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2 CORREIO DA MANHÃ, UMA “ESCOLA DE JORNALISMO”

2.2 Correio Feminino, “conselho em domicílio”

Uma vitrine de novidades por onde foram divulgados determinados modos de vida, aparentemente uniformizando os gostos e disseminando, dia após dia, rituais de culto ao corpo. Por décadas seguidas, as chamadas páginas femininas do Correio da Manhã, por meio das autoridades morais de Eva, Maria Cláudia, Ylcléa, Germana, Rosinha, Salete, Helen e muitas outras conselheiras, difundiram ensinamentos e saberes que extrapolaram os limites do Rio de Janeiro, cidade onde o jornal era produzido. A imprensa, demonstra Prost (1992, p. 142), “sendo uma janela aberta para o mundo, é ao mesmo tempo a expressão de um espaço de convívio ampliado”.

Criavam-se, assim, por meio do impresso, redes de sociabilidade formadas pelo entrecruzamento de correspondências e da troca de opiniões entre autoras/leitoras.

Essa (a imprensa) pode ser considerada um palpável agente histórico, com sua materialidade no papel impresso e efetiva força simbólica das palavras que fazia circular, bem como dos agentes que a produziam e dos leitores/ouvintes que de alguma forma eram receptores e também retransmissores de seus conteúdos. (MOREL, 2015, p. 41, grifo nosso).

“A popularidade dos periódicos nas duas primeiras décadas do século modificou a relação do público com os jornais diários”, nos informa Barbosa (2007, p. 138). Na história da imprensa, os periódicos inauguraram uma fase no desenvolvimento das comunicações:

Em todos os países, independentemente do tipo de lei, a imprensa havia se estabelecido por volta de 1900 como uma força social que deveria ser avaliada em uma democracia futura, tanto quanto havia sido em um passado autoritário. A impressão gráfica permaneceu um meio de comunicação básico, mesmo depois do aparecimento da mídia eletrônica, com o florescimento de jornais, livros e enciclopédias. (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 196-197).

E para seduzir o público feminino, desde o início do século XX, o impresso da família Bittencourt difundiu notas e anúncios publicitários referentes às mulheres, enfrentando, desse modo, a concorrência de veículos especializados como a Revista Feminina, criada em São Paulo em 1914 e distribuída por todo o Brasil (BUITONI, 2009, p. 56). A publicação mensal, que permaneceu no mercado por 21 anos, chegou a alcançar a tiragem de 30 mil exemplares, a mesma obtida pelo Correio já na época de seu nascimento (BARBOSA, 2007; RIBEIRO, 2007).

Concorrência mais significativa com a imprensa feminina observou-se nos anos 1950. O intenso crescimento econômico verificado no país aqueceu sobremaneira o mercado editorial, proporcionando segmentações de público. Buitoni (2009) destaca o lançamento da Capricho, da Editora Abril. De periodicidade mensal, foram mais de 100 mil exemplares vendidos em seu primeiro ano. “No final da década, a venda chegava a 500 mil exemplares, cifra que não é igualada hoje pela mesma revista, em virtude da diversificação do mercado” (BUITONI, 2009, p, 98). Comparando-se com a publicação, em seus melhores momentos, o Correio atingiu 200 mil exemplares (BRASIL, 2014). Mas é preciso sublinhar a frequência com que as páginas femininas do jornal chegavam às mãos das leitoras. Em 1963, por exemplo, encontramos no 2º Caderno a coluna Correio Feminino assinada por Maria Cláudia, publicada às terças, às quintas-feiras e aos sábados, além do Caderno Feminino, divulgado aos domingos no 5º Caderno, com um total de seis páginas. Dessa forma, as mulheres tinham a sua disposição, durante quatro dias da semana, informações e dicas sobre moda, culinária, beleza, etiqueta, lazer e coluna social – e não precisavam esperar 30 dias para saber, por exemplo, quais eram as 12 mulheres mais elegantes do mundo em 1962 (1963, p. 4).

Para Marques de Melo (1985, p. 10), a permanência da relação social entre artífices e leitores, que depende do equilíbrio entre os impasses da instituição jornalística e as

expectativas da coletividade, pressupõe velocidade, credibilidade e abrangência. Entendendo- se periodicidade como conceito de tempo e não como mecanismo de repetição, consideramos ter sido esta uma das principais vantagens do Correio da Manhã em relação aos outros veículos voltados ao público feminino. “[...] a atualidade depende da velocidade com que o canal atua – difusão – e também da capacidade da instituição jornalística em captar e reproduzir os fatos – periodicidade – que não se faz sem uma sintonia com os desejos e as reações da coletividade – universalidade” (MELO, 1985, p. 11, grifos do autor).

Ao tornar-se parceiro constante das mulheres urbanas brasileiras, de uma determinada camada social, o Correio da Manhã foi, por longos anos, o arauto de novidades concernentes à construção de um corpo magro, jovem e firme. E novidade, segundo Wolf (2005), é um importante critério ao que, em teoria da comunicação, convencionou-se chamar de valores/notícia (new values) – “componentes de noticiabilidade que representam a resposta à seguinte pergunta: quais acontecimentos são considerados suficientemente interessantes, significativos, relevantes, para serem transformados em notícias?” (WOLF, 2005, p. 202).

Nas páginas do jornal estavam todas (ou quase) as novidades alusivas ao corpo sonhado, idealizado, que deveria ser manipulado, transformado. O novo deveria estar alinhado à credibilidade do periódico. A imprensa escrita foi, por décadas, o veículo de comunicação por excelência do Brasil, assegura Eleutério (2015, p. 84). “Mesmo com o desenvolvimento do rádio e com o aparecimento da televisão, a imprensa continuou a ser – até, pelo menos, o final dos anos 60 – o veículo preferido dos anunciantes” (RIBEIRO, 2007, p. 48).33

Em nenhuma das eras, mesmo naquelas que receberam a alcunha de “ouro” - pelo menos em retrospecto – nenhum meio eliminou o outro. O velho e o novo coexistiram. A imprensa permaneceu uma força poderosa na década de 1960 e, em alguns aspectos, cresceu de importância depois daquela data. A televisão, às vezes chamada de “quinto poder”, não suplantou o rádio, rejeitado, na infância da televisão [...]. (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 263, grifos dos autores).

Como atrair (e manter) a atenção do público-alvo e, consequentemente, dos anunciantes? O segredo, atesta Prost (1992), é utilizar o tom amigo, mas firme, e criar um

33 É importante ressaltar que, apesar da força da Internet alcançada graças ao desenvolvimento tecnológico digital que possibilitou a integração de textos, números, imagens e sons, a televisão não desapareceu no começo do século XXI. “Na verdade, ela continuou a ser um veículo popular poderoso, do mesmo modo que a imprensa escrita, num ambiente multimídia”. (BRIGGS; BURKE, 2006, p. 311).

aspecto mais pessoal às prescrições. “Ao confessionário anônimo responde o conselho em domicílio” (PROST, 1992, p. 147). Essa proximidade entre colunistas e leitoras, assegura Luca (2012), marcada por emoção e afetividade, facilitaria, portanto, a finalidade do enunciado: convencer e mesmo impor com preceitos e normas sobre o que fazer e o que usar. “Não por acaso, o tempo verbal mais frequente é o imperativo, configurando um discurso bastante próximo do publicitário” (LUCA, 2012, p. 448).

Por meio dessas colunas e seções dos suplementos femininos do Correio, consideradas por Marques de Melo (1985, p. 105) como mosaicos, as conselheiras “exerceram um trabalho sutil de orientação da opinião pública”. Para o pesquisador em comunicação, são “colchas de retalhos, com unidades informativas e opinativas que se articulam”. São pílulas, flashes, dicas [...] que emitem juízos de valor, com sutileza ou de modo ostensivo (MELO, 1985, p. 106).

Impresso e corpos femininos. Um dita códigos e prescrições. Os outros são educados “por toda realidade que os circundam, por todas as coisas com as quais convivem, pelas relações que se estabelecem em espaços definidos e delimitados por atos de conhecimento” (SOARES, 2006, p. 110). Falamos, portanto, de um dos processos educativos mais relevantes do século XX: o das mulheres, dos seus corpos, sentimentos, gostos e modos de ser. Pelas páginas das seções, colunas e suplementos femininos, as leitoras encontravam, numa linguagem clara e didática, dicas e orientações de como deveriam se comportar e se moldar. Tratava-se de um arsenal de princípios e normas apresentados por amigas e conselheiras. Os decálogos divulgados pela imprensa feminina expressam-se, dessa forma, como ecos que reverberam os manuais de civilidade que surgiram no século XVI para compor a soma dos conhecimentos práticos necessários para se viver (e ser aceito) em sociedade.