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Corpos performáticos: o cotidiano nos filmes de bolso

1.5 Corpo cotidiano e corpo cerimonial: o nascimento da performance

1.5.1 Corpos performáticos: o cotidiano nos filmes de bolso

As reflexões teóricas sobre o documentário contemporâneo reatualizaram o conceito de performance, passou-se a falar em “documentário performático”. No livro Introdução do documentário, Bill Nichols descreve seis possíveis modos de representação documentária: o poético, o expositivo, o participativo, o observativo, o reflexivo e o performático. Os modos de representação seriam como subgêneros – mas Nichols enfatiza que não se trata de categorias estanques ou camisas de força. Em relação aos modos precedentes, o documentário performático marca uma virada que enfatiza a referencialidade como característica dominante. Para o autor, apesar de claramente fabricado, o documentário performático não é necessariamente metalinguístico ou reflexivo. Até porque esses documentários “[...] se baseiam muito menos pesadamente na argumentação do que na sugestão; eles não explicam ou sumarizam tanto quanto sugerem ou intimam” (1994, p.

12 Tradução livre. O depoimento encontra-se no link: http://www.festivalpocketfilms.fr/rencontres/paroles- de-realisateurs/article/note-d-intention-du-cahier-froid.

13 Depoimento em: http://www.festivalpocketfilms.fr/rencontres/paroles-de-realisateurs/article/la-spontaneite. Tradução livre.

100). Para Bill Nichols, o documentário performático aproxima-se do domínio do cinema experimental, ou de vanguarda. A diferença é que suas preocupações com a representação expressiva remeteriam ao mundo histórico – e não apenas ao questionamento do dispositivo.

Nichols acredita que esses documentários suscitam questões sobre o que é o conhecimento; tentando demonstrar como o conhecimento concreto e material, baseado nas especificidades das experiências pessoais, propicia o acesso a uma compreensão de processos sociais. Assim, “o documentário performático sublinha a complexidade de nosso conhecimento do mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas” (2005, p. 169). Em geral, têm um tom autobiográfico. Dessa forma, esse subgênero interpela o espectador de maneira expressiva e emocional, sem muita preocupação com a objetividade clássica. Para isso, tenta representar uma subjetividade social unindo o individual ao coletivo: “O documentário performático restaura um sensação de magnitude no que é local, específico e concreto. Ele estimula o pessoal, de forma que faz dele nosso porto de entrada para o político” (p. 176).

“Pequenas notas cotidianas”: é nesses termos que a realizadora Ysé Tran, participante do festival Pocket Films, descreve sua experiência de filmar com um telefone celular.14 Segundo a diretora, a experiência tornou-a mais sensível ao cotidiano: a pobreza de definição de imagem e som levou a resultados que considera modestos e que ainda assim despertaram o desejo de contar uma história com prazer. Ainda nessa linha, Caroline Delieutraz fala em “aparelho de bricolagem” que torna possível “sondar detalhes do cotidiano”. Ela continua:

Ele (o celular) coloca em pauta os microacontecimentos escondidos atrás dos grandes, as pequenas histórias individuais que não são menos importantes. Ele permite também uma mudança de escala e ponto de vista propondo um olhar que é aquele da proximidade, e mesmo do interior.15

14 Tradução livre. O depoimento está disponível em: http://www.festivalpocketfilms.fr/rencontres/paroles-de- realisateurs/article/la-sensibilite-au-quotidien.

15 Depoimento disponível em: http://www.festivalpocketfilms.fr/rencontres/paroles-de-realisateurs/article/les- details-du-quotidien. Tradução livre.

Temos aí a questão do micro, do pessoal, do local, que Nichols sublinha como uma das características do documentário performático. Próximo também do que descreve a realizadora Takako Yabuki, ao destacar como a relação corpo e imagem é quebrada pela imediaticidade do aparelho celular. Se no princípio ela se viu diante de “imagens frias e documentárias”, em seguida, ela percebe a potencialidade do aparelho para o espaço do íntimo e pessoal:

Pouco a pouco, eu fui em direção de mais intimidade e realidade; a distância é menor do que com uma câmera clássica. Eu quis satisfazer a sensação e o sentimento de um momento e eu penso que o telefone me permitiu me aproximar disso. Eu pude fazer as imagens sem muito incômodo e minhas pequenas filmagens tomaram o ar de um jogo.16

Jogo: esta seria uma das palavras chaves para entender o projeto E1000,17 um curta-metragem interativo e imersivo exibido pelo festival Pocket Films em 2008. No filme, que tem duração variável de 4 a 10 minutos, o público decide os rumos da história através da participação por telefone e mensagens escritas pelo celular para números que aparecem na tela. A experiência torna-se imersiva, pois essas interferências telefônicas são diegéticas, fazem parte da narrativa com naturalidade, sem ruptura no fluxo da história. Para os realizadores, o diferencial do dispositivo com celular é o fato de ele ser simples e leve – ao contrário de outros aparelhos de interatividade, que necessitavam de um suporte de equipamentos muito mais complexos. O fato de o filme ser feito a partir de um objeto que já é cotidiano para grande parte do público torna a interação mais espontânea e natural: cada celular torna-se um controle remoto – pequena ironia, já que em sessões regulares de cinema os celulares devem permanecer desligados.

Ao todo, E1000 foi exibido dez vezes durante a edição de 2008. No total, foram 723 espectadores, com 511 chamadas telefônicas e 191 mensagens enviadas durante as sessões – o que dá uma média de quase uma interferência por espectador, parecendo-nos

16 Depoimento disponível em: http://www.festivalpocketfilms.fr/rencontres/paroles-de-realisateurs/article/l- immediatete. Tradução livre.

17 Dirigido por Djeff Regottaz, Loïc Horellou e Pauline Goasmat. Mais informações na página: http://www.festivalpocketfilms.fr/rencontres/paroles-de-realisateurs/article/edition-2008.

As informações utilizadas sobre o projeto e as sessões foram retiradas do site do projeto: www.E1000.fr, onde também é possível assistir a diferentes versões do filme.

uma participação bastante significativa de público. As histórias escolhidas pelos espectadores de cada sessão formaram estruturas de gênero narrativo bem variadas, da comédia romântica ao filme de aventura, passando pelo filme de arte – diversidade que era um dos objetivos principais dos realizadores do projeto.