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3.3 A crítica de Negri a Agamben

No documento UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO (páginas 160-164)

Como forma de expandir o debate que, durante todo o percurso desta dissertação, tentamos interpretar, decidimos incorporar algumas críticas que Antonio Negri conferiu ao livro de Agamben “O uso dos corpos”. A única fonte que temos dessas críticas é um pequeno artigo publicado por Negri, no jornal italiano Il Manifesto em 19 de novembro de 2014, e que nos chegou por meio da tradução que encontramos através do site da editora brasileira do livro em tela. Apesar de ser um texto sintético, Negri aponta vários problemas que são encontrados ao final do projeto “Homo Sacer” sem, contudo, aprofundá-los suficientemente bem para que possamos nos certificar do sentido apropriado das suas críticas. Mas, a despeito de ser sucinto, o texto consegue demonstrar a gravidade dos problemas a serem enfrentados, inclusive o seu título já afirma um deles: “A inoperosidade é soberana”. Sem deixar claro o que isso significa de fato, optamos por expor outros problemas revelados por Negri.

Uma das questões iniciais argumentadas por Negri se incorpora ao fato de que, mesmo com os cuidados tomados por seu colega italiano, a inoperosidade pode causar um estado de profundo inércia e apatia sobre os rumos políticos de uma comunidade. Para ele, a teoria de Agamben configura-se por meio de uma “ausência de movimento”, o que induz Negri a pensar que, ao final do projeto agambeniano, “[…] só se tem a potência destituinte, a convicção de que não há alternativa para uma fuga no enfrentamento com o poder. O poder é dominação.” (NEGRI, 2017). Assim, não basta a Negri tornar inoperosa toda forma de poder, mas há que se colocar em posição de confronto permanente, para sempre permitir a manifestação da potência. Essa talvez, em nossa perspectiva, seja uma das críticas mais interessantes que pode ser formulada ao pensamento de Agamben. Umas das dificuldades que enfrentamos ao interpretar a sua teoria foi o fato de que o autor não deixava claro o modo como a inoperosidade é alcançada efetivamente. Com efeito, como fazer para desativar o direito, torna-lo inoperoso? Como colocar em operação a inoperosidade? Como fazer dela uma experiência de vida?

A segunda crítica refere-se ao modo como Agamben interpreta a teoria do poder constituinte em Negri. Para este filósofo, a crítica feita ao seu estudo não é de todo correta. Isso porque Agamben não entendeu a dinâmica no qual está compreendido o poder constituinte. É por se manter em permanente relação com o poder constituído que o poder

constituinte pode, continuadamente, superar o âmbito de aplicação da institucionalização, em vias de sempre retificar a potência da multidão, fortalecê-la:

O poder constituinte é, antes de tudo, luta contra o poder constituído: certo, mas também luta contra si próprio. O poder constituinte é, sempre, desejo, movimento, relação de força. No biopolítico, ele foi reconduzido ao conceito de trabalho vivo, e foi assim colocado numa relação que o torna, ao mesmo tempo, assimétrico a respeito do poder constituído, e decisivo não apenas ao requalificar a realidade deste último, mas também em superar-lhe a determinação. (NEGRI, 2017)

A relação que o poder constituinte mantém com o poder constituído — que, como vimos, está na forma da negação (o poder constituinte nega a instauração do poder constituído) — não é estruturada por meio de um aspecto prejudicial ao poder constituinte, senão, justamente, oposto ao que se imagina: no seu confronto permanente, o poder constituinte sempre pode renovar as práticas que colocam a potência da multidão como uma manifestação, como uma expressão constante e ilimitada. Ao não perceber o fato de que é por meio do confronto, do embate, de lutas por liberdade — lutas essas para as quais não há conclusão, como é o caso da relação entre virtù e fortuna em Maquiavel, entre capital e trabalho em Marx — que a potência e a liberdade se fortalecem, Agamben comete um erro capital na visão de Negri. Isso em razão de que essa luta faz parte da experiência do ser, inscreve-se “ontologicamente na história do ser” (NEGRI, 2017).

Por fim, Negri faz um comentário ácido sobre o resultado do projeto “Homo Sacer” com a publicação de “O uso dos corpos”: “A mim, que sou marxista, essas parábolas agambenianas causam o efeito de assistir a um espetáculo em que alguém pegou o problema e não quer, melhor, não pode mais resolvê-lo.” (NEGRI, 2017). Mesmo assim, apesar de tudo, Negri reconhece a relevância do trabalho de Agamben — assim como o colega reconhece o seu — uma vez que o filósofo consegue aprofundar nas questões ontológicas, definindo o atual estágio em que se encontram as pesquisas nesse campo.

(In)conclusão

Ao longo de todo o percurso que fizemos estava no centro do debate expor alternativas, caminhos e possibilidades para uma nova forma de concebermos a política e o direito. O primeiro conceito central que procuramos investigar foi o de potência, o qual é vinculado tanto ao poder constituinte quanto à potência destituinte. Apesar da diferença entre Espinosa, Negri e Agamben na formulação desta noção — que se comunica da ontologia para a política —, o que se procura é um âmbito no qual a liberdade e, portanto, a felicidade seja um modo de viver, uma experiência de vida corriqueira.

Para abordar uma concepção inovadora da política e do direito, tivemos que pesquisar autores que se colocavam em contraposição à tradição e dogmática que impera nessas áreas. Por essa razão, não analisamos autores que se tornaram a base do sistema que hoje existe, como é o caso de Hobbes e Hegel, dentre outros — mesmo que outros tenham sido observados meramente enquanto ponto de crítica, como foi o caso de Sieyès e, de maneira menor, de Kelsen. De todo modo, a abordagem que fizemos teve como única finalidade a de evidenciar as consequências negativas que elas manifestam no mundo social.

Ao trazer a potência de Espinosa e as configurações que Negri e Agamben lhe deram, o que tentamos mostrar é a formulação de um outro paradigma, de um panorama que se refere ao presente, à criatividade dos seres humanos e sua vivibilidade. Em Negri vimos que é por meio do poder (potência) constituinte da multidão — que nunca se esgota no ato, mas sempre se renova —, que libera as múltiplas subjetividades dos sujeitos, que podemos expressar uma nova práxis política. É alinhado à potência que o poder constituinte pode, de fato, se exercer incessantemente. Para inovar a interpretação sobre o poder constituinte, Negri se utiliza de pensadores que compõem a “via maldita da metafísica política moderna” (NEGRI, 2002, p.193), como é o caso de Maquiavel e Marx. O propósito de Negri em sua obra particular sobre o poder constituinte era o de abrir as possibilidades, os caminhos, para a modernidade superar os problemas que nos afligem hoje em dia, como é o caso da representatividade e da forma do trabalho alienado. Por isso, o que motivou a sua pesquisa era “[…] conduzir à análise da potência do homem contemporâneo” (NEGRI, 2002, p. 56) de modo investigar toda a criatividade produtiva, toda a potência, que é inerente ao ser humano.

De outra forma, Agamben também procura investigar a política e o direito — colocando a potência como conceito central da sua pesquisa — através de todo o projeto “Homo Sacer” e demais livros sobre o tema. A estratégia de Agamben foi, efetivamente, investigar a estrutura vigente para, posteriormente, conseguir apontar uma saída, uma alternativa aos problemas político-jurídico que enfrentamos. Por isso, a pesquisa sobre as máquinas antropológica, jurídico-política e econômico-governamental torna-se fundamental, uma vez que é apenas sabendo a configuração de um problema — que aqui aparece na forma da estrutura da archè, da ex-ceptio — que podemos nos posicionar corretamente para tentar supera-lo. Após expor essa estrutura, Agamben consegue enfrentar a relação de exceção por meio da potência destituinte. Se na estrutura da relação de exceção temos poder, obra, propriedade, soberania e vida nua, na arquitetura da potência destituinte teremos potência, inoperosidade, uso, liberdade, forma-de-vida.

Com a potência destituinte o que está em jogo não é a destruição e substituição do funcionamento das máquinas, mas sim a desativação do seu poder de operar. É assim que, por exemplo, Agamben irá compreender o papel do direito na conjuntura da “política que vem”. Ele escreve em “Estado de exceção”: “Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele.” (AGAMBEN, 2007a, p. 98). Com a potência destituinte a liberdade do ser humano aparece como manifestação intrínseca nas formas-de-vida, algo inseparável da experiência de vida que viveremos.

Ao fim e ao cabo, mantendo coerência com o que viemos fazendo em todo esse percurso, não podemos deixar esse trabalho concluído. Assim como para Negri e Agamben, poder constituinte e potência destituinte, respectivamente, expressam uma potência sempre atual, sempre aberta, nós também deixaremos esta pesquisa em aberto, para que a potência de nosso pensamento não se limite ao que aqui foi escrito, mas que se torne um estímulo para continuarmos investigando a política e o direito, propondo uma nova experiência de ambas, a fim de possibilitar, cada vez mais, a expressão da nossa liberdade e, em decorrência, da felicidade.

No documento UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO (páginas 160-164)