud e as formulações de Deleuze e Guattari
sobre o Corpo sem Órgãos. “O que quer dizer desarticular, parar de ser um
organismo?” Deleuze e Guattari, respondem à pergunta da seguinte maneira:
Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor.83
81 DERRIDA, 1995, p.157. 82
DERRIDA, 1995, p.158.
83
Assim é o corpo da performance, pleno de devir, ávido por transformações, ele
deixa de ser apenas uma imagem, com a qual se identifica e passa a ser um
instrumento de percepção do mundo. A arte performativa pode, então, ser vista
como um fenômeno sensorial e como acontecimento a ser vivenciado
corporalmente pelo sujeito.
o corpo enquanto tem ‘condutas’ é esse estranho objeto que utiliza suas próprias partes como simbólica geral do mundo, e através do qual, por conseguinte, podemos ‘freqüentar esse mundo’, ‘compreendê-lo’ e encontrar uma significação para ele.84
O artista nessa mudança de perspectiva revisa a linguagem e a arte, buscando
“liberar a consciência” do excesso de verbalização e racionalidade para atingir os
sentidos. Para isso é necessário “pensar” com nossos corpos, de modo a usá-los
como “agentes do conhecimento.” 85
É, principalmente, a partir das transformações culturais dos anos 60-70 que o
corpo se torna lugar de intervenção artística. O corpo funciona como elemento
primordial de mudança na relação artística: do artista consigo mesmo, do artista
com o objeto de arte, do artista com o espectador e do espectador com o objeto
artístico. O questionamento e a redefinição do papel da arte na sociedade passam
por formas como a arte conceitual, a dody-art, a narth-art e pela performance. A
84 MERLEAU-PONTY, 1999, p.317.
85 KAPRA, 1982, p.37. Ao refletir sobre a ênfase dada ao pensamento racional na cultura ocidental, Kapra
aponta para a necessidade de valorização do pensamento intuitivo cuja construção não intelectual baseia-se na experiência direta, na percepção ampliada e consciente da realidade.
performance age no caminho aberto pelas vanguardas, pela inserção surrealista
do inconsciente na criação, pelas propostas viscerais de Artaud.
A prática de experiências fora dos modos institucionalizados, o caráter efêmero, lúdico, imaterial dessas operações, e a desobstrução momentânea do espaço instituído, abrem campo para investimentos libidinais, logo, para a inclusão do corpo na linguagem86.
O corpo adquire relevância na performance; é o corpo do artista que carrega sua
identidade e assume pnrsonas ao ocupar o espaço de troca com o participante,
com o corpo do participante. A relação corpórea ocorre através de trocas
perceptivas e, em muitas performances, o corpo é posto em evidência na tentativa
insistente de lembrar o sujeito da matéria de que é feito, aproximando-o dos
sentidos e permitindo-lhe relativizar e, em alguns momentos, esquecer a
apreensão do mundo pelo racional e analítico. Ao utilizar um discurso sensorial, a
arte passa a se constituir com base em outros códigos que não o da palavra. A
performance oferece sensações a serem percebidas e o corpo a corpo do
performer-participante quebra a dicotomia sensação x pensamento, colocando a
existência na dimensão da pele, da carne, do sangue. Para Alliez, “a arte não tem
outra finalidade a não ser a de fazer virem à luz perceptos e afectos
desconhecidos”87. É uma espécie de “surpresa”, de estranhamento que várias
performances exploram em sua relação com o participante, colocando-o num
outro lugar, fora das percepções habituais do cotidiano.
86
MILLIET, 1992, p.152.
87
Mesmo em relação ao teatro, Pavis aponta que “o corpo do ator não é percebido
pelo espectador apenas visualmente, mas também cineticamente, hapticamente;
ele solicita a memória corporal do espectador, sua motricidade e sua
propriocepção”88.
A performance na medida em que afasta o sentido do racional e o aproxima do
próprio acontecimento afirma-se como uma “experiência física plurissensorial” 89,
que coloca em jogo as sensações e impressões corporais dos participantes. É a
sensação instantânea e pontual que possibilita a obra de arte, afinal, “a realidade
sensível corpórea é invisível, mas não menos real que a realidade visível e seus
mapas”90.
4.1- Obra-corpo
A artista plástica Laura Lima é um bom exemplo da presença do corpo nas artes
plásticas. Desde 1995, vem desenvolvendo várias séries de trabalhos em que a
obra se efetiva no corpo de performers e/ou participantes, tais como: Homnm =
Carnn/Mulhnr = Carnn; Costumns; Tatuagens Dimnnsionais; RhR (abreviatura de representativo-hifen-representativo); e Vivia 21. Aspecto curioso é que Laura não
utiliza o próprio corpo para veicular seu trabalho. O que a artista faz é “buscar
88 PAVIS, 2002, p.76. 89
DE MARINIS, 2000.
90
possíveis alteridades experimentando algo de sua própria carne na carne do
outro.”91
A carne se torna visível na presença de corpos diversos (de homens, mulheres,
jovens, velhos) que se dispõem a experimentar a obra da artista. Ao despir o
corpo de sua identidade social, ressaltando apenas sua materialidade e seus
traços aparentes (tipo físico, gênero, idade) confere ao organismo uma espécie de
“alteridade experimental que atravessa todos nós”92 e proporciona aos performers
e participantes, pela vivência presencial da obra, a percepção inscrita em sua
própria carne.
Na série de trabalhos Homnm = Carnn/Mulhnr = Carnn (1996-1998) e em
Costumns (2001-2002), em exposição no Museu de Arte da Pampulha em 2002, fica claro que a artista pensa sua obra em relação ao corpo. Na entrada do museu,
um corpo masculino nu veste um Puxador (nome da obra) e realiza o esforço inútil
de puxar o prédio do museu. Outros corpos são colocados em diálogo com o
corpo do participante, habitando diferentes espaços do museu: dois homens
grudados pelos quadris, como siameses, negociam as direções e os caminhos a
serem percorridos por seus pés e mãos em contato com o chão; três mulheres
nuas fazem um quadro vivo, numa releitura do quadro As três graças, do pintor
renascentista Rafael.
91
BAUSBAUM, 2000.
92
Quadris, Laura Lima, 2002.
A obra acontece na relação que se estabelece entre o visitante do museu e os
corpos que performam pelo espaço, num desfile de nudez e pequenas ações. O
visitante está vestido e, por isso, é evidente o contraste com os corpos nus,
lembrando-o de sua nudez camuflada pelas vestimentas sociais. As ações são
insólitas – o esforço de um homem para puxar a arquitetura do prédio; o ir e vir
negociado entre dois corpos grudados pelos quadris; uma disputa entre corpos
nus e cabeças cobertas e amarradas entre si. O inusitado das figuras nuas,
perambulando pelo espaço do museu e estabelecendo relações entre si e com
seus freqüentadores, causa estranhamento ao olhar. Cabe, assim, a inquietação:
o participante pode além de olhar? Essa é uma barreira que se rompe quando ao
se reconhecer como carne o participante tem a chance de se vestir com
Costumns – peças feitas de vinil azul-bebê que vestem partes do corpo, dedo, cabeça, mão, ombro – dispostas numa arara metálica à escolha. Ao vestir apenas
fragmentos de corpo o costume aponta para a falta de inteireza, para a
incompletude. Num espelho, como de uma loja de departamentos, o sujeito se vê
a si mesmo, observando o absurdo de seus “costumes”, como o hábito de vestir-
possível se espantar ou até mesmo brincar com a carga de convenções que pesa
no dia-a-dia.
Ao expor em conjunto Costumns e Homnm = Carnn/Mulhnr =Carnn, Laura Lima
insere o corpo no espaço de produção da arte. A visão do corpo nu aproxima os
participantes dos performers, colocando o sujeito num lugar de negociação e
questionamento no esforço de inter-relação com a obra-corpo-vivo. A arte está no
vestir as obras e no entrar em contato com as obras-corpos que estão em trânsito
no museu. Ao possibilitar ao participante vestir suas peças, a artista o aponta,
através da relação de espelhamento, também como obra. O lugar ocupado
socialmente é passível de questionamento, a partir dessa arte que se faz corpo e
ação. Que relações estabeleço aqui e agora, mas também no mundo, com outras
carnes – homens/mulheres? Que artifícios/costumes utilizo para construir minha
imagem como sujeito? Nos dizeres de Adriano Pedrosa, curador da exposição em
Belo Horizonte, Laura realiza uma “articulação subversiva e poética entre o
corpo/carne tomado como figura (o nu) e conceito (a vida), cruzando campos
políticos, sexuais e – por que não? – artísticos”93.
93
Costumes, Laura Lima, 2002.