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As diferenças do discurso de fundamentação de validade procedimentalista para o discurso jurídico de fundamento de validade positivista já foram suficientemente apresentadas no terceiro capítulo. Aqui cumpre evitar repetições desnecessárias e apenas destacar os pontos em que Habermas, Alexy, Dworkin e Günther vão além dos apontamentos de Heidegger e Gadamer, contribuindo para a interpretação do direito.

O debate com Gadamer, visto no segundo capítulo, levou Habermas a concluir que nem todo entendimento consagra verdadeiro consenso (In: HABERMAS, 2009, p. 333), livre do que denunciou como ideologia incutida na linguagem e formas de coerção (2009, p. 265-266). Nem mesmo toda comunicação pode ser considerada entendimento mútuo (HABERMAS, 2012b, p. 529). Consequentemente e reconhecendo o valor da hermenêutica, Habermas qualifica o acordo na linguagem com exigências pragmáticas que afastariam a coerção do acordo discursivo, quais sejam, as condições ideais da situação discursiva (1), cuja formulação atual exige: (a) publicidade da situação discursiva e inclusão total de todos os envolvidos; (b) equidade de direitos de comunicação; (c) vedação á coerção, permitindo que prevaleça apenas o peso do melhor argumento; e (d) a probidade dos participantes da situação discursiva, que se apresentem sinceramente dispostos a alcançar um entendimento (HABERMAS, 2004, p. 46). O filósofo e sociólogo sustenta essas condições em sua teoria discursiva da verdade que se aplica às pretensões de correção de modo que a validade de proposições normativas está condicionada à justificabilidade racional comunicativa (2004, p. 53), não apenas situada na linguagem, mas também em sua dimensão pragmática (2004, p. 219). Tais exigências são posicionadas no contexto do agir comunicativo que, em suma, exige dos sujeitos condições igualitárias na comunicação em “busca cooperativa da verdade” (HABERMAS, 2012b, p. 193-194).

Nesses termos, a concepção de interpretação de Kelsen se mostra ainda mais insustentável, não apenas por ser fundada na objetividade e não na intersubjetividade da linguagem, mas por não se pautar pelo acordo na linguagem e muito menos pelas condições ideais da situação discursiva. O discurso positivista, então, sob o falso manto da objetividade impede a tematização dos pressupostos da atribuição de sentido à norma e, perpetuando ideologias, priva o direito de qualquer possibilidade de legitimação.

A partir da teoria do discurso de Habermas, Alexy (2005) esboça as formas e regras da argumentação prática geral rumo à aceitabilidade racional comunicativa e, associando-as à institucionalização do direito por razões funcionais, deriva as formas e regras da argumentação jurídica. Dentre tais formas e regras estão os argumentos de interpretação genético, histórico, comparativo, sistemático e teleológico e, note-se, argumentos semânticos e práticos gerais (2005, p. 229-230). Infere-se disso não apenas a tematização de argumentos morais, políticos e de outra ordem, mas também que mesmo a definição semântica do sentido deve ser objeto de consenso argumentativo.

Dworkin defere atenção especial à compreensão do direito e, se sua acusação a Hart de inadmitir princípios não se aplica a Kelsen (TRIVISONNO In: TRIVISONNO;

OLIVEIRA, 2013, p. 199), a crítica sobre da postura interpretativa se aplica à pressuposição de objetividade do sentido presente em ambos os positivistas. O jurista estadunidense, nesse sentido, preconiza atitude interpretativa, pela qual as normas são expressão axiológica e historicamente condicionada (2005, p. 229-230). Nesse sentido, Dworkin parece por em prática o círculo hermenêutico ontológico de Heidegger e Gadamer, o que é ainda encorajado por referências feitas a este pelo jurista estadunidense (2007b, p. 62-63n2, 67). Dworkin esclarece que a interpretação construtiva não é manifestação subjetivista do intérprete, pois atenta para a história incorporada à forma da prática social (2007b, p. 64). Com efeito, há clara semelhança com a compreensão postulada por Gadamer (2008, p. 405), em que o intérprete confronta seus preconceitos e funde seu horizonte linguístico-histórico com o da obra, ambos situados na tradição histórico-linguística. Gadamer também postula a apropriação dos conceitos (2008, p. 371) e, igualmente, Dworkin afirma a necessidade de o intérprete pôr à prova as próprias convicções em face do sentido que concebe a prática com mais nitidez, em sua história (2007b, p. 64). Nesse sentido, a defesa de que a atividade interpretativa está aberta para ser, amanhã, a decisão passível de interpretação, sem prejuízo da convicção de ter encontrado no momento e perante o caso a melhor decisão (DWORKIN, 2007b, p. 272-273, 308), assemelha-se com a situação do intérprete na história dos efeitos (GADAMER, 2008, p. 405). Além das semelhanças, porém, há postulados de Dworkin particularmente elucidativos ao procedimentalismo.

Dworkin afirma que a construção do significado normativo se estrutura por intenção que expresse justificativa geral do direito, definida pelos valores atuais e compartilhados pela subjetividade do intérprete de maneira mais do que consciente apenas (2007b, p. 61-64, 67-69, 71, 81). Tal postulado remete à antecipação da perfeição e à lógica das perguntas e respostas (GADAMER, 2008, p. 483) e não parece excluir a estrutura “como” que Heidegger preconiza (2009, p. 209-210). Afinal, ainda se interpretará a forma simbólica “como” obra, o enunciado “como” norma, o texto do artigo 121, caput, do Código Penal “como” proibição jurídica de cometer homicídio. Dworkin apenas qualifica a associação “como” com a intenção da melhor obra possível em lugar da busca pela coisa mesma em Heidegger (2009, p. 214-215).

A compreensão parte de antecipar a que referência na linguagem se associa a forma simbólica como uma de suas manifestações. Trata-se da compreensão da coisa em si mesma proposta por Heidegger (2009, p. 214-215) e da antecipação da perfeição e pergunta a que o texto pretende responder em Gadamer (2008, p. 483). Segundo Dworkin, a interpretação construtiva atribui à obra a intenção que expresse justificativa geral dos

elementos da forma, segundo os valores atuais e compartilhados pela sociedade de que o intérprete faz parte (2007b, p. 67-69, 71, 81). Esse é o passo inicial da interpretação construtiva e, então, perquire-se qual o sentido associado a tal forma, como um todo, melhor satisfaz a essa referência (DWORKIN, 2007a, p. 83-84, 2007b, p. 64.).

Destaca-se que o acordo discursivo não é mera convenção, algo considerado válido apenas por ser aceito pelos demais (DWORKIN, 2007b, 166). O entendimento mútuo de Gadamer (2008, p. 575) e o consenso livre de coerção em Habermas (In: 2009, p. 330), em Dworkin, são “consensos de convicção” (2), aproximação das posições morais incorporadas pelos membros da comunidade, senso de certo ou errado ancorado em razões substantivas (DWORKIN, 2007b, 166). Nesse caso, qualquer ataque às razões substantivas que justificam a proposição jurídica será um ataque à própria proposição e consubstanciará uma questão jurídica e não além do direito (DWORKIN, 2007b, 166). Ademais, mesmo o reconhecimento da univocidade ou vagueza e ambiguidade da expressão verbal da lei depende de convicções (DWORKIN, 2007b, p. 419-421). Não se trata de supor que há uma ordem moral homogênea na sociedade, mas apenas que o acordo discursivo a que se efetivamente chega a termo seja ancorado nas convicções práticas e substantivas dos intérpretes postas à prova e aproximadas no diálogo. Para isso se parte de premissas mais ou menos aproximadas pelo compartilhamento de experiências comunicativas na comunidade, incorporadas no discurso jurídico como princípios extraídos das decisões políticas e jurídicas do passado com as quais a interpretação deve ser coerente (DWORKIN, 2007b, p. 115).

A coerência, em Dworkin, apresenta a dimensão de adequação, que exige da conjectura interpretativa “poder explicativo geral” com relação aos elementos da obra, no caso, do direito (2007b, p. 277), de modo a só atribuir a eles o que outros intérpretes não considerariam impossível (2007b, p. 277). A segunda dimensão da coerência em Dworkin é a de “justificação” (2007b, p. 286) que exige a melhor concepção da obra, considerados todos os aspectos da questão (2007b, p. 278) e que é controversa por conduzir à única resposta correta. Ao menos a primeira dimensão, porém, parece ser aceita de modo geral entre procedimentalistas e mesmo Alexy exalta a coerência e critica apenas a vagueza da noção para determinar a única decisão correta (2010, p. 133-134), o que pode ser compreendido como objeção apenas à primeira dimensão. A própria crítica literária em que Dworkin se inspira para propor a coerência, não parece adotar unanimemente a segunda dimensão proposta pelo jurista estadunidense, visto que Eco propõe um critério apenas negativo (2001, p. 168). De qualquer forma, os próprios limites do que é mais ou menos coerente também são convicções subjetivas incorporadas de forma gradual e até inconsciente na formação do

intérprete, são construídos na histórica política da comunidade e, com isso, são aproximados na forma de consensos (DWORKIN, 2007b, p. 305-307). As convicções consensuais, que Dworkin consolida na forma de paradigmas são, pois reinterpretadas uma a uma, apoiando-se nas demais (DWORKIN, 2007b, p. 169). Não se vislumbra motivos para que a mesma reconstrução pontual e relacional não ocorra com os elementos da antecipação em abstrato do sentido do ordenamento em situações discursivas teóricas, como Alexy consolida os consensos.

Gadamer já salientava que toda compreensão é aplicação – e, nesse ponto não distingue a aplicação a casos abstratos ou genéricos, da aplicação em casos concretos –, de modo que cada uso de linguagem participa para o desenvolvimento dos conceitos:

Mas o uso das palavras habituais não se origina de um ato de subsunção lógica pelo qual algo individual é submetido à generalidade do conceito. Recordamos, antes, que a compreensão implica sempre um momento de aplicação, realizando assim um constante e progressivo desenvolvimento da formação dos conceitos. O intérprete não se serve das palavras e dos conceitos como o artesão que apanha e deixa de lado suas ferramentas (GADAMER, 2008, p. 522).

No mesmo sentido, mas agora já delimitando a aplicação a casos concretos, Dworkin sustenta que as divergências jurídicas não ocorrem em casos limítrofes, mas em casos experimentais ou essenciais em que se põe em questão a própria definição correta do sentido normativo e do que se entende por norma segundo as convicções também políticas e morais dos intérpretes (DWORKIN, 2007b, p. 49-52). Com isso, e a ilustração em casos concretos que as divergências entre juristas versam sobre a concepção teórica do direito (2007b, p. 56), Dworkin refuta as concepções do direito como questão de fato, semânticas e convencionais, o que também se aplica a qualquer concepção não interpretativa, como a de Kelsen e sua suposta objetividade dos sentidos normativos.

Com efeito, a concepção de Dworkin do direito como integridade, supera os pontos da atitude interpretativa aqui destacados. Conforme visto no segundo capítulo, a integridade implica ainda a adoção de paradigmas, a conjugação específica de valores políticos de liberdade, igualdade e devido processo legal, a concepção da comunidade de princípios e outras noções. Porém, a tentativa de traçar apenas os elementos indispensáveis da interpretação procedimentalista se satisfaz com a noção de consensos de convicção e casos exemplares de certa forma extensíveis às demais teorias procedimentais, pois inerentes ao consenso pragmático de linguagem.

Günther, por sua vez, acresce ao discurso jurídico procedimental a separação das dimensões de fundamentação e aplicação com a consequência especialização institucionalizada neste discurso que pressupõe as normas válidas e questiona sua adequação ao caso pela consideração imparcial de suas particularidades (2004, 69-70). O jurista critica, contudo, a hermenêutica por negligenciar a importância de um procedimento de determinação do sentido da norma por sua adequação ao caso, contentando-se em afirmar que isso ocorreria diante da situação em um círculo inevitável entre o texto e o contexto situacional (2004, p. 398-399). Segundo afirma “[...] entre a fundamentação situacionalmente independente de uma regra e o seu descobrimento situacionalmente dependente, ainda há, porém, o estágio particularmente autônomo da justificação da sua adequação situacional” (GÜNTHER, 2004, p. 400). Günther também julga insuficiente a vaga referência à prudência – phrónesis de Aristóteles – a que Gadamer recorreu (GÜNTHER, 2004, p. 400). Günther prefere recorrer a uma teoria política coerente como suporte, o que encontra em uma leitura procedimental dos conceitos de princípios e integridade em Dworkin (2004, p. 404).

A caracterização da interpretação procedimentalista, contudo, não precisa necessariamente encampar a integridade. O recurso à integridade decorre da associação da igual consideração e respeito aos cidadãos proposta por Dworkin com a imparcialidade, esta na qualidade de afetação da versão de Habermas do princípio da universalidade à dimensão de aplicação. A concepção procedimentalista, porém, se satisfaz com a orientação do processo discursivo pela imparcialidade na consideração dos aspectos do caso concreto (3), que pode se manifestar de formas diversas nas várias nuances teóricas procedimentais, sendo a integridade apenas uma delas. Se Alexy, por exemplo, não secciona fundamentação e aplicação, não deixa, por isso, de se orientar pela universalidade (2005, p. 218-226, 229-244), a qual orienta também a adequação ao caso segundo Gomes Trivisonno (In: GOMES; MERLE, 2007, p. 176) e da qual o próprio Günther deriva a imparcialidade (2004, p. 63).

A interpretação na concepção procedimentalista, portanto, se constitui na compreensão dialogal proposta por Gadamer voltada para o entendimento mútuo na intersubjetividade qualificado por: (a) situar-se na linguagem também em sua dimensão pragmática e antecipar as condições ideais da situação discursiva; (b) ser consenso de convicção acumulado em casos exemplares e coerente com a obra; e (c) se orientar pela universalização e imparcialidade.