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Quando pensamos em raça é notável que este discurso se norteie entre brancos e não brancos, entre europeus, negros e índios. No entanto, é preciso perceber que a própria nomenclatura, ou classificação que a linguagem atribui, não dá conta de abranger a multiplicidade dos corpos latinoamericanos, mestiços, ameríndios, afro-ameríndios, etc. Corpos estes que não podem ser classificados a partir de um dualismo entre negros e brancos. Cusicanqui traz uma imagem poderosa para pensar na coexistência de cores na América, fazendo uso da potência metafórica da palavra, “grisura”, “gris” do espanhol, que significa acinzentado, ou manchado, Cusicanqui se utiliza dessa metáfora para descrever os corpos latino-americanos como corpos manchados, não hegemônicos, não estáticos, miscigenados e em constante movimento. Longe de inspirarem à fusão, tão pouco produzir um terceiro termo hegemônico, mas uma alternativa para conjugar oposições sem subjugar um ao outro, assim, preservando as diferenças concretas das experiências vividas em territórios, suas línguas e cores. A socióloga cria um conceito chamado de “Ch’ixi”: “Lo ch’ixi es como una reverberación. Sólo a la distancia crees que lo ch’ixi es un tercer color, pero si te acercas, son colores opuestos.” (CUSICANQUI, 2018, p.134) Ainda sobre o conceito ch’ixi Cusicanqui faz uso de metáforas e imagens para explicá-lo:

Personalmente, no me considero q’ara (culturalmente desnuda, usurpadora de lo ajeno) porque he reconocido plenamente mi origen doble, aymara y europeo, y porque vivo de mi propio esfuerzo. Por eso, me considero ch’ixi, y considero a ésta la traducción más adecuada de la mezcla abigarrada que somos las y los llamados mestizas y mestizos. La palabra ch’ixi tiene diversas connotaciones: es un color producto de la yuxtaposición, en pequeños puntos o manchas, de dos colores opuestos o contrastados: el blanco y el negro, el rojo y el verde, etc. Es ese gris jaspeado resultante de la mezcla imperceptible del blanco y el negro, que se confunden para la percepción sin nunca mezclarse del todo. La noción ch’ixi, como muchas otras (allqa, ayni) obedece a la idea aymara de algo que es y no es a la vez, es decir, a la lógica del tercero incluido. Un color gris ch’ixi es blanco y no es blanco a la vez, es blanco y también es negro, su contrario.

La piedra ch’ixi, por ello, esconde en su seno animales míticos como la serpiente, el lagarto, las arañas o el sapo, animales ch’ixi que pertenecen a tiempos inmemoriales, a jaya mara, aymara. Tiempos de la indiferenciación, cuando los animales hablaban con los humanos. La potencia de lo indiferenciado es que conjuga los opuestos. Así como el allqamari conjuga el blanco y el negro en simétrica perfección, lo ch’ixi conjuga el mundo indio con su opuesto, sin mezclarse nunca con él. (CUSICANQUI, 2010, p. 69)

A cor, a raça, e mesmo as etnias, não são compostas de palavras atribuídas sobre tais grupos, tão pouco podem ser descritas por categorias universais modernas. A gradação imperceptível da transição entre uma cor e outra, não é uma noção de ausência, de perda de identidade e

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significados, mas é um meio, nem dentro nem fora, mas uma imagem, como que uma fotografia de algo que está sempre em movimento, mas que em um segundo de momento se registra.

Nesse sentido, o sujeito afro-ameríndio ocupa um lugar sempre de fronteira, num mundo sendo conjugado entre diferentes, que coexiste entre opostos, mas que coexistem sem se misturar de forma totalmente hegemônica. Não é uma noção de hibridização cultural, em conformidade com a dominação cultural contemporânea, mas de entender que fazemos parte de um mundo fronteiriço, liminar e fluido.

Entender a complexidades das raças, cores e etnias latino-americanas do sul, é entender que é preciso romper com as imagens mesmo de categorias universais sobre tais aspectos, rompendo assim também com a língua colonial que as produzem, e mesmo com a escrita, desassociando corpos de pré-marcadores, permanecendo somente suas experiências de opressões e resistências vividas, pois estas são reais. Assim, abrir mão das figuras e imagens categorizadoras sobre raça, etnia, gênero e sexualidade. Dessa forma, contar nossas histórias e nossas experiências, assumir e fazer uso da nossa língua, das nossas potências contidas nas figuras de linguagens orais, dos nossos conhecimentos ancestrais, etc, são ferramentas para uma auto-representação. Como afirma Grada Kilomba: “Escrevo com palavras que descrevem minha realidade, não com palavras que descrevam a realidade de um erudito branco, pois escrevo de lugares diferentes. Escrevo da periferia, não do centro” (KILOMBA, 2019, p. 59) Aos poucos nós vamos costurando novas narrativas, novas imagens e interpretações que permitem descentralizar o sujeito normativo clássico do discurso, enquanto rompemos com a epistemologia produzida pelo sujeito branco.

Vivemos uma crise de valores epistêmicos, Cusicaqui afirma: “um sistemático bloqueio e confusão nos processos de conhecimento. Uma crise que afeta o sentido mesmo de nossas palavras. Uma crise colonial que se potencializa com as implantações passivas do sistema econômico e político neoliberal, de modernidade e “desenvolvimento”. (CUSICANQUI, 2010, p. 69) É preciso, portanto, pensar a partir de nossa linguagem oral, nossas narrativas, nossa escrita proveniente dela, resgatando nossas origens e nossa história Abya Yala, rompendo com as epistemológicas dominantes, abrindo mão das categorias moderno colonial, hierárquicas, binárias e racistas. Este é um movimento que tem como plano de fuga também o universalismo acadêmico, num processo de romper com os próprios termos gramaticais. Como afirma Kilomba: “Parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário na qual nos possamos todas/xs/os nos encontrar na condição humana.” (KILOMBA, 2019, p. 21) Talvez este caminho nos possibilite fugir das restrições gramaticas que pesam sobre questões de gênero, de raça, de territorialidade, etc. Essa é uma forma de escrita que descoloniza o pensamento, um conhecimento emancipatória e alternativo, assim reconfigurando as relações de saber, criando novas alternativas epistemológicas, colocando a precariedade, a dor, a emoção, o corpo, incorporados no discurso, como práticas

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que nos possibilitem nos ouvirmos e nos enxergarmos, escrevendo sobre o próprio corpo e explorando os significados desse corpo, encontrando assim uma voz abya yala, como um processo de decolonização do pensamento e de suas figuras hegemônicas. Como também afirma Yuderkys: “Reivindicamos el derecho a disentir, a rabiar a enfrentar y a proteger con uñas y dientes una historia y una lucha legítimamente propia, en la medida en que la hemos construido día a día con nuestra ganas, nuestras lágrimas, nuestros cuerpos, nuestras energías.”

(MIÑOSO, 2007, p. 22)

Acredito que um escritor está sempre envolvido em uma linguagem que ele tem de romper e que é urgente falar, escrever, contar a história não dita: aquela que contam como a miscigenação brasileira foi feita a partir de estupros de mulheres negras e indígenas; que a ocupação dos estados brasileiros foi feita com índios sendo violentamente expulsos de suas terras; aquela que delatam a tortura, morte e desaparecimento de mulheres na resistência à ditadura militar no Brasil, como Nilda Carvalho Cunha, Sônia Maria de Moraes, Marilena Villas Boas Pinto, Lígia Maria Salgado Nóbrega, Aurora Maria Nascimento Furtado, Dilma Vana Rousseff, entre tantas outras, como conta o livro escrito a partir da Criação da Comissão da Verdade em 2010, Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino; aquela que grita “quem matou Marielle Franco?”, para que a história não seja omitida, para que a barbárie não se repita, para que nossos nomes não sejam apagados e nossa história esquecida. E assim possamos lembrar quem realmente somos, ultrapassando o discurso colonial. Yuderkys Miñoso afirma que “através desses rompimentos, a imagem das condenadas do mundo vai se formando, essas cujas vidas e histórias foram ocultadas pela estrutura feminista eurocêntrica.” (MIÑOSO, 2020, p. 115) Um pensamento decolonial é, portanto, também antirracista, percebendo que as construções racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice e versa. Como diz Lugones: “gênero e raça estão tramados e fundidos indissoluvelmente, só assim podemos ver as mulheres de cor no presente plano das opressões” (LUGONES, 2020, p. 60).

A decolonização se torna a contestação de todas as formas e estruturas dominantes, sejam elas linguísticas, discursivas ou ideológicas. Por toda parte, das percepções, instituições e representações imperialistas e racistas que, infelizmente, permanecem conosco até hoje. Este é um feminismo que acredita na potência coletiva, na dimensão da cultura oral, nos espaços de resistências, como a arte grafiteira das periferias, grupos folclóricos de atuação política como Mulheres ao vento da favela da Maré; a organização das mães nas favelas que reivindicam o direito e a segurança de seus filhos; os coletivos como Mães de maio que reagem contra a violência policial do Estado; o funk das favelas cariocas que retratam seu cotidiano e a ameaça à vida dos favelados; as escritoras e acadêmicas negras e indígenas que estão diariamente lutando contra um racismo epistemológico; grupos de resistência como Slam das minas e Queerlombo com suas poesia e performances pretas LGBTQIA+ que ocupam as ruas lutando contra a heteronormatividade e o racismo… todos esses espaços são afirmações e práticas

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que produzem suas próprias estruturas de resistência e que muitas vezes não estão inscritas na agenda universal feminista.

Me lembro de uma citação de Grada ao reviver o poema de Jacob Sam-La Rose: “Por que escrevo? Porque eu tenho de, porque minha voz, em todos seus dialetos, tem sido calada por muito tempo” (KILOMBA, 2019, p. 27). Assim, escrever se torna uma ação política decolonial e antirracista urgente, dando início à novas linguagens e metodologias da escrita, que não universal, mas singular, quase que como contos, ensaiando a si mesmo. A escrita pode se tornar uma forma de transformação, pois aqui eu não sou a “outra” mas sou “eu”. Não sou mais o objeto, mas o sujeito que conta a sua história. Reclamando uma história colonial, propondo um diálogo com os sujeitos subalternizados, fronteiriços, propondo uma escrita do sul para o sul.

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