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CAPÍTULO II EDUCAÇÃO E SABERES ANCESTRAIS NO COTIDIANO DO

2.3 O cotidiano do Ilê Axé Omilodé como categoria de análise/investigação

“O cotidiano é o incógnito do mistério”. (Mario Quintana).

Nessa perspectiva, o cotidiano surge como um estrato substancial à nossa pesquisa, visto que o seu estudo nos oferece uma análise do contexto sociocultural, em que são construídas as práticas educativas, as representações e interações dos sujeitos e a realidade dos processos de ensino/aprendizagem.

Foi muito difícil eu chegar no candomblé e me adaptar com algumas regras, normas e hierarquias que existem no seu cotidiano, porque, antigamente, eu fui orientada na Umbanda, que o espírito vinha em terra para nos ensinar. E dentro do candomblé é no cotidiano que você vai descobrindo outro mundo no sentido do aprendizado. (MÃE CHAGUINHA).

Neste depoimento compreendemos que a entrevistada correlaciona o ensino/aprendizado com sua vivência na Umbanda e no Candomblé, realizando uma comparação sociocultural nos moldes destes cultos, evidenciando que no candomblé os saberes se constituem eminentemente a partir da chave da vivência cotidiana. O cotidiano do terreiro se descortina a um novo mundo no sentido de aprendizado, o qual se transforma em uma via de compreensão e apropriação dos saberes ancestrais. Um ensino/aprendizado que acontece na relação do sujeito com sua comunidade durante sua trajetória

O cotidiano é objeto de estudo no século XX, seja em qual abordagem for: escola, trabalho, família, rua e outros. Mais especificamente, foi a partir de 1950 que o cotidiano se evidenciou como temática de investigação nos meios científicos, sobretudo porque, os estudiosos passaram a concebê-lo como uma porção de vida que se repete e que define sempre o idêntico, o repetitivo, o constante, permitindo medir e descrever uma ação.

Refletir sobre o cotidiano é se debruçar sobre pequenas partes de um grande caleidoscópio, “[...] é no cotidiano do terreiro que todo aprendizado acontece, no cotidiano da casa” (EKEDE GORETI). Sandra Pesavento, ao se referir a essa perspectiva presente nos estudos sobre o cotidiano, afirma que trabalhar com uma escala reduzida proporciona uma análise das fontes com maior detalhamento, gerando, consequentemente, múltiplas respostas para determinadas questões, ampliando as possibilidades de investigação histórica (PESAVENTO, 2014).

Aprofundar as considerações acerca dos estudos sobre o cotidiano se mostra de grande valia em nosso trabalho, pois, não raras vezes, são nesses momentos cotidianos que encontramos a chave para uma explicação histórica produzida pelos sujeitos nas representações sociais. Sobre estas considerações, as análises na obra de Michel de Certeau: “A invenção do cotidiano”, nos são de grande préstimo.

Esse autor, em seus estudos, define o conceito de cotidiano como um conjunto de operações singulares que, às vezes, dizem mais de uma sociedade e de um indivíduo do que a sua própria identidade. Portanto, parte do pressuposto de que é a relação social que determina o indivíduo e não o inverso, “[...] a relação (sempre social) determina os seus termos e não o inverso” (CERTEAU, 1988, p. 38). Por isso, só se pode apreendê-lo a partir de suas práticas sociais. Em uma análise sensível, Certeau percebe a individualidade como o local onde se organizam, às vezes de modo incoerente e contraditório, a pluralidade da vivência social, “[...] cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e, muitas vezes, contraditória) de suas determinações relacionais” (CERTEAU, 1988, p. 38).

Para Certeau, os sujeitos têm em suas práticas cotidianas atividades silenciosas que, no entanto, observa-se serem de um alto grau de expressão nos espaços nos quais estão inseridas. Isto é visto também nos ambientes dos terreiros de candomblé: “Algumas coisas são perceptíveis no cotidiano do terreiro, tipos de preparo da alimentação feita no silêncio, que podem ser diferentes em outros terreiros” (IYÁ EGBÉ ALYNE). A partir dessas práticas silenciosas compreendemos que pensar o cotidiano requer descobrir o incomum naquilo que é diariamente repetido.

Os indivíduos nesses espaços não são argumentadores passivos diante de ordens preestabelecidas pelo poder ali existente, ao contrário, são sujeitos que criam e inventam a sua própria história, por meio de ações que são construídas e desenvolvidas em seu cotidiano social. No entanto, para Certeau, essas ações são sutis e silenciosas, uma vez que são desempenhadas no interior das estruturas formais estabelecidas.

Desta maneira, pode-se perceber que a vida cotidiana, na visão e nas palavras do autor, se compõe de micropráticas e microrresistências desempenhadas por indivíduos ou, até mesmo, pela coletividade, a fim de modificar as normas previamente estabelecidas, sendo, frequentemente, para coibir e manipular as suas ações.

Ao identificar o cotidiano como sendo o ambiente favorável à criatividade e à resistência para a construção de histórias de sujeitos, Certeau (1988) afirma que no estudo do cotidiano, “[...] é natural que se perceba micro diferenças onde tantos outros só veem obediência e uniformização” (CERTEAU, 1988, p. 19), ou seja, a normatização desses espaços pode ser quebrada pelos indivíduos ou pela coletividade, a partir das micropráticas que atuam e transmutam o cotidiano em que eles participam. As microrressistências são possibilitadas pelo desenvolvimento de estratégias e táticas, em sua maioria, silenciosas, segundo o autor, para que os indivíduos possam fugir do poder exercido sobre eles.

Essas microrresistências resultam de conjugações variáveis, como: poder, ideologia, autoridade, desigualdade social e alienação, apresentando-se apenas para aquelas pessoas que estiverem dispostas a vê-las. Compreender o cotidiano no Ilê Axé Omilodé é estar disposto a mergulhar numa realidade na qual as complexidades da vida social, tanto as formas concretas de reprodução e circulação dos saberes existentes, quanto as estratégias e táticas desenvolvidas pelos seus adeptos para driblarem o poder instituído, constroem e transmitem uma cultura afro-brasileira.

Portanto, é no cotidiano de um terreiro, nas práticas educativas e no poder ali instituído pelo seu líder que a transmissão dos saberes históricos da cultura afro-brasileira se realiza. Saberes que ultrapassam o indivíduo, embora sejam por esses interiorizados e correspondam à condensação de visão de mundo de uma coletividade. Esses saberes permitem, em sua circularidade e representatividade, que os indivíduos, ao se apropriarem desta cultura, produzam e reproduzam sua existência concomitante, de modo a compartilharem a linguagem (que estrutura e propaga o pensamento), os valores (tradição), as significações (símbolos), as crenças coletivas (mitos) e as práticas (alimentação, danças e vestimentas).

Em seu relato, quando faz menção de ser orientada por espíritos, Mãe Chaguinha se refere à sua passagem pela Umbanda, onde os caboclos, guias espirituais, trazem grande sabedoria, pois cultuam o equilíbrio através das forças da natureza. O culto aos caboclos é mantido até os dias de hoje com o referencial de candomblé de caboclo no Ilê Axé Omilodé.