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Crítica ao funcionalismo: Campos e Esferas de valor/Sistemas parciais

Parte I. Arqueologia da autonomia

1.5. Crítica ao funcionalismo: Campos e Esferas de valor/Sistemas parciais

VALOR/SISTEMAS PARCIAIS44

A despeito das profundas diferenças existentes entre autores como Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas, nos parece que o tratamento articulado de seus enunciados particulares sobre a autonomização das esferas sociais na modernidade é justificável, já que ambos têm como ponto de partida da elaboração de seus esquemas teóricos uma crítica da razão funcionalista, para usar a terminologia habermasiana. O traçado do conjunto aqui proposto é, portanto, a modulação do enunciado da autonomia para além da apropriação funcionalista da noção de legalidades próprias.

Se Habermas não se encontra na terceira seção dessa primeira parte da investigação, que versa sobre a linhagem crítica do enunciado da autonomia das esferas, do conceito de reificação à racionalidade instrumental (o que chamamos de

indiferenciação por identidade), é porque, embora aquele compartilhe com Adorno e Horkheimer a ideia de que uma teoria da sociedade deve ser capaz de diagnosticar patologias sociais a partir de fins emancipatórios, a sua crítica à tese da racionalidade instrumental busca particularmente endossar o caráter diferenciado do processo de modernização, assim como a lógica própria das instâncias comunicativas (e normativas) em relação às formas sistêmicas como o Estado e o mercado. Nesse sentido, se Habermas chama a atenção para processos patológicos de homogeneização na modernidade – colonização sistêmica do mundo da vida –, a sua reconstrução da teoria crítica frankfurtiana enfatiza os elementos de heterogeneidade na diferenciação social que permitem sair do círculo infernal da identidade promovida pelo domínio unificador da racionalidade instrumental. Na nossa compreensão, Habermas é mais um pensador

44 Num esforço semelhante ao empreendido em relação ao conjunto de autores clássicos e contemporâneos tratados nesta primeira parte, buscamos em obras centrais da teoria social e sociológica de Anthony Giddens, sobretudo A Constituição da Sociedade, elementos que delineassem uma reelaboração ou uma crítica ao enunciado da autonomização das esferas sociais. Giddens (2003: 331-4) – que também pode ser pensado como um crítico da razão funcionalista – desenvolve uma contribuição original em sua teoria da estruturação social, ao enfatizar a centralidade da “cognoscitividade”, do cotidiano, da “rotina”, ou melhor, das “contextualidades de interação” na análise da reprodução e transformação contínua das estruturas sociais, rejeitando hipostasia-las como entidades reais independentes dos indivíduos e das intersubjetividades. No entanto, a sua noção de diferenciação das “ordens institucionais” (Giddens, 2003: 40) ou mesmo a sua noção de “fichas simbólicas”, parcialmente desenvolvidas em seu As Consequências da Modernidade (Giddens, 1991: 25) e entendidas como “meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”, “tais como os meios de legitimação política” ou a “ficha do dinheiro” (única que ele desenvolve mais detidamente), tais noções, tomadas isoladamente, é claro, não representam contribuições inovadoras em relação àquela linhagem weberiano- funcionalista referente à autonomização das esferas sociais.

pós-funcionalista da heterogeneidade ameaçada por processos de colonização do que um pensador negativo da identidade implacável do capitalismo tardio.

CAMPOS

Em um longo ensaio publicado em 1985, A Gênese dos Conceitos de Habitus e de

Campo, Bourdieu (2010: 66) confessa que a “primeira elaboração rigorosa da noção” de campo “saiu de uma leitura do capítulo de Wirtschaft und Gesellschaft consagrado à sociologia da religião”. E, de fato, se voltarmos ao seu ensaio fundamental de 1971 sobre a Gênese e Estrutura do Campo Religioso, acompanhado – na compilação de textos bourdieuianos organizada por Sergio Miceli A Economia das Trocas Simbólicas – pelo apêndice Uma Interpretação da Teoria da Religião de Max Weber, também originalmente publicado em 1971, veremos como aí se constrói a matriz da enunciação da autonomia (relativa) das esferas sociais em Bourdieu.

A força da sociologia da religião de Weber reside, para Bourdieu (2007: 32-3), em ter encontrado “os meios de correlacionar o conteúdo do discurso mítico (inclusive sua sintaxe) aos interesses religiosos daqueles que o produzem, que o difundem e que o recebem”. Por isso a centralidade de Weber no esforço bourdieuiano de estabelecer uma abordagem sociológica sintética do fenômeno religioso, por lançar uma ponte entre o trabalho propriamente religioso de “transfiguração das relações sociais em relações sobrenaturais”, tal qual a elaboração durkheimiana, sem nunca perder de vista que esse trabalho de produção de ideias sempre se liga a jogos específicos de interesses, atentando assim, como Marx, para a “função de conservação da ordem social” realizada pela religião, mas sem reduzi-la a mero “reflexo das estruturas sociais”.

É, portanto, precisamente na medida em que elabora esquemas generalizados de pensamento (Durkheim) por meio da interação tensa entre atores específicos – profetas, sacerdotes, magos e leigos (Weber) – que a religião é eficaz enquanto forma de manutenção da hierarquia e da dominação social (Marx).

Acompanhando Weber, Bourdieu (2007: 35-40) também percebe o processo de urbanização e de separação entre campo e cidade como central na formação do campo religioso, isto porque é nas cidades que encontramos “o desenvolvimento de um corpo de especialistas incumbidos da gestão de bens de salvação”. A divisão do trabalho religioso tem a divisão do trabalho social como sua condição. A “normatividade

própria” alcançada pela “racionalização da religião” encontra estímulos indiretos, “linhas de desenvolvimento (Entwickluhswege)”, nas “condições econômicas”, mas liga-se fundamentalmente à formação “de um corpo especificamente sacerdotal”. Os sacerdotes vinculam a si a função de sistematização das tradições míticas dispersas em uma teologia ajustada “às normas éticas e à visão do mundo dos destinatários de sua prédica, bem como a seus valores e seus interesses próprios de grupo letrado”. A “analogia sincrética” mítica é transformada na “analogia racional e consciente de seus princípios” religiosa, ao mesmo tempo em que se dá a monopolização (pelo sacerdócio, que é sempre desapropriação constituinte da massa leiga) dos meios de produção do conteúdo interno ao campo religioso, estabelecendo a “separação simbólica entre o saber sagrado e a ignorância profana que o segredo exprime e reforça”.

O grau de “diferenciação do... aparelho religioso”, por meio do qual é possível inclusive distribuir as “diferentes formações sociais”, é dado, para Bourdieu (2007: 40) – em contraste com Durkheim que acredita poder encontrar as características elementares da vida religiosa em sociedades segmentárias –, pelo nível de cisão entre uma situação de dispersão e outra de concentração dos meios e bens religiosos, entre o “auto-consumo religiososo” e a “monopolização completa da produção religiosa por especialistas”, entre o “domínio prático” e o “domínio erudito”, entre “mitos” e “ideologias religiosas”.

A formação do campo religioso, e como veremos de todo campo, implica assim uma ruptura fundamental, a passagem para um momento de regulação hierárquica dos meios de produção e da distribuição dos bens de salvação. Algo muito semelhante à expropriação dos produtores imediatos pari passu à concentração dos meios de produção pelo capital como fundante do trabalho assalariado em Marx.

Talvez mais do que o modelo da “acumulação originária” marxiano, é a separação entre o quadro administrativo e os meios de administração na concepção weberiana de burocracia que mais influencia a reflexão bourdieuiana.

A oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e os leigos, objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido de ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição entre o

sagrado e o profano e, paralelamente, entre a manipulação legítima (religião) e a manipulação profana e profanadora (magia ou feitiçaria) do sagrado, quer se trate de uma profanação objetiva (ou seja, a magia ou a feitiçaria como religião dominada), quer se trate da profanação intencional (a magia como anti-religião ou religião invertida) (Bourdieu, 2007: 43).

Os atores fundamentais dessa verdadeira burocracia do sagrado formam um sistema estratificado onde no topo está a profecia (espécie de princípio de legitimação do campo), abaixo os sacerdotes (que sistematizam a profecia em prol de interesses específicos) e, na base, os leigos como meros consumidores da promessa de salvação. É importante pensar que o sacerdócio, ao rotinizar o carisma profético para além de interesses puramente ideais e religiosos, geralmente se estabelece em oposição ao próprio profeta e a sua relação mais íntima com as massas. Não é por acaso que o questionamento de uma ortodoxia religiosa frequentemente se dá com o surgimento de um novo profeta que, com a força do carisma, coloca em xeque a organização burocrática da salvação (pensemos em Lutero na história do cristianismo).

A constituição de um campo simbólico como o campo religioso implica também a conformação de um interesse específico, de um interesse especificamente religioso. Nesse sentido, vale observar que o feito de Bourdieu em sua noção de campo não consiste em generalizar o modelo do homo oeconomicus para todas as esferas da vida social. Em primeiro lugar, por cada campo ser definido por interesses particulares, num sentido bem próximo às legalidades próprias em Weber. Falar em interesses internos a cada campo significa, antes de qualquer coisa, o que pode parecer trivial, desconstruir a ideia de que existam práticas sociais desinteressadas, como o próprio campo religioso ou artístico continuamente buscam afirmar. Em segundo lugar, é o próprio campo que condiciona os interesses perseguidos pelos atores, sendo estranho ao modelo bourdieuiano qualquer forma de atomismo ou individualismo metodológico.

Para o autor francês (Bourdieu, 2007: 45-6), enquanto “sistema simbólico estruturado, a religião funciona como princípio de estruturação” ao simultaneamente elaborar e expressar a “lógica em estágio prático, condição impensada de qualquer pensamento”, explicitando e por isso mesmo legitimando na forma de ética aquilo que como ethos repousava na imanência das próprias práticas. Erige em sistema, concentra a representação, de formas de dominação exercidas praticamente. Consagrando-se ao explicitar simbolicamente, exercendo uma “função lógica e gnosiológica” para toda a formação social, é com tal operação que a religião pode cumprir uma “função

ideológica, função prática e política de absolutização do relativo e de legitimação do

arbitrário”.

Estamos aqui inteiramente distantes da ideia de falsa consciência, pois é a universalização (ideo)lógica de interesses particulares que é tanto estruturada como estruturante de relações práticas desiguais. Nesse processo vê-se que, para além de

qualquer dilema sobre o ovo e a galinha, não é a estruturação do sistema simbólico religioso, de uma ética religiosa em oposição à dispersão do ethos mítico, que constitui ou estrutura a ordem hierárquica de poder. Acentua-se, e aqui há ecos tanto d’A

Ideologia Alemã como da Consideração Intermediária, o papel da formação de um estrato orientado exclusivamente para a especulação intelectual, em oposição às massas ligadas ao trabalho material, no reforço de práticas de dominação. Nesse sentido específico, Marx, Weber e Bourdieu acentuam a relação entre a sistematização de ideias tendente à universalização ideológica e interesses de classes ou estratos particulares na estrutura social.

Esta relação entre a sistematização simbólica (ideias) e a estrutura de classes (interesses) torna-se ainda mais explícita quando Bourdieu (2007: 50) escreve que “o interesse religioso tem por princípio a necessidade de legitimação das propriedades vinculadas a um tipo determinado de condições de existência e de posição na estrutura social”, de modo que “as funções sociais desempenhadas pela religião em favor de um grupo ou de uma classe, diferenciam-se necessariamente de acordo com a posição que este grupo ou classe ocupa a) na estrutura das relações de classe e b) na divisão do trabalho religioso”. A despeito das variações, em “uma sociedade dividida em classes” (Bourdieu, 2007: 52), a sistematização simbólica totalizante da religião sanciona e santifica, por meio de uma transfiguração, a cisão relacional da estrutura social.

Tal sucede porque no momento mesmo em que ela se apresenta oficialmente como una e indivisa, esta estrutura se organiza em relação a duas posições polares, a saber: 1) os sistemas de práticas e de representações (religiosamente dominante) tendentes a justificar a hegemonia das classes dominantes; 2) os sistemas de práticas e de representações (religiosidade dominada) tendentes a impor aos dominados um reconhecimento da legitimidade da dominação fundada no desconhecimento do arbitrário da dominação e dos modos de expressão simbólicos da dominação (por exemplo, o estilo de vida bem como a religiosidade das classes dominantes), contribuindo, desta maneira, para o reforço simbólico da representação dominada do mundo político e do ethos da resignação e da renúncia diretamente inculcados pelas condições de existência (Bourdieu, 2007: 52-3).

Isto não implica em afirmar uma determinação em última instância do campo religioso pela estrutura de classes, mas de afirmar que, enquanto princípio de

estruturação, o campo religioso mantém relações, num sentido muito próximo de Weber, de afinidades e tensões com a estrutura social, muito embora em seu dinamismo, em seu “princípio da dinâmica” (Bourdieu, 2007: 50, itálico meu), o campo religioso

seja produto (e produtor) da “transação” e da “concorrência” dos interesses dos seus atores constituintes e fundamentais.

A formação do campo religioso, portanto, implica: 1) a sistematização ética da prática por um corpo de especialistas; 2) a constituição de um interesse especificamente religioso; 3) a monopolização dos meios de produção e a regulação da distribuição dos bens religiosos, o que aí já se apresenta como uma distribuição desigual do capital

simbólico no interior do campo, do extremo produtor ao extremo meramente consumidor; 4) uma relação mediada, variante e complexa do campo em sua autonomia com a estrutura social ou – como Bourdieu definirá mais precisamente no intuito de superar concepções substancialistas do social e enfatizar a dimensão relacional da sua sociologia – o campo mais amplo do poder.

Para Bourdieu (2007: 71), aprofundando ainda mais essa relação, o campo religioso “cumpre uma função externa de legitimação da ordem estabelecida na medida em que a manutenção da ordem simbólica contribui diretamente para a manutenção da ordem política”. Para que uma autoridade religiosa se estabeleça ela precisa se legitimar religiosamente perante os leigos (ou despossuídos dos meios de produção do campo religioso), que por sua vez estão inteiramente envolvidos “na estrutura de relações de forças entre as classes”. Pode-se dizer, numa primeira aproximação, que os estratos dominantes dos campos religioso e político lidam com o mesmo contingente dominado. Mas é sobretudo na dimensão propriamente simbólica que a ordem religiosa e a ordem política encontram uma intersecção na topologia do espaço social diferenciado em campos. Assim, mais do que a aliança instrumental entre os dominantes do campo religioso e os dominantes do campo político para a manipulação das massas segundo uma mesma constelação de interesses, a manutenção da ordem política pela ordem religiosa diz respeito principalmente à homologia simbólica entre os dois campos, pela “absolutização do relativo”, pela “legitimação do arbitrário”, pela “imposição”, comum a ambos, “de um modo de pensamento hierárquico que, por reconhecer a existência de pontos privilegiados tanto no espaço cósmico como no espaço político, ‘naturaliza’ (Aristóteles costuma referir-se a ‘lugares naturais’) as relações de ordem” (Bourdieu, 2007: 71).

Obviamente, a subversão religiosa dessa lógica simbólica cria condições, mas não a necessidade, para a subversão da ordem política.

Pode-se dizer, baseando-se na argumentação precedente, que é justamente ao se

campo religioso legitima, sanciona e santifica a estrutura social hierárquica. Quanto mais autônomo o campo religioso, mais eficaz a consagração do campo mais amplo do poder e da estrutura social de classes. É precisamente por meio da autonomia que o campo religioso se integra à ou mantém a dominação política e social.

Em conferência realizada em Chicago no ano de 1977, Sobre o poder simbólico, este ponto é colocado de forma ainda mais clara quando Bourdieu define o “campo de produção simbólica” como “um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem aos seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem aos interesses dos grupos exteriores ao campo de produção” (Bourdieu, 2010: 12). “A classe dominante é o lugar de uma luta pela hierarquia dos princípios de hierarquização...” (Bourdieu, 2010: 12). O poder simbólico, formula Wacquant (2002: 99), define-se “como a habilidade para conservar ou transformar a realidade social pela formação de sua representação, isto é, pela inculcação de instrumentos cognitivos de construção da realidade que escondem ou iluminam suas arbitrariedades inerentes”.

A luta entre as classes é também uma luta para impor a lógica de representação do mundo, naturalizar o artifício e universalizar o particular. Tal como o Estado se define em Weber pelo monopólio legítimo da violência, as ordens simbólicas se definem em Bourdieu pela busca de impor o monopólio legítimo da violência simbólica, processo este que é inseparável da formação de um “corpo de produtores especializados” (Bourdieu, 2010: 13). Para não cair seja em um reducionismo do simbólico ao material seja em uma simples semiologia das práticas simbólicas, Bourdieu então enfatiza o caráter duplamente determinado das formas de dominação simbólica, a saber, o fato de elas se constituírem através da articulação entre interesses de classe mais amplos (letrados, intelectuais) e “interesses específicos” aos produtores internos à ordem simbólica, entre a lógica da estrutura social e a “lógica específica do campo de produção” (Bourdieu, 2010: 13).

Se Bourdieu fala em função (Bourdieu, 2010: 13) das “ideologias” ou das formas de dominação simbólica, o sentido aqui difere fundamentalmente de uma concepção funcionalista de função: não se trata de uma função como movimento que satisfaz as necessidades de um sujeito social, mas de uma função que se exerce ao nível social como expressão da dominação eficaz de interesses diferenciados, a função aqui é antes de qualquer coisa exercício de poder que perpassa toda a topologia do social:

é na correspondência de estrutura a estrutura que se realiza a função propriamente ideológica do discurso dominante, intermediário estruturado e estruturante que tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural (ortodoxia) por meio da imposição mascarada (logo, ignorada como tal) de sistemas de classificação e de estruturas mentais objectivamente ajustadas às estruturas sociais (Bourdieu, 2010: 13).

É no momento mesmo em que é capaz de se apresentar como uma função geral e ampla para todo o campo de produção e para a estrutura social como um todo que o poder simbólico exerce propriamente a sua função: apresenta “relações de força” como meras “relações de sentido”, o que se define por violência simbólica. A função funcionalista pode ser pensada como expressão teórica dessa eficácia.

Há, portanto, algo como um esqueleto formal que tanto é mais amplo do que os campos particulares como replica, homologicamente, a ordem interna a cada campo: a este esqueleto formal Bourdieu denomina campo de poder. Tal conceito, como havíamos rapidamente mencionado acima, é introduzido por Bourdieu (2010: 28) visando superar as tendências realistas do conceito de classe dominante, pensado como “uma população verdadeiramente real de detentores dessa realidade tangível que se chama poder”. Dando uma formulação taxativa aos elementos já presentes na reflexão sobre a formação do campo religioso, o campo de poder é definido por

relações de força entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima de poder (penso, por exemplo, nos confrontos entre ‘artistas’ e ‘burgueses’ no século XIX) (Bourdieu, 2010: 28-9).

Como todo campo, o campo de poder, que não se confunde com o campo político (Estado, partidos, etc.), define um espaço virtual de possíveis posições desiguais, desigualdade esta fundada na distribuição hierárquica dos recursos, recursos ou valores estes definidos pelo interesse específico do campo. Diferentemente, o campo de poder, para além de sua autonomização e enclausuramento, é o espaço de luta pela forma de definição generalizada ou válida do poder legítimo para todo o espaço social. É, portanto, para Bourdieu, em relação ao campo de poder que a autonomia particular a cada campo se integra de forma mediada e complexa ou, numa outra formulação a partir da ideia de dupla determinação, é o campo de poder que define o interesse transcendente ao interesse interno a cada campo.

É por compartilharem de uma mesma estrutura formal que se torna possível, segundo Bourdieu (2010: 32-3), realizar generalizações, para além da idiografia, na análise dos campos. O raciocínio por homologia ou por meio do “método comparativo...

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