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3 COSMOGONIAS EM CRUZO: A CONSCIÊNCIA CIMARRONA DAS

3.1 A COSMOGONIA BAKONGO

As encruzilhadas aqui, tal como sua acepção consensual de significado, relacionam-se a um campo de possibilidades que, se vinculado à sua natureza ancestral e simbólica, é capaz de assumir relevâncias que poderiam ser pertinentes para a melhor compreensão das cosmogonias negro-africanas, pois os encruzos das encruzilhadas também são afirmados como espaços que possibilitaram transcendências que operaram diálogos e ressignificações críticas dos espaços culturais estruturados pela Modernidade (re)situando a África em perspectiva importante relevada.

Figura 1 - Gráfico da cosmogonia bakongo

Fonte: Spirito Santo (2011).

Acima, ilustrada, observa-se a representação do cosmograma milenar da cultura Bantu Bakongo. Os Bantus sistematizaram o modo de compreender e interpretar o mundo e a vida segundo as constatações de suas experiências. Isso também significa dizer que a sabedoria cosmogônica Bantu Bakongo acompanhou os povos na trajetória de suas diásporas e permanece latente nos diversos projetos

estéticos, políticos e culturais que se sucederam nas jornadas transatlânticas. No entanto, é preciso identificar as especificidades desses valores para que não se cometa o equívoco de compreendê-los vinculados à luz de sensibilidades distantes não relacionadas à sua natureza originária, pois é muito comum que, no trato tradicional dos estudos e análises culturais e literárias, desconsiderem-se tais valores, tomando-se como base critérios vinculados ao pragmatismo de meros modelos estéticos pretensamente universalistas. Isso implicaria na violação e alteração de saberes legítimos como patrimônio cultural imanente. A principal razão de sua escolha para o desenvolvimento do presente estudo vincula-se a duas razões distintas e complementares: representa tanto a validade quanto a viabilidade da metáfora das encruzilhadas e cruzos como formas de operar orientação crítica para o melhor entendimento das culturas afro-hispânico-americanas analisadas, além de demonstrar a legitimidade e autonomia de cosmogonias distintas.

Para Spírito Santo (2011), o cosmograma da cultura Bantu Bakongo, Kalunga, curiosa e coincidentemente representada por uma cruz, possui razão e explicação genuínas. A linha horizontal expressa no gráfico representa o meio líquido que divide o mundo físico e espiritual; o mundo dos vivos e dos mortos; os africanos negros vivos estariam situados acima da linha divisória. A linha horizontal significa a realidade da vida cotidiana e sua expansão. Abaixo da mesma linha, estariam situados os brancos. Os brancos aqui mencionados não seriam a representação étnica dos ocidentais, mas, sim, uma representação da coloração dos corpos na condição de morte e, também, a multiplicidade de espíritos da natureza povoando a esfera do invisível sob a terra. O eixo horizontal representa o nascer e pôr do sol, assim como o nascimento e morte dos humanos – a cosmovisão Bantu Bakongo representa a vida como ciclos. O eixo vertical liga o ponto culminante do mesmo sol, a luz para o mundo dos vivos e mortos, e permite a conexão entre os dois níveis de existência, numa espécie de relação e entendimento simbiótico, uno, sucessivo, da vida e da morte de maneira intermitente. Na convergência entre o mundo dos vivos e dos mortos, situam-se, também, a compreensão e o desenvolvimento dos saberes de experiência vivencial que articulam conduta ética e auxílio para a solução dos problemas tanto filosóficos quanto terrenos, como doenças e outros infortúnios. Os diálogos entre as dimensões das existências dimensionais, horizontal e vertical seriam possíveis a partir de ritos mediados por um sábio iniciado nos quais se evocariam os espíritos antepassados para que orientassem os viventes nas suas dúvidas e questionamentos. Os vivos e

os mortos se distinguiriam, assim, apenas pela materialização do corpo. A cruz, para o pensamento Bantu, apresenta a representação da vida como apreensível ciclo contínuo do tempo, tal como opera para nós o movimento de rotação ou translação solar.

Uma representação radicalmente distinta apesar da semelhança do significado da cruz para os cristãos. Para o cristianismo, a representação simbólica da cruz vincula-se a uma experiência memorial de violências traumáticas. Para a cultura dos cristãos, a cruz sempre esteve vinculada a uma punição exemplar associada ao desalinho da obediência dentro do que é representado como ordenamento político. Apresentou-se como instrumento de punição, tortura, usado na época do Império Romano como objeto destinado aos indivíduos condenados à morte pelas autoridades romanas, assim como o fora Jesus Cristo. Ainda que tempos depois os romanos tenham banido a crucificação como pena por a considerarem excessivamente cruel, ela permaneceu como representação simbólica de conquista e ocupação de espaços políticos subjetivos e/ou materiais, a exemplo de sua imagem veiculada em investiduras expansionistas identificadas nas Cruzadas e Campanhas Coloniais. Por meio da cruz, ainda nos dias de hoje, exaltam-se vida e morte de Jesus Cristo como exemplo e modelo ético a ser seguido, como ideia de indulgência espiritual celebrada pela crucificação como ação punitiva. Passou a ser signo de reverência para os que creem no exemplo dos valores e sacrifícios do Cristo que não deveriam ser esquecidos. A cruz sustenta a ideia da fé que também significaria a convergência desses valores que, segundo os cristãos, deveriam ser absolutos e irrepreensíveis do ponto de vista da ambivalência política e espiritual mediada pela imolação do corpo – ainda que para os cristãos a ideia da existência autônoma do espírito como é para os africanos não seja admitida. Pelos fundamentos do maniqueísmo medieval, deveriam ser expurgados valores e representações que contrariassem a perspectiva da liturgia, valores e símbolos cristãos. Critérios, inclusive, presentes na ocupação dos espaços coloniais, americanos, africanos e asiáticos, que contribuíram para a subversão, quando não para a dissolução, de patrimônios cosmogônicos genuínos americanos, africanos e asiáticos. Incutiram, com isso, na realidade dos nativos nas colônias, a ideia de culpa por não existirem como cristãos, ocupando, assim, espaço subjetivo no imaginário de culturas milenárias sob os signos da violência e intolerância.