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64 c.6 A Crítica do Juízo em Adorno

Como vimos, os momentos conceitual e não-conceitual da experiência não operam de forma independente, mas são sintetizados na experiência, o que vemos através de sua estrutura judicativa, na qual estão em interação sujeito e objeto. Como em Kant e como depois em Hegel, a experiência se desenvolve no âmbito do entendimento, cuja atividade se dá através da conceitualização dos objetos na forma de juízos. Porém, o intuito de Adorno é radicalizar a teoria do juízo, de modo à síntese operada entre sujeito e objeto ou entre conceito e objeto, expressa pelos juízos, não resulte na perda da particularidade dos objetos96.

Contrária a que foi elaborada na filosofia moderna, sua concepção de juízo não envolve a redução e subsunção do objeto a um conceito, mas a atribuição de ser veículo do significado produzido através da coexistência de conceito e não-identidade na experiência. A ideia programática de sua teoria do juízo é que há uma diferença entre conceitos, entendidos também como predicados, segundo sua função comum, e objetos. A dialética negativa “não diz inicialmente senão que os objetos não se dissolvem em seus conceitos, que esses conceitos entram por fim em contradição com a norma tradicional da adaequatio.” (ADORNO, 2009, p. 12). Sua análise prima por detectar quais são as limitações dos conceitos, bem como, por examinar sua função lógica de definição como diferente dos objetos. “Para o conceito, o que se torna urgente é o que ele não alcança, o que é eliminado pelo seu mecanismo de abstração, o que deixa de ser um mero exemplar do conceito.” (ADORNO, 2009, p. 15). Para Adorno, é preciso corrigir o equívoco do representacionalismo quanto ao tipo de conhecimento realizado por juízos, através de uma reelaboração radical da função dos conceitos.

Adorno se contrapõe à tradição anterior que pensa a relação sujeito-objeto a partir de sua identidade. Nessa via, tal forma de operar essa relação partia de uma noção de “conceito subjetivo” expresso por um modo de predicação identitário, por meio de proposições afirmativas (assertoric propositions). Esse é o caso de proposições que operam por meio da “cópula” (o conectivo “é” em dada proposição “S é p”), o elemento

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básico pelo qual se opera a síntese de sujeito e predicado, que se torna, assim, o veículo da identidade: “A cópula diz: é assim, não de outro modo; o ato da síntese por ela expressa anuncia que ele não deve ser diferente: senão, a síntese não seria realizada plenamente.” (ADORNO, 2009, p. 129).

De certa maneira, esta também é uma crítica dirigida a Hegel, quanto a seu “desinteresse” pelo particular, não-conceitual e o individual (ADORNO, 2009, p. 15), embora também se refira à tradição epistemológica moderna em geral, como manifesto desde “A Atualidade da Filosofia” 97. Como dito, em Adorno o âmbito conceitual não é rudimentar, mas é constitutivo na relação com os objetos, que somente adquirem significado nessa relação, e de forma alguma independente dela. No caso da posição que parte de uma identidade “de facto”, assumir que conceitos têm significado independentemente dos objetos, como algumas formas de idealismo representacional fazem contra a tradicional concepção do objeto como fonte de significação, ela incorre em hipóstase do conceito, justificando sua primazia semântica: “A necessidade da filosofia de operar com conceitos não pode ser transformada na virtude de sua prioridade, assim como a crítica dessa virtude não pode ser inversamente transformada no veredicto sumário sobre a filosofia.” (ADORNO, 2009, p. 18).

Por sua vez, Adorno reivindica que juízos significativos expressam tanto identidade quanto não-identidade, diferença entre conceito e objeto. Como frisa O‟Connor, essa não-identidade é resultado interno ao processo de significação, ao âmbito semântico, “não uma alternativa mística à predicação” (O´CONNOR, 2004, p. 67). Esse momento de não-identidade - produto de nosso engajamento físico, corpóreo com o mundo, nossa experiência somática ou sensorial -, que é parte do juízo entre conceito e objeto, tem sua “força semântica” enquanto é “o mais”, aquilo que excede o limite de atuação do conceito, tal algo “mais” - assim como a “mais-valia” explorada nas relações de trabalho na forma de vida capitalista -, a que se deve fazer justiça, é imanente à estrutura semântica do procedimento judicativo: “Aquilo que é, é mais do que ele é. Esse mais não lhe é anexado de fora, mas permanece imanente a ele enquanto aquilo que é reprimido dele.” (ADORNO, 2009, p. 140).

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Nesse sentido, Adorno quer reabilitar a função dialética do conceito, através de um procedimento já conhecido do idealismo alemão, a reflexão: “Sua automeditação [Selbstbesinnung] sobre o próprio sentido [Sinn] conduz para fora da aparência do ser- em-si do conceito enquanto unidade do sentido.” (ADORNO, 2009, p. 19, acréscimo nosso). Em uma proposição predicativa da lógica formal, a predicação identifica o particular como subsumido a, e instanciação de, um universal (“S” é um caso de “p”), mas ao mesmo tempo indica que ele é irredutível ao universal98. Dito de outro modo: “O momento da não-identidade no juízo identificador é facilmente discernível, na medida em que todo objeto singular subsumido a uma classe possui determinações que não estão contidas na definição de sua classe.” (ADORNO, 2009, p. 131).

Isso manifesta a característica ambivalente inescusável da predicação, enquanto expressão e resultado da conceitualidade e não-conceitualidade inerente aos objetos, que excedem em sua particularidade a conceptualização dos juízos, pretensamente totalizantes99. A preocupação da dialética negativa é mostrar, pois, a possibilidade de uma experiência não-reduzida, não-reificada entre os indivíduos, ao superar o pensamento identitário que opera através de juízos constituídos por propriedades universalizáveis, a predicação no sentido tradicional, responsáveis pela supressão da particularidade100.

A leitura de O‟Connor, entretanto, por ter um direcionamento diferente do que temos aqui, não se debruça tanto sobre a contribuição da dialética hegeliana como central à filosofia adorniana para a realização de sua crítica ao que se conhece hoje como “tese semântica do idealismo”. Para esse fim, lançaremos mão do principal autor que trabalha essa crítica, Jay Bernstein, que inclusive discute o tema diante de autores contemporâneos que procuram revisar as leituras tradicionais acerca do texto hegeliano ou que têm o intuito de reatualização da filosofia de Hegel, como o tinha Adorno.

98 Cf. O´CONNOR, 2004, p. 68. 99 Cf. ADORNO, 2009, p. 19. 100

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