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Crítica à função designativa: limites do realismo lingüístico

Já no Crátilo116 de Platão - o primeiro grande texto sobre a

questão da linguagem oferecido pela tradição filosófica - aparecem perfeitamente desenhadas as duas principais concepções da linguagem que buscam responder à questão sobre a origem da significação das palavras: de um lado o realismo lingüístico, que garantia a cada objeto um nome e um significado por natureza, implicando o significado das palavras estar determinado pelo objeto justamente por expressar os predicados que conformam a sua essência, a estrutura íntima do seu ser; de outro, o nominalismo, sustentando o caráter meramente convencional

116 PLATON. Cratilo: o de la Exatitud de las Palavras. Madrid: Aguilar, 1969. p. 508-552. (Obras completas).

dos nomes, onde os significados das palavras advêm exclusivamente dos usos lingüísticos, não ostentando nenhuma correlação com a estrutura ontológica do objeto designado.

Três questões fundamentais devem vincar a compreensão de o Crátilo: o objetivismo grego, manifesto na doutrina platônica das idéias, a crença numa intuição racional como fonte por excelência do conhecimento verdadeiro e, por último, a função meramente designativa da linguagem. Platão constrói um caminho de gradativa iluminação do conhecimento, onde traça a ascese filosófica do mundo sensível ao inteligível, das aparências ao mundo das Idéias. Este caminho indica, de um lado, dois níveis de representação sensível, que correspondem a um conhecimento baixo e desqualificado: o primeiro é a eikasía (imaginação), a intuição sensível imediata; a pistis (crença) e a dóxa (opinião), por sua vez, completam este plano de representação sensível; de outro lado, há duas formas superiores de conhecimento, a dianóia, correspondendo ao conhecimento racional-discursivo, por onde opera a inteligência pensante por meio da linguagem, e permite pela dialética apenas uma aproximação à verdade essencial das coisas. Por último, a nóesis, correspondendo à intuição racional imediata, um conhecimento puro não mediado pela linguagem, o único acesso à essência das coisas, ao mundo das Idéias.

Ora, se o ser verdadeiro, o ser em sua essência universal e imutável não se alcança nem pela empiria, nem pela linguagem, mas por uma espécie de visão espiritual por onde o intelecto humano capta intuitiva e imediatamente a ordem objetiva das coisas, somos obrigados a reconhecer à linguagem uma função meramente designativa. Ademais, tal ordem objetiva intuída pela razão filosófica era justamente o padrão transcendente pelo qual medimos, em cada linguagem, a capacidade de exercer sua vocação instrumental para designar com maior precisão possível o mundo. Se a essência intuída é norma de retidão da linguagem117 - critério central da semântica realista que corresponde à

117 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia

perfeita adequação da língua à realidade - então é forçoso reconhecer que a língua não se constrói arbitrariamente, mas por relação ao real, devendo perseguir, sempre que possível, a correspondência isomórfica entre a sua estrutura gramatical e a estrutura do ser. Daí Platão comparar a linguagem a um instrumento, o organon diacriticom, instrumentalidade esta tanto mais eficaz quanto mais for respeitado o critério transcendente da adequação na construção da linguagem. Esta compreensão da linguagem por si já permite vislumbrarmos no edifício da tradição essencialista da filosofia ocidental, o critério de verdade que aos poucos foi se consolidando: a adequação do nosso intelecto à coisa, ou seja, a rei adequatio intellectus.

Os ecos da tradição filosófica atravessaram os séculos iterando esta vocação objetivista impressa na base da concepção platônica da linguagem: existe um mundo racional em-si-mesmo, cuja estrutura pode ser conhecida pela razão humana e comunicada por meio da linguagem.

A função da linguagem, portanto, limita-se a mero instrumento de designação de um mundo já previamente conhecido. Cumpre a linguagem copiar, com maior perfeição possível, a estrutura ontológica do real. Por óbvio, nesta busca de perfeição isomórfica a estrutura do mundo é sempre primacial, determinando a estrutura da linguagem. Decorre daí ser a linguagem dotada de sentido apenas porque há um mundo por ela designado. As palavras retiram o seu sentido das coisas e dos fatos que compõem este mundo.

Segundo o modelo objetivista do fenômeno lingüístico, ao significar a essência comungada por mais de um objeto do mundo, a palavra designa uma classe de objetos, e não apenas um objeto singular. Ora, tais “essências universais” constituem exatamente a estrutura ontológica do mundo, onde as coisas se agrupam em classes e subclasses, de modo que a palavra, ao reproduzir esta estrutura essencial, reconstrói o mundo sob a forma de conceito: eis o coração pulsante da ontologia essencialista em que se apóia a tradição filosófica.

A expressão máxima do realismo lingüístico foi alcançada por Wittgenstein, em sua filosofia primeira - a do Tractatus Logico- Philosophicus118 - na teoria da figuração: a linguagem mantém seu

estatuto secundário em relação ao conhecimento: é tão-somente um instrumento de afiguração do mundo, ao qual se refere e sobre o qual nos informa.

Para o realismo ou objetivismo lingüístico, as palavras têm sentido tão-somente porque há objetos por elas designados - coisas particulares dotadas de uma essência universal. Na composição do mundo entram distintos objetos, alguns muito especiais como os fatos, perfazendo situações objetais designadas pelas frases. Ora, o realismo lingüístico atinge o seu ápice justo na teoria da afiguração, que toma por base a correspondência estrutural entre frase e estado de coisas, desenvolvida por Wittgenstein no Tractatus. A frase representa, em conformação isomórfica, os fatos ou estado de coisas por ela referido. Assim, a teoria do Tractatus propõe uma nova formulação da concepção isomórfica entre o mundo e a linguagem: ora, se a linguagem não é mais que um reflexo, “uma cópia do mundo, o decisivo é a estrutura ontológica do mundo que a linguagem deve anunciar. A essência da linguagem depende, assim, em última análise, da estrutura ontológica do real.”119 O

mundo é um dado que independe da linguagem. Esta última, em sua função designativa, tem por tarefa exprimi-lo.

Se, por um lado, Wittgenstein mantém o caráter secundário da linguagem no Tractatus, por outro, insurge-se contra os excessos de uma tradição que insiste em restringir a linguagem a uma função exclusivamente designativa da essência das coisas: o conhecimento, para a tradição filosófica resulta da apreensão intelectual das essências universais e imutáveis das coisas, donde concluir-se que as palavras retiram seu significado dos próprios objetos por elas designados.

118 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Nacional, 1968.

119 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia

Ora, se para as impostações da filosofia essencialista, o conceito é o fundamento último da representação do mundo – eis que reproduz, no âmbito lingüístico, as essências das coisas reais -, então a verdade pressupõe o isomorfismo entre a estrutura da linguagem e a estrutura ôntica da realidade. Sendo o significado do conceito expressão das essências universais que estruturam o mundo, então é forçoso concluir que este isomorfismo de cunho essencialista é orientado, em sua projeção lingüística, por uma semântica de índole material. Wittgenstein, no entanto, propõem a substituição deste isomorfismo essencialista por um isomorfismo lógico-gramatical, cuja base de apóio está no que se poderia chamar de uma semântica puramente formal.

Para a teoria pictórica da proposição sustentada por Wittgenstein no Tractatus, as palavras não ostentam uma denotação independente do contexto da frase, nem o sentido da frase emerge de uma conjunção dos sentidos das palavras que a compõe, como sugere a semântica até então: calçada na ontologia do atomismo lógico120

desenvolvido por Bertrand Russel, a teoria pictórica pressupõe ser o mundo constituído por fatos, e não por objetos simples, coisas individuais. Coisas e objetos compõem apenas a substância do mundo, e não a sua unidade estrutural: o fato. A forma dos objetos consiste em poder combinar-se entre si para compor “estados de coisas” logicamente possíveis, e tais “estados de coisas”, quando ocorrem efetivamente no mundo, constituem os “fatos”. Os fatos podem ser unidades isoladas, os fatos atômicos, ou estruturas complexas, os fatos moleculares, formados por relações entre fatos atômicos. Ora, cumpre à linguagem reproduzir esta estrutura em seus enunciados. Assim, o enunciado atômico reproduz o fato atômico, e os enunciados moleculares, os fatos moleculares. Desse modo, a linguagem representa o “estado de coisas” ocorrido no mundo, imprimindo-lhe uma figuração. A figuração lingüística se dá pela conjunção de enunciados atômicos, que são bivalentes (falsos ou verdadeiros), pelo que a figuração resultante pode ser logicamente

120 MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. t. 1. p. 227.

reduzida ao valor verdade. Por esta estratégia pictórica, ao mesmo tempo em que a representação lingüística copia a realidade, submete-se a uma tese verificacionista.

O atomismo lógico foi desenvolvido por Bertrand Russel em suas discussões com Ludwig Wittgenstein entre 1912 e 1914, e propõe uma estrutura lingüística que perfaz um esqueleto capaz de abrigar todos os enunciados sobre o mundo. Cada enunciado “simbolizado por uma letra proposicional, descreve um fato, isto é, um fato atômico. Assim como os enunciados se combinam por meio de conectivos, assim também os fatos atômicos se combinam formando fatos moleculares”121.

Destarte, os fatos são estruturas extralingüísticas às quais a estrutura lógico-sintática das proposições deve se conformar. Portanto, segundo o atomismo lógico, a unidade constitutiva do mundo como sentido não são as coisas, entidades simples que as palavras supostamente designariam nos termos da tradição filosófica, mas os fatos, estruturas lógicas complexas designadas por enunciados lingüísticos cuja estrutura lógico-sintática lhes são isomórficas: “o mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas”.122

Para o Wittgenstein do Tractatus, portanto, o pensamento não é uma entidade mental abstrata, tal como a idéia de consciência; antes, é constituído por formulações lingüísticas que perseguem a afiguração do mundo: é no pensamento que representamos a realidade. Logo, o papel da filosofia consiste em traçar os limites lingüísticos do pensamento, delimitando as regras lógicas subjacentes à representação simbólica da realidade promovida pela linguagem. Tais regras lógicas constituem a base sintática do conhecimento que corresponde à estrutura ontológica do mundo, impondo limites ao que pode ser dito e ao que deve ser calado.123

121 MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2000. t. 1. p. 227.

122 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Nacional, 1968, p. 55.

Nesses termos, cumpre ao filósofo, não a ascese platônica do mundo das aparências (onde reinam as coisas particulares e empíricas) ao mundo das idéias (formado por essências universais); antes, sua tarefa é compreender a natureza da proposição, como ela se formula e qual a sua relação com aquilo que ela afigura: "a forma lógica essencial da