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A cozinha: espaço dos cheiros e sabores

da segunda metade do século

2.4 As casas campineiras a partir da cultura material

2.4.4. A cozinha: espaço dos cheiros e sabores

Após passarmos pelos vários cômodos que compõem as residências dos vários estratos sociais chegamos ao ambiente mais “saboroso” da casa, a cozinha. Localizada do lado oposto à sala de visitas, ligada, habitualmente a sala de jantar, havia de passar antes pela despensa e pelo quarto dos doces e queijos.215 Era o único ambiente da casa com utensílios semelhantes tanto para os ricos quanto para os pobres, nesse período. Diferenciava-se apenas no tamanho, obviamente proporcional ao tamanho da casa.

As cozinhas das famílias abastadas, ampla e espaçosa, circulavam apenas os membros da família e os serviçais. Tachos de cobre, pilão de mão, gamelas, raladores, peneiras, colheres de pau, alguidares, pratos e talheres de uso diário eram utensílios indispensáveis nas cozinhas campineiras. Além é claro, do fogão a lenha e, em algumas residências também era utilizado o forno de barro para torrar grãos, como o milho e o café, para os assados, pães e biscoitos.

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HOMEM, Maria Cecília Naclério. Café, Indústria e Cozinha. Passagem da cozinha rural a urbana: São Paulo, 1830-1918. Museu Republicano Convenção de Itu, Museu Paulista-USP. Palestra ministrada no I Seminário de História do Café: História e Cultura Material.

Figura 43 – Os fornos de barro eram utilizados para torrar farinha, café.

À esquerda ruínas de um forno localizado na parte de trás da casa grande da Fazenda Sete Quedas, Construção do [séc. XIX].

À direita: Cozinha caipira. Pintura de Almeida Jr. mostrando os detalhes de uma típica cozinha paulista. (Fotografia Rômulo Fialdini).

No processo de modernização das casas, os proprietários preocupados com a questão da salubridade e da ventilação dos ambientes passaram a construir a cozinha afastada do corpo principal da casa, evitando que os odores, a fumaça e a fuligem impregnassem a residência.

No final do século XIX para o início do XX, as cozinhas deixariam de ser mal cheirosas e feias para se tornarem limpas, claras e belas. Ocorreram modificações nos utensílios, o espaço de uso exclusivo das louças de cerâmica, dos alguidares, das gamelas e das panelas de ferro passou a receber louças vidradas, faianças portuguesas e faianças finas inglesas, além dos utensílios como as batedeiras de ovos e de manteiga manuais e o moinho de café em substituição ao pilão.

O fogão a lenha passaria a ter um outro companheiro, os fogões de ferro fundido, também chamado de fogão econômico, porque gastavam menos lenha e possuíam chama mais duradoura, sendo equipados com serpentinas. Após alguns anos eles passariam a ser fabricados no Brasil, na fábrica de fogões São Pedro, no Rio de Janeiro.216

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Segundo Maria Cecília os fogões econômicos chegaram a São Paulo por volta de 1880,com o incremento das ferrovias e com a isenção das taxas alfandegárias para a importação de máquinas e demais bens de consumo. HOMEM, op.cit., 2006; HOMEM, op.cit., 1996, p.56.

Figura 44 – Esses fogões tinham um aspecto próximo dos atuais. Com várias bocas, o que permitia utilizar várias panelas ao mesmo tempo, possuía ainda um pequeno forno e uma caldeira que mantinha a água sempre quente. Durante vários anos eles conviveram com os fogões a lenha.

Fogões de ferro. Séc.XIX.

As famílias campineiras valeram-se desse avanço tecnológico, antes mesmo da capital da província. Em 1873, D. Maria Josefa da Conceição Vilella possuía dentre os trens de cozinha “... um fogão econômico novo por 230$000.” Ao lado da modernidade os velhos utensílios: “... duas bandejas, 4$000; dois tachos de cobre pesando 26£, 26$000; um tacho e uma bacia velha pesando 25£, 20$000; três bacias de ferro velhos, 14$000; uma panela de ferro, 20$000.”217 D. Aristhéa Braziliana de Lemos Barreto não ficou para trás e equipou sua cozinha com “... um fogão econômico, no valor de 250$000 (...)”

Adentrar a cozinha da aristocracia campineira durante a segunda metade do século XIX seria imaginá-la com os utensílios expostos em prateleiras, armários e mesas. Os tachos de cobre de variados tamanhos, devidamente areados, as panelas dispostas nas prateleiras, a tina com água fresca, os fogões econômicos e à lenha, enfim, todo o arsenal necessário para o preparo das refeições, do desjejum à ceia. Nos guarda-louças as latas de biscoito, as compoteiras, os doces cristalizados, cuidadosamente preparados com frutas regionais colhidas de seus pomares.

Figura 45 – Batedor de manteiga manual. (Mantegueira, séc.XIX. Exposição Terra Paulista, SESC- Pompéia, SP.). À direita: utensílio obrigatório nas cozinhas, os tachos de diversos tamanhos, era utilizado no preparo de doces. (Tacho de cobre, séc.XIX. Acervo Ana Maria Nogueira de Camargo).

Os trens de cozinha apareciam nos inventários de forma geral, sendo que muitos dos utensílios apontados por nós ficaram no campo da hipótese. Os avaliadores os descreviam em blocos, bateria de cozinha, por exemplo, e em raras ocasiões davam nomes aos móveis e utensílios. Nos casos em que os utensílios foram mencionados item a item detectamos a existência de caçarolas, panelas de ferro, caldeirões, chocolateira, chaleira e forno.

Figura 46 – Muitas das atividades cotidianas do preparo das refeições as escravas realizavam em espaços externos as cozinhas. O pilão, os alguidares, gamelas e cestos eram de uso diário, mesmo que não constassem da relação de bens a serem partilhados. (LAURENS,J. Pilage du café.

Imp. Lemercier, 1859-61. Contribuitor: Charles Ribeyrolles(1812-1860). (Acervo da Fundação da Biblioteca Nacional – Brasil).

Dos 85 documentos fichados encontramos menção em apenas três deles as louças de barro. D. Anna Matilde de Almeida, mãe do futuro Visconde de

Indaiatuba, possuía em sua casa na cidade: “... uma porção de louça de barro no valor de 1$280.“218 A esposa do Comendador Francisco Teixeira Vilella adquiria nos empórios da cidade “... gamelas, louça de barro para a casa e peneira...”,219 conforme constou na nota de compra anexada a seu inventário. A outra descrição referiu-se a garrafas de barro para água e gamelas constando na residência urbana e rural, respectivamente, de D. Maria Benedicta de Camargo Andrade: “... par de garrafas de barro para a água avaliado por 6$000 (...); doze gamelas de diversos tamanhos avaliado por 7$000.”220

Figura 47 – Moringas e jarras de barro, objetos indígenas incorporados ao uso cotidiano das famílias paulistas. Variedade de potes de barro. (Fazenda do Engenho, Itapira, SP).

Em seu sobrado à rua Doutor Quirino, número 1, a Baronesa de Ibitinga equipou sua cozinha com: “... mesa com pedra de mármore, lavatório com pedra de mármore, dois fogões econômicos de ferro, relógio e mesa ordinária avaliado por 110$000.”221 Na despensa: “... dois armários ordinários, caixão para mantimentos, duas mesas ordinárias, guarda comida avaliado por 140$000.”222

D. Guilhermina Langaard contava em sua cozinha com “um fogão econômico, um armário, uma mesa, duas cadeiras e trem de cozinha no valor de 50$000.”223 A simplicidade dos bens descritos não poderia deixar de ser

218

Inventário TJC, 1.Of., 1844, Cx.131, Proc.2460. fl.8v. 219

Inventário TJC, 1.Of., 1873, Cx.257, Proc.4359. fl.111. 220

Inventário TJC, 4.Of., 1873, Cx.225, Proc.4684. fls.22 e 35. 221

mencionada, visto que o Dr. Otto Langaard era um “conceituado” farmacêutico, proprietário de um sobrado de morada, cujo andar térreo era ocupado por sua farmácia, no centro da cidade de Campinas. É muito provável que o avaliador tenha desprezado os utensílios como pratos, talheres, copos e xícaras necessários ao cotidiano alimentar, por considerá-los de pouco valor monetário.

Figura 48 – Talheres de uso diário pertenceu a uma família de imigrantes italianos que vieram para as lavouras de café do interior paulista. Garfo e colher. Início do séc.XIX. (Acervo Morelli de

Oliveira).

No caso da família do Comendador Torlogo O’Conor Paes de Camargo Dauntre, a descrição dos trastes de cozinha foi mais detalhada, mas também revelaram certo despojamento. Em sua casa à rua Sacramento, número 2 havia

uma talha e suporte, 1$000; uma talha e suporte, 4$000; um banco para [jacadeira], 8$000; uma bateria de cozinha, 20$000; uma caixa para mantimentos, 10$000; uma prateleira, 5$000; um moinho para café, 6$000.224

Observamos que nas cozinhas das senhoras de famílias de menor poder aquisitivo, os artefatos resumiam-se a móveis do tipo guarda-louça, alguns pratos e talheres, caldeirões, bacias e tachos. Na casa de Anna Joaquina de Oliveira foram descritos apenas: “(...) um tacho grande velho de cobre, pesando 26£, 5$200; um outro tacho pequeno novo de cobre, pesando 14£, 12$600; uma bacia pequena de cobre, pesando 3 ½£, $700.”225 Já Isabel Schivatsmann possuía louças, prateleiras e “(...) um moinho de café, por 1$000; trinta pratos sortidos, por 5$000; doze xícaras usadas, quatro travessas e doze peças de louça

224

Inventário TJC, 4.Of., 1909, Cx.393, Proc.6940. fls.16 e 19v. 225

velha, tudo 7$000; pela bateria de cozinha, com banco e uma cadeira de pau, tudo 8$000.”226

Figura 49 – Utensílios tão importantes quanto o fogo e o fogão. Nossas ancestrais preferiam os recipientes de ferro aos de alumínio, por cozerem mais lentamente os alimentos e por

considerarem-nos benéficos à saúde. À esquerda: Chaleiras de ferro. Séc. XIX. À direita: Caldeirão de ferro. Séc.XIX. (Museu da Cidade de Ubatuba, SP).

Na cozinha as mulheres eram as senhoras, controlavam os mínimos detalhes e impunham seus desejos, administrando os espaços dos serviços da casa. Ainda que pertencesse ao mais rico palacete, a cozinha era o local em que a praticidade dos móveis e utensílios sobrepunha-se à suntuosidade. Ali, as sinhás e senhoras exibiam suas verdadeiras preciosidades, as receitas culinárias, e seus predicados de boa dona de casa. Aquele era o local “sagrado” do ritual culinário que dava vida às receitas e as delícias preparadas com esmero. Ambiente dos cheiros e sabores, as cozinhas desde os tempos coloniais tornaram-se espaços da transmissão de nossas tradições alimentares, que, no caso brasileiro, contou com o rico entrelaçamento de saberes, sabores e paladares de várias culturas.

Os dados dos inventários analisados indicaram que a casa campineira foi se transformando conforme a cidade foi vivenciando seu crescimento econômico. A sociabilidade e as práticas cotidianas demonstravam que os núcleos familiares se refinavam e usavam destes elementos para se distinguirem perante seus pares.

Os estratos intermediários da sociedade seguiam os padrões aristocráticos porque desejavam fazer parte dessa elite, freqüentar seus salões. Um meio utilizado pelos comerciantes, médicos e pequenos empresários foi o acúmulo de capital. Esse poder econômico permitia a eles mobiliarem luxuosamente seus lares e ao valerem-se dos mesmos símbolos da aristocracia esperavam ser reconhecidos e aceitos pela elite.

A mudança, no entanto não se restringia às elites e nem atingiam todos os segmentos da sociedade. Pessoas de condição econômica intermediária ou inferior partilhavam dessas mudanças nas formas de morar, como a separação de gêneros e a divisão dos papéis sociais. Independentemente a que posição social pertençam, o papel patriarcal, por exemplo, é preservado em alguns cômodos da casa.

Capítulo 3

As famílias da elite campineira no XIX: