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As antologias podem ser entendidas como gênero textual, como uma estrutura de escrita. Os gêneros, assim como a política, a teoria, a cultura e a história, são as “margens” da literatura, os limites nos quais ela se encontra, se confunde com outras coisas e por vezes desaparece100. Como gênero, a antologia faz fronteira com a crítica, está em contato com ela, de modo que deve também, ser pensada como um procedimento crítico, uma operação crítica de leitura e escritura. A palavra crítica, oriunda do grego krínein, significa julgar, conferir valor às coisas. O julgamento pressuporia o exame, a análise, a investigação criteriosa, para então se discriminar os valores, separar as partes, o joio do trigo.

Antoine Compagnon, no capítulo “Valor” de O demônio da teoria, inicia lembrando

99 Em entrevista a Rodrigo de Sousa Leão, Frederico Barbosa afirma que “Inventores, no sentido poundiano, de "homens que descobriram um novo processo", só mesmo Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos”. Disponível em: http://navirada.sites.uol.com.br/entrevista.html

essa tarefa do crítico. O que se espera dos profissionais da literatura, afirma, é que julguem os livros, declarem o que é bom e o que é ruim e mais, que justifiquem suas preferências e afirmem suas razões. “A crítica deveria ser uma avaliação argumentada”101. Está colocado, desde então, o problema: o vínculo inerente entre antologia e ação crítica que, por sua vez, acarreta a questão do valor. Em seu estudo, Compagnon indaga se o valor seria algo intrínseco à obra avaliada ou uma apreciação subjetiva e arbitrária, baseada no “gosto”. Ao longo da história, o autor destaca duas abordagens: uma que entendia o gosto como algo subjetivo, e outra que, evitando cair no “impressionismo”, vai propor uma “ciência positiva da literatura”102 e reivindicar o caráter objetivo do valor. Entretanto, nenhuma das duas posições consegue escapar do problema da avaliação e, por caminhos diferentes, ambas conduzem à questão do cânone, ou dos clássicos, o conjunto das obras de valor que serviriam como referência, como modelo e autoridade:

Em grego, o cânone era uma regra, um modelo, uma norma representada por uma obra a ser imitada. Na Igreja, o cânone foi a lista, mais ou menos longa, dos livros reconhecidos como inspirados e dignos de autoridade. O cânone importou o modelo teológico para a literatura do século XIX, época da ascensão dos nacionalismos, quando os grandes escritores se tornaram os heróis do espírito das nações.103

Segundo Compagnon, é com Kant, na Crítica da faculdade do juízo, que se realiza definitivamente a passagem da tese clássica da objetividade do belo para a tese romântica e moderna da subjetividade, e até mesmo da relatividade do belo104. O julgamento do gosto, com isso, deixa de ser um julgamento lógico, inteligível, para ser um julgamento “estético”, expressão de um sentimento de prazer. O elemento curioso da formulação de Kant está em que o julgamento estético se distingue do puro deleite por ser desinteressado, fato que provoca um deslocamento do estético, do objeto para o sujeito. E, após estabelecer o subjetivismo do julgamento estético, Kant luta para preservá-lo de um desdobramento fatal: o relativismo do belo. Ele defendeu sua teoria com o argumento da unanimidade, de que haveria um sensus communis, uma “hierarquia estética legítima”, universal, fundamentada no caráter desinteressado do julgamento estético. Essa visão, como a objetivista, não deixa de ser

101 COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso-comum. Trad.: Cleonice Paes Barreto Mourão; Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001. p.225.

102 Idem, p.225. 103 Idem, p.227. 104 Idem, p.231.

idealizada e desconsidera, entre outros fatores, as diferenças de sensibilidade.

Compagnon segue analisando as formulações de Sainte-Beuve, que, inspirado em Goethe, propõe uma definição romântica - ou moderna - dos clássicos: os escritores clássicos seriam os que funcionam não como modelo, “mas como exemplos inesperados com os quais nunca deixamos de nos maravilhar”105. Com essa noção de inesperado, de um atraso, Sainte- Beuve integra o tempo da recepção no conceito de clássico. Surge, então, a doutrina do “romantismo dos clássicos”: os clássicos foram românticos no seu tempo, os românticos serão clássicos amanhã106. A partir daí, se reconhece a importância do tempo como um “depurador” do gosto. Conforme esse ponto de vista, o distanciamento temporal, a posteridade, funcionaria como o crítico literário mais confiável no julgamento das obras, fazendo a triagem por si só.

Assim, se a antologia é crítica, ela carrega em si a problemática do julgamento e do valor e, portanto, responde a ela de algum modo. No caso das reuniões aqui estudadas, a resposta pode ser encontrada mais na forma do que no discurso presente nas antologias, já que, tendo abandonado a prática de julgar, a crítica se resume a apontar a multiplicidade de tendências e recursos disponíveis e a pacífica convivência entre eles. Entretanto, se a discussão em termos de “bom” e “mau” ou até mesmo de “valor” - termo que hoje parece possuir uma conotação negativa, já que é um critério relativo, só tem sentido (valor) em relação - não é mais pertinente, isso não significa que a discussão em si não seja relevante. Ao contrário, justamente por isso os argumentos são necessários, a relação em causa deve ser explicitada no discurso, pois algum juízo está implícito na escolha.

105 Idem, p.238.