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Vimos, no capítulo anterior que, em finais do século XIX, o espaço da boémia lisboeta, até aí fechado sobre si mesmo, começa a galgar fronteiras sobre o mundo que o rodeia. Foi a partir dos anos 70 do século XIX, data charneira na história do liberalismo português, que a guitarra aventureira e pífia começou a invadir os salões principescos. Foi também a partir dessa data que começaram a surgir os primeiros fados políticos (na sua grande maioria socialistas) e

jocosos. Tudo isto numa época de forte agitação política, social e ideológica. Foi

a época das Conferências do Casino, do início da cooperação entre Antero e Fontana, da primeira associação de resistência de carácter socialista, da fundação da Fraternidade Operária e do seu jornal O Pensamento Social. As contradições que, com o desenvolvimento do capitalismo em Portugal, começavam a atravessar a sociedade portuguesa chegavam, pois, aos meios mais isolados e fechados como os da boémia de onde, como vimos, o fado ora tomava o partido das classes trabalhadoras, ora se acomodava aburguesadamente nos salões senhoriais.

É evidente que todo o processo de transformação social que a sociedade portuguesa sofre em finais do século XIX não poderia deixar de se repercutir na Lisboa boémia e nos seus meios da prostituição. É que de facto a prostituição não deixa de ser uma bainha alinhavada da vida social que a produz. Não foi do bordel para a família que a libertação sexual se fez, mas esta também não acabou com aquele. E se é certo que vender e/ou comprar sexo não é exactamente o mesmo que vender e/ou comprar legumes, não deixa de ser curioso notar como, a partir de finais do século XIX, tanto a prostituta como a proxeneta, o cliente ou o rufia, farão passar subrepticiamente o prazer, que na sociedade «convencional» não se menciona, à ordem das coisas que se contabilizam. É certo que os espaços da boémia e da prostituição continuam, mesmo nos inícios do século XX, a gozar de uma especificidade própria mas, o que importa realçar é que, nesses mesmos espaços da marginalidade, as

palavras, os gestos e o corpo começam a adquirir um forte valor de troca: «En fin de compte, ce qui fait la valeur d'une femme, c'est son corps...122»

Muito embora este capítulo esteja orientado para a descoberta de mudanças na prostituição da Lisboa boémia – e elas ocorreram, em finais do século XIX, com significados precisos – temos de reconhecer que muitas características da vida boémia permaneceram ao longo do período estudado, o que não surpreende se considerarmos que o espaço da boémia é, por natureza, relativamente fechado, socialmente cristalizado. Questão a privilegiar é detectar o grau de impermeabilidade desse espaço relativamente ao que o circunda. Verificar, ainda, se as mudanças nele ocorridas acompanharam as transformações gerais da sociedade e em que sentido. Por exemplo, averiguar se há algum efeito de arrastamento, ou seja, se as mudanças registadas no restrito espaço da boémia são, de alguma forma, efeito de mudanças de maior envergadura ocorridas na sociedade e vice-versa. Das pesquisas realizadas o que ressalta é que, com a decadência gradual do faditismo, tratada no capítulo anterior, outras figuras típicas da Lisboa boémia como as proxenetas, os chulos e as prostitutas alteram os seus padrões de comportamento, ganhando novos hábitos, desenvolvendo novas práticas, reestruturando novos códigos culturais. Veremos, ainda, como, por compreensíveis exigências de mercado, surge uma maior concorrência entre as prostitutas cuja consciência de profissionalização avança progressivamente, ao mesmo tempo que entre elas se dá uma mais rígida estratificação, a qual será estudada com base nas seguintes variáveis: zonas habitacionais e de giro, padrões de comportamento, tipos de clientela e preços. Por outro lado, o perfil social das prostitutas clarifica-se do ponto de vista sociológico, ao mesmo tempo que as relações de nítida exploração desenvolvidas entre proxenetas e prostitutas se tornam óbvias. À medida que o fado se aristocratiza, o chulo que durante o século XIX era, para além de fadista, uma personagem dupla – «marido complacente» e «guarda costas para ocasiões críticas» –, ganha, nos inícios do século XX, uma tosca mas frutuosa consciência empresarial, metendo por dia ao bolso, pelo menos, meio litro e um maço de brejeiros*. Por último, quanto às zonas de prostituição, os aventais de

122 Depoimento de uma prostituta in Claude Jaget, Une Vie de Putain, Les Presses d'Aujourd'hui, 1975, pp. 31-61.

madeira* passam a dar lugar aos bares enquanto que, com o aumento do tráfico

e das vias de comunicação, as nómadas* tornam-se as passageiras certas e pontuais dos camionistas.

1. Proxenetas

A proxeneta do século XIX é uma personagem socialmente distinta da dos inícios do século XX. Em primeiro lugar, é certo que as relações de exploração entre proxenetas e prostitutas já eram evidentes na primeira metade do século XIX. Santos Cruz afirmava em 1840: «As donas de casa exigem das mulheres que têm nas casas públicas um rigor no serviço como se fossem bestas de carga, o que elas pretendem é que trabalhem, segundo a frase própria123.» Contudo,

havia uma relação de grande familiaridade entre elas a ponto de, correntemente, as segundas tratarem as primeiras por tias124. Entre «coisas que uma puta deve fazer para se acreditar», aconselhava um poeta:

«Morar em casa de luxo; Ter a cama bem macia; Não qu'rer outra alcoviteira Que não seja a sua tia125

Havia ainda uma espécie de dominação maternal das «donas de casa» em relação às prostitutas: «Exigem grande submissão das mulheres que têm em suas casas e grande deferência e por elas querem ser tratadas com todo o respeito, nem permitem que as mulheres falem mais alto, nem ralhem ou façam motins.» Exigiam, ainda, «certas formalidades que se usam para com os superiores à mesa, ou em outra ocasião»126. Em segundo lugar, e esta

observação dirige-se às proxenetas de mais baixa condição social, a fisionomia dos seus trajes, durante as primeiras décadas do século XIX, era facilmente reconhecível: «De capote e lenço, com uma alcofa e o baralho de cartas na

123 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 334. 124 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 334. 125 Cancioneiro do Bairro Alto..., p. 139. 126 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 335.

mão127.» Quem dizia velha encapotada dizia mulher mexeriqueira, bisbilhoteira,

enredadeira, intrigante, via alcofa de «leva e traz» e «madre Celestina» de amores alheios128. Em terceiro e último lugar, a velha alcoviteira do século XIX

acumulava um maior número de funções: ela era, simultaneamente, a «mulher que [entregava] mulheres e [dava] casa d'alcouce»129.

Com efeito, e muito embora as donas de casa dos meados do século XIX se servissem das chamadas inculcadeiras ou engatadeiras, elas próprias desempenhavam normalmente a função de recrutamento e por isso se designavam também de alcoviteiras: «Algumas donas de casa são elas mesmo as que recrutam algumas mulheres para os seus estabelecimentos; elas tiram primeiro as suas informações e quando encontram alguma que seja uma vantajosa aquisição, elas põem em prática todas as astúcias para as seduzir com ofertas, o que muitas vezes conseguem; isto se verifica ordinariamente com as criadas de servir, com as vendedeiras de alguns géneros pela cidade, algumas

saloias dos arrabaldes, que costumam vir à cidade para certos fins e mesmo

algumas das províncias que para aqui vêm de novo130.» Em finais do século XIX,

Armando Gião garantia ainda que eram as alcoviteiras que aliciavam as «pequenas» quer através de anúncios nos jornais, «oferecendo quarto para senhora só», quer mediante «disfarces variados, mulher a dias, mendiga que esmola pelas portas, viúva com filhos menores, vendedora ambulante de flores, rendas, roupa, etc.»131. Muitas menores eram prostituídas no próprio domicílio

ou mandadas para as ruas mais frequentadas, especialmente à noite, onde «sob

127 A. de Sousa, Bairro Alto..., p. 209.

128 Júlio Dantas, Lisboa dos Nossos Avós, Publicações Culturais da Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1966, p. 68.

129 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 209. 130 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 239-240.

131 Armando Gião, Contribuição para o Estudo da Prostituição em Lisboa, Lisboa, 1891, pp. 36- 37.

o pretexto de vender fósforos, flores, cautelas», etc., iam de facto prostituir-se em qualquer «rua escura» ou «vão de escada»132.

A velha alcoviteira do século XIX acumulava um maior número de funções: recrutava prostitutas e dava casa de alcouce.

A proxeneta ou alcoviteira possuía, além disso, toda uma experiência do passado. Antes de ser alcoviteira, tinha sido prostituta:

«Enquanto não me fiz coiro Levei vida muito boa... Muito peludo e caloiro Depenei n'esta Lisboa!... Tive amigos fidalgotes, Que pregaram bons calotes Para à grande me tratar... Um morgadinho banana Deu-me sege e traquitana Para eu poder figurar!

Mas se com pouco trabalho Bom dinheiro ganhei, Quando me vi um cangalho Do meu sem nada me achei!... [...]

Vendo-me d'esta maneira,

Sem servir já p'ra ninguém, Fiz-me boa alcoviteira

P'ra ganhar o meu vintém...133»

As «Donas de Casa» ou «Patroas», como também eram chamadas, embora tendo direito a título de dama ou governanta, no que toca a lucros não andavam muito bem. Afirmava Santos Cruz, em 1841: «Em Lisboa não se encontram grandes fortunas adquiridas pela gestão das casas públicas o que atribuímos não só aos mui inferiores lucros que elas aqui recebem, mas também aos desarranjos no governo económico das mesmas casas134.» Já para finais do

século XIX a situação altera-se. Mesmo em algumas das mais rascas casas de toleradas, cada meretriz pagava mensalmente da metade que por contrato lhe pertencia, 1000 réis para gás, 4000 réis para criadas e 4000 réis para cabeleireiro, entre outras mais despesas135. Ora, tendo em conta que os preços

que estas prostitutas levavam por cada «encontro» variavam entre os 240 e os 1000 réis (Quadro n.º 2, p. 126), verificamos que, só para fazer face a estes gastos extra mais elementares (gás, criadas e cabeleireiro), em termos médios cada prostituta era obrigada a cerca de 15 encontros ao mês! Todavia, aquelas que praticavam preços de saldo (240 réis), para fazerem face a esses mesmos gastos tinham de «ir à cama» 38 vezes ao mês!

Com o virar do século surgem as engatadeiras a tempo inteiro, passando a actuar como verdadeiros agentes de tráfico conhecedores dos mais ardilosos segredos de marketing. Nas chegadas dos comboios à capital ou na província, para melhor poderem actuar, chegam a apresentar-se trajadas de irmãs de caridade ou com uniformes de enfermeira136. Às pequenas que andam na venda

de peixe e da fruta fazem propostas com mobilizadores atractivos pecuniários137.

Na Travessa da Palha, o próprio amante da dona de casa «vai à província buscar as incautas que as suas agentes lhe apresentam e desejam vir para a cidade como criadas de servir. O marau apresenta-se como dono de escritório ou

133 Cancioneiro do Bairro Alto..., pp. 104-105. 134 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 342.

135 A. Gião, Contribuição..., p. 29.

136 Boletim Oficial do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, n.º 6, Ano I, Maio de 1916, p. 66.

agência deste género, pelo que [...] até chega a apanhar comissão»138. Muitas

das vezes é a própria mãe que, levada pela necessidade ou fito de um bom lucro, «negoceia a filha»139:

«Vêde aquele portal:

Uma velha megera, um demónio asqueroso, Está fazendo a venda a um burguês ditoso Com o qual regateia o preço estipulado Da honra da criança, a que tem a seu lado, E que por esta forma arrasta ao precipício Da perdição fatal, da ignomínia, do vício, D'onde jamais saiu quem lá um dia entrou!

E foi a própria mãe que a venda efectuou!... A troco duns mil réis essa mulher pandilha Não hesitou vender a honra d’uma filha!140»

A qualidade do produto também não é descurada: «São quase sempre acolhidas as que têm seios redondos, nádegas amplas, boas cores, alvos dentes e tutti quanti é essencial para agradar ao mais exigente141.» Nos inícios do século

XX, havia um tal Maneta da Covilhã que vivia exclusivamente deste negócio e tinha até «uma tabela de preços que regulava de vinte a sessenta mil réis, conforme a mercadoria»142. Quanto aos circuitos de divulgação do produto,

passam a ser dos mais sofisticados: nas ruas da Baixa, enviam-se «bilhetes de convite» oferecendo a «prática de bons serviços», como quem divulga um memorando ou reclamo de um estabelecimento que vulgarmente anuncia um género143. A verdade sobre a vida íntima da capital aparece reflectida nas

páginas de anúncios do Diário de Notícias: «Aqui, é uma mulher, não idosa, que pede um empréstimo para o aluguer da casa; ali uma outra, não idosa, também, que pede a um homem de respeito a protecção de seis mil réis por mês. Uma senhora aflita diz que o ama sempre, que tem chorado muito, mas que não venha

138 A Vanguarda, 23 de Outubro de 1908.

139 Ângelo da Fonseca, Da Prostituição em Portugal, Porto, 1902, p. 69. 140 Delfim Guimarães, Lisboa Negra, Lisboa, 1893, p. 9.

141 Manuel Pedro de Abreu, ... Da Tragédia Social, Lisboa, 1919. 142 F. Schwalbach, O Vício..., p. 80.

à mesma hora porque ele [o marido] a surpreendeu144». O circuito das ofertas

alarga-se: «é a criatura viúva que se oferece para mulher a dias; é a senhora nova que necessita quarenta mil réis emprestados para pagar em prestações, dando como juro quarto e comida; é a do quarto para homem só; é a do cavalheiro que se oferece para uma escritazinha comercial145.» A profusão deste

tipo de anúncios para especialistas na leitura de «entrelinhas» é matéria de fadunchos «para rir»:

«Na calçadinha do Val A pronto ou a prestações Vendem-se vários colchões Para cama de casal... Policlínica Central

Tem injecções p'ro trazeiro; Na rua Marquês Barreiro Aluga, dama decente Um salão independente A idoso cavalheiro...146»

2. Chulos

Outra das figuras da boémia que se transmuta é o chulo. Em meados do século XIX, o chulo era uma personagem dupla: um «marido complacente» e guarda costas para «ocasiões críticas». Só quando ia para o verde limo* é que elas – as protegidas – lhe abonavam algum dinheiro e tabaco. Regra geral, eram marujos e cocheiros, uns e outros mestres na arte de cantar o fado. Com o evoluir dos tempos, gatunos e faquistas passam a ser os seus «mais que tudo». Com efeito, para as odaliscas dos bordéis dos inícios do século XX, pouco lhes importava que o amante cantasse o fado. O preferido e muitas vezes disputado à «ponta da chinela» era aquele que maiores melenas tinha, que maior número

144 Pedro Osório, Lisboa, 1919, pp. 15-16. 145 A. F. de Sampaio, Lisboa Trágica..., p. 32.

de prisões contava e que melhor sabia dar picada* ou marear* um gajo* desta para melhor, como elas se exprimiam na sua gíria característica147.

De companheiros para as ocasiões críticas os chulos passam a intencionados exploradores das prostitutas. Em meados do século XIX chegavam a contribuir com uma quota para elas das quais nada recebiam senão os conhecidos

favores*. Acompanhavam-nas de dia nos passeios e à noite nas vadiagens pela

cidade. Assumiam-se, essencialmente, como protectores. Referia Santos Cruz: «Tem-se visto repetidas vezes duas mulheres saírem do Bairro d'Alfama para a rua da Alfândega e Terreiro do Paço [...] levando cada uma delas o seu

protector*, que de alguma distância as seguiam e guardavam e sendo uma delas

certa noite muito insultada por um homem dos que as costumam procurar, custou-lhe uma facada tal insulto, evadindo-se tanto ela como o seu protector às diligências da polícia148.» Quando os «rendimentos» da companheira eram

escassos, o bailão* não hesitava e deitava mão ao que lhe era possível:

«Se a amante não tem dinheiro E deve à contrabandista, Então o herói, o fadista,

147 F. Schwalbach, O Vício..., p. 43. 148 S. Cruz, Da Prostituição..., pp. 113-114.

Trabalha... de ratoneiro149

O chulo que durante o século XIX era, para além de fadista, uma personagem dupla – “marido complacente” e “guarda-costas para ocasiões críticas” – ganha, nos inícios do século XX, um novo porte.

Com o virar do século, quase todos estes rufiões passam a viver «à custa destas desgraçadas, chegando a espancá-las quando não lhes dão dinheiro»150.

Aliás, a 15 de Dezembro de 1894 surge um decreto que procurava combater esta forma subterrânea de ganhar a vida que era praticada pelo chulo: «Aquele que, sendo apto para ganhar a sua vida pelo trabalho, for convencido de viver a expensas de mulheres prostituídas será considerado e punido como vadio, nos termos do art. 256 do Código Penal151.» Em 1912, F. Schwalbach sintetizava da

seguinte maneira a relação entre o chulo e a prostituta: «O chulo anda sempre a rondar-lhe a porta e não raro é ver-se [...] passar-lhe para a mão uns cobres que lhe são agradecidos com uma palmada na cara que as deixa radiantes para o resto da noite152

149 F. Câncio, Lisboa no Tempo do Passeio Público..., p. 62.

150 Augusto Bogalho Gomes, História Completa da Prostituição, Lisboa, 1913, pp. 88-90. 151 J. de S. O. Sousa, Escravatura Branca..., p. 62.

3. Prostitutas

3.1. Origem e condição social das prostitutas

Um aspecto que permanece relativamente constante ao longo do século XIX diz respeito à origem social das prostitutas. Uma simples observação do quadro n.º 1 permite-nos concluir que, pelo menos até finais do século XIX, as criadas e costureiras são um verdadeiro «exército de reserva» de prostitutas.

Antes, contudo, em meados do século XIX, Santos Cruz referia: «O que mais frequentemente se encontra é que estas mulheres, tanto as naturais de Lisboa como as provincianas, sejam filhas da mais baixa classe da sociedade, como jornaleiros, obreiros nos diferentes ofícios e artes mecânicas, etc., são daquelas gentes pouco favorecidas da fortuna e por isso ordinariamente nem cuidam da educação conveniente de suas filhas nem as vigiam, nem lhes suprem as suas precisões quando chegam a certa idade: deste número sai a maior parte das mulheres públicas153.» Para Armando Gião, na primeira linha, lá estavam

também as costureiras, as criadas de servir, as peixeiras, as operárias de fábrica e as vendedeiras de fruta154. Esta situação não se alterou com o virar do século.

Em 1908,de uma amostra de prostitutas observadas por Tovar de Lemos155,

cerca de 80% tinham sido criadas de servir, domésticas ou costureiras.

Em 1926, Azevedo Neves156 adiantava os seguintes resultados: das 924

prostitutas registadas em Lisboa, 479, ou seja, mais de 50%, tinham sido costureiras e modistas, «domésticas» ou serviçais. Em 1933, Tovar de Lemos157

153 S. Cruz, Da Prostituição..., p. 139.

154 A. Gião, Contribuição para o Estudo..., pp. 36-37.

155 Alfredo Tovar de Lemos, Estudo Antropológico da Prostituta Portuguesa, Lisboa, 1908, p. 28. 156 Azevedo Neves, As Matriculadas Existentes em Portugal em 31 de Dezembro de 1926, Imprensa Nacional, Lisboa, 1928.

157 Antônio Tovar de Lemos, O Serviço de Inspecção de Toleradas em 1933, Lisboa, 1934, pp. 18-20.

observava que, de nova amostra de prostitutas estudadas, mais de 70% tinham sido criadas de servir (54,6%) ou domésticas (15,6%).

As explicações adiantadas sobre estes dados e, de uma forma geral, sobre a prostituição, nunca foram muito convincentes. Havia a tendência para explicar um fenómeno que é social por causas não sociais: morais, legislativas, psicológicas, místicas, biológicas, etc. O Boletim de Saúde e Higiene da Câmara

de Lisboa, entre várias causas, apontava o «vício» ligado essencialmente a

«condições orgânicas individuais e especiais de ordem fisiológica»158. As

prostitutas começam então a ser alvo das atenções médicas. Não tanto porque, «coitadinhas», constituíssem uma raça abatida e desprezada susceptível de atrair preocupações benevolentes e caritativas dos olhares médicos mas, fundamentalmente, porque a propagação das doenças venéreas começava a representar um importante custo social. Custo social que se reflectia na perda de efectivos demográficos em idades produtivas, do ponto de vista económico,

e reprodutivas, do ponto de vista biológico. É com o desenvolvimento do industrialismo em Portugal que surge a necessidade, tão apregoada pelos poderes públicos, de um «controlo higiénico» das prostitutas, necessidade que viria a ser objecto de legislação específica. A preocupação por salvaguardar uma força de trabalho saudável do ponto de vista físico e moral originou uma prática médica tão loquaz como sensível às repugnâncias, tão interessada em ir ao socorro da lei e da opinião pública como servil em relação às esferas do poder. Involuntariamente ingénua, em alguns casos; voluntariamente mentirosa, na maior parte deles; cúmplice, nos restantes, esta medicina altamente «acariciadora» e «altaneira» instalou toda uma indecência do mórbido, ao

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