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3 ROMANTISMO E ROMANCE HISTÓRICO

3.1 A CRÍTICA DE LUKÁCS AO ROMANTISMO

Pelo contrário, um partido que por muito tempo se consagrara a uma agitação revolucionária, arrancando pouco a pouco o proletariado da influência dos conciliadores, mas que, tendo angariado a confiança das massas em seu máximo, começa a hesitar, a procurar complicações onde não há, tergiversando e cambaleando, tal partido, dizíamos, paralisa a atividades das massas, provoca nelas a decepção e a desorganização [...].

(Lições de Outubro, Leon Trotsky)

Na sua teoria sobre o romance, publicada em 1916, Lukács discorre sobre o papel da ironia na organização da matéria romanesca, tendo em vista dois aspectos: a totalidade épica e a individualidade do herói. A correlação entre a objetividade épica e a subjetividade que impele a uma busca é o traço primordial da arquitetura do romance, visto que a dissonância característica da matéria romanesca diz respeito ao confronto de um mundo fragmentado com a plenitude que não é mais possível; no romance, tal dissonância se estabelece na seguinte harmonia formal:

Do aspecto composicional, segue-se que os homens e os padrões de ação possuem o caráter ilimitado da autêntica matéria épica, embora sua estrutura seja essencialmente diversa da epopeia. A diferença estrutural em que ganha essa pseudo-organicidade basicamente conceitual da matéria romanesca é aquela entre uma continuidade homogênea-orgânica e uma descontinuidade heterogêneo- contingente. Graças a essa contingência, as partes relativamente independentes são mais independentes, mais integradas em si do que as da epopeia, e têm por isso, através de meios que transcendem a sua simples existência, de ser inseridas no todo, a fim de não rompê-lo. (LUKÁCS, 2000, p. 76-77).

A contingência da matéria romanesca, isto é, a pseudo-organicidade conformada pela ironia organiza o fragmentário em uma totalidade, esta corresponde à fissura entre a realidade do ser e o ideal do dever-ser. A forma romance não mais comporta um herói instigado pelos

desígnios divinos, os quais fazem a epopeia operar o sistema fechado derivado da vida em comunidade; ao contrário, na totalidade característica do romance, a ironia consiste em um princípio da forma, tendo em vista a necessidade de equilíbrio entre continuidade homogênea- orgânica e descontinuidade heterogêneo-contingente. Logo, a unidade formal transparece na mediação que a ironia realiza entre continuidade e descontinuidade.

Para o romance, a ironia é essa liberdade do escritor perante deus, a condição

transcendental da objetividade da configuração. Ironia que, com dupla visão

intuitiva, é capaz de vislumbrar a plenitude divina do mundo abandonado por deus [...]. A ironia, como autossuperação da subjetividade que foi aos limites, é a mais alta liberdade possível num mundo sem deus. Eis por que ela não é meramente a única condição a priori possível de uma objetividade verdadeira e criadora da totalidade, mas também eleva essa totalidade, o romance, a forma representativa da época, na medida em que as categorias estruturais do romance coincidem constitutivamente com a situação do mundo. (LUKÁCS, 2000, p. 95-96, grifos nossos).44

Registrada como princípio estrutural, a ironia propicia a unidade formal porque organiza a matéria fragmentária por excelência em um todo organizado pelas escolhas éticas do escritor.

Mas como [...] [a ética da subjetividade criadora] tem que superar a si própria, a fim de que se realize a objetividade normativa do criador épico, e como nunca ela é capaz de penetrar inteiramente nos objetos de sua configuração, nem portanto de despojar-se completamente de sua subjetividade e aparecer como o sentido imanente do mundo objetivo, ela própria necessita de uma nova autocorreção ética, mais uma vez determinada pelo conteúdo, a fim de alcançar o tato criador de equilíbrio. (LUKÁCS, 2000, p. 85).

É na condição de um indivíduo que se encontra em um mundo hostil às ideias que o romancista efetua as escolhas éticas componentes da criação da realidade do romance, razão pela qual a realidade referencial pode ser denegada em prol da primazia da realidade das ideias. Sendo a abstração considerada o fundamento da forma romance, a existência da totalidade no construto é ameaçada quando a subjetividade se mostra como vontade de objetividade, o que implica na exacerbação da abstração e no risco de a objetividade ser solapada. Daí o que prevalece é a expressão da subjetividade.

44 Ao discorrer sobre a mudança conceitual pela qual passa a ironia no pensamento lukacsiano, Arlenice Almeida

da Silva (2007, p. 67) registra que, na abordagem feita em Teoria do romance, ao contrário do que ocorre nos textos do jovem Lukács, à ironia é concedido “[...] o estatuto de uma categoria conceitual central da forma romanesca [...]; ela não é mais indício de uma ausência de formalização, mas a configuração que possibilita ao romance ser a forma representativa de uma época inessencial e vazia, e de uma subjetividade que foi a seus limites”.

Os Frühromantiker perceberam que a doutrina-da-ciência fichtiana ressaltou no trabalho do filósofo/do cientista a capacidade de criar um todo antecipadamente (a priori da consciência), foi, principalmente, a partir dessa premissa que Schlegel e Novalis formularam a teoria da poesia romântica, estabelecendo uma via de mão dupla para o transcendental, conforme já explanado no capítulo primeiro. Neste sentido, na Teoria do romance, a terminologia “autocorreção ética” compreende a reelaboração realizada pela autoconsciência no movimento transcendental observado na composição poética, ou seja, a “objetividade normativa do criador épico” tem como invólucro a crítica da exposição formal: a ironia romântica.

A ironia impede que o sistema abstrato conformador dos elementos do romance obstrua a totalidade, que a forma se efetive como “[...] transcendência rumo ao lírico ou dramático, ou como o estreitamento da totalidade em idílio, ou por fim como o rebaixamento ao nível da mera literatura de entretenimento” (LUKÁCS, 2000, p. 70).

No capítulo primeiro, a explanação da junção de poesia e filosofia na elaboração da ironia romântica destacou o aspecto metamórfico da individualidade que, por sua vez, potencializa e amplifica a reflexão crítica, razão pela qual essa operação multiplicadora incorpora o caráter de dinâmico da história. Desse modo, a afinação objetiva propiciada pela ironia à abstração envolvida na subjetividade criadora está relacionada à sintonia da ironia romântica com a história em processo, coincidindo, portanto, com a principal característica da forma romance, esta, “em contraposição à existência em repouso na forma consumada dos demais gêneros, aparece como algo em devir, em processo” (LUKÁCS, 2000, p. 72).

Na Teoria do romance, embora a crítica lukacsiana se oriente na direção da desilusão contida no romance do romantismo, o pensador húngaro discerne o teor dessa desilusão da atuação da ironia, já que esta pode ser percebida como ordenadora da descontinuidade heterogêneo-contingente. Assim, a tensão entre finito e infinito constitutiva da ironia romântica permeia a questão do tato criador de equilíbrio, cuja problemática é propiciar maior independência das partes no que concerne à correlação das mesmas no todo, objetivando sobretudo não rompê-lo.

Em relação à desilusão contida nos romances do romantismo, a evidência da derrota torna-se pressuposto da subjetividade. Ou seja, do ponto de vista composicional, a subjetividade criadora atém-se somente ao polo negativo, perdendo a capacidade de configurar a totalidade, portanto, de também abarcar o corrente da vida.

A vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida e o escritor dessa vida como uma obra de arte criada. Essa dualidade só pode ser configurada liricamente. Tão logo ela seja inserida em uma totalidade coerente, revela-se a certeza do malogro: o Romantismo torna-se cético, decepcionado e cruel em relação ao mundo e em relação a si mesmo; o romance do sentimento de vida romântico é o da criação literária desiludida. (LÚKÁCS, 2000, p. 124).

Na expressão dessa subjetividade, a falta do tato criador de equilíbrio provoca a dissolução da própria forma, isto é, a dissonância constituinte do romance esmorece para dar lugar ao lirismo unilateral, impregnando a negatividade na subjetividade criadora. O obscurantismo contraposto à positividade integrada pela vida impede a atuação da ironia, já que o romantismo da desilusão faz com que o tempo seja o elemento responsável pelo perecimento da poesia, ao contrário da configuração realizada através da “autocorreção ética”, que preserva a plenitude da vida – seu amadurecimento frente à derrota já sabida.

Isso porque o tempo é a plenitude da vida, ainda que a plenitude do tempo seja a autossuperação da vida e, com ela, do próprio tempo. E o positivo, a afirmação expressa pela forma do romance, para além de todo desalento e tristeza de seus conteúdos, não é apenas o sentido a raiar ao longe, que clareia em pálido brilho por trás da busca frustrada, mas a plenitude da vida que se revela, precisamente, na múltipla inutilidade da busca e da luta. (LUKÁCS, 2000, p. 130).

Lukács interpreta a plenitude do tempo como autossuperação da vida, implicada nesse processo a autoironia. Portanto, na teoria lukacsiana sobre o romance, a ironia continua a vigorar como princípio estrutural – assim como a ironia romântica dos primórdios do romantismo – responsável pelo pulso da forma. Nesse sentido, embora acionada através da relação do romance com a épica, a compreensão que Lukács tem da ironia é próxima da formulação de Benjamin sobre a poesia romântica, pois, a poesia e a prosa/o romance são agentes de intensificação da experiência humana, tornando-se “um processo de realização infinito e não um simples processo de devir” (BENJAMIN, 2011, p. 98). Nota-se aí a vocação de multiplicar da ironia, na intensificação e potencialização percebidas na “múltipla inutilidade da busca e da luta”, que não faz da derrota um empecilho para a vontade de transformar o mundo.

Somos cientes do prefácio escrito em 1962, no qual Lukács (2000) sublinha a ingenuidade do autor de Teoria do romance em relação ao desejo de ver transformado o mundo, por isso mesmo, fizemos questão de multiplicar a derrota nesta redação, a entendendo como rota-de-luta.

Em outro prefácio (1937), Lukács (2011, p. 32) menciona Lenin para esclarecer o movimento realizado na elaboração da teoria do romance histórico: “[...] apropriar-se de tudo que o desenvolvimento anterior tem de valioso e trabalhá-lo de maneira crítica”. Partindo da obra de Walter Scott, Lukács estabelece uma linha de raciocínio para registrar uma inversão: a literatura influenciar uma nova concepção de história. Em O romance histórico, Lukács critica o romantismo reacionário, do qual Chateaubriand é a figura icônica, por produzir romances pseudo-históricos que realçam o herói individual e a cor local em detrimento da autenticidade histórica e do herói médio representante das forças históricas em contradição.

Lukács discorre sobre a obra de Scott ter influenciado os pensadores do período da Restauração, motivo pelo qual O romance histórico traz para o centro da argumentação a noção de progresso, destacando a contradição nela implicada, pois o conceito de progresso é moldado pela visão hegeliana que sublinha o aspecto dinâmico da história. “Hegel [...] vê na história um processo impulsionado pelas forças motoras intrínsecas da história, cujo efeito atinge todos os fenômenos da vida humana, inclusive o pensamento. Ele vê a vida da humanidade como um grande processo histórico” (LUKÁCS, 2001, p. 45). A aquisição dessa consciência histórica baseia-se na atividade do Homem, incorporando as lutas/as revoluções como componente do progresso humano.

Na formulação do modelo clássico do romance histórico scottiano, três etapas da consciência histórica são referidas: em Scott, o desenvolvimento pós-revolucionário na Inglaterra; em Balzac, as lutas da Revolução de 1830; em Tolstói, após 1848, a ficcionalização da sociedade burguesa contemporânea. Antes de 1848, a formulação histórica da ideia de progresso levou à elaboração conceitual do caráter contraditório do progresso humano, isto é, essa ideia de progresso preservou, de certa maneira, a dialética das forças históricas em ação. Após 1848, a ideologia dominante da burguesia liberal manteve a linha de força do progresso, entretanto, dela será suprimido o elemento da contradição, fazendo com que sua formulação histórica consista em uma evolução linear, ou seja, o passado não é mais apreendido como pré-história do presente.

Lukács (2011, p. 41) observa o desenvolvimento do progresso culminar “[...] no juízo crítico sobre as condições econômicas e as lutas de classe”. Nesse sentido, a literatura de Scott descortina a dialética das forças históricas em ação, visto que a ficcionalização do passado figura as revoluções responsáveis pelo andamento do tempo presente. A tendência observada nos romances scottianos “é apresentar e defender o progresso, este é cheio de contradições, cuja força propulsora e base material é a contradição viva das forças históricas em luta umas contra as outras, a oposição das classes e das nações” (LUKÁCS, 2011, p. 73).

Apesar de Walter Scott ter adotado a mesma temática eleita pelo romantismo, o realismo apresentado no modelo scottiano de figuração do passado contrapõe-se ao romance do romantismo; a perscrutação da Idade Média na obra scottiana apresentou um modo de figuração distinto, apresentando dois pontos principais: o herói mediano construído pela perspectiva sócio-histórica e a autenticidade histórica. O sentimento de autenticidade histórica é percebido através das especificidades “[...] da vida psicológica de [determinada] época não por meio da análise ou da explicação psicológica de seus conteúdos mentais, mas pela ampla figuração de seu ser, pela demonstração de como as ideias, sentimentos e modos de agir crescem a partir desse solo” (LUKÁCS, 2011, p. 69).

Cultivando uma visão de mundo conservadora, Scott percebe, no declínio da comunidade gentílica, a contradição viva, a interação entre “alto” e “baixo”, na qual o heroísmo é deslocado para o segmento “baixo”. Isso significa que o romancista retira o protagonismo das personagens históricas principais (reis, nobres, etc.) para dá-lo a personagens não principais, geralmente inventadas. Desse modo, a interação entre “alto” e “baixo” conforma a totalidade da vida nacional, expondo, através das personagens centrais, por exemplo, Gurt e Wamba, do romance Ivanhoé, tanto o lado positivo quanto o negativo da luta em curso.

Já o romantismo reacionário mobilizou o herói individual e o conceito de cor local: “Ele [Chateaubriand] e os outros pseudo-historiadores da reação fornecem um quadro idílico e mentiroso da Idade Média. Tal concepção histórica da Idade Média torna-se crucial para a figuração da época feudal no romance romântico do período da Restauração” (LUKÁCS, 2001, p. 42). Portanto, a investigação realizada em O romance histórico sublinha o período da Restauração no que diz respeito às concepções de história progressista (identificada na obra de Scott) e reacionária (o romantismo encabeçado por Chateaubriand); não é mais o lirismo unilateral do romantismo da desilusão o foco da crítica lukacsiana, e sim a concepção de progresso observada no arranjo ficcional de determinada época da história.

Destarte, quando Lukács evoca o ensinamento de Lenin para ilustrar o movimento realizado na teorização acerca do romance histórico, ele seleciona o que considera valioso objetivando discorrer criticamente sobre a instituição de uma linhagem do modelo clássico do romance histórico. O já referido Os noivos, de Alessandro Manzoni, é considerado por Lukács o continuador do modelo clássico scottiano. Por quê?