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Capítulo IV (Re)Pensar os Cuidados na Saúde: Os Cuidados Paliativos

4.5. Crítica “Paliativa”: reorientações no processo de cuidar e

Os cuidados a ter com o doente em fase terminal estão principalmente centrados no acompanhamento e conforto ao doente ao longo do período que ainda lhe resta até chegar a sua morte, aliviando as dores e o sofrimento do mesmo. Como refere Pacheco (2002), é necessária uma mudança ao nível das mentalidades nos profissionais de saúde, a fim de reconhecerem o real sentido desta especificidade médica (que nem sempre terá o propósito de curar). Normalmente, o que se segue é o médico “abandonar” o doente por já não haver mais nada a fazer, ou por outro lado, adoptar uma atitude designada por “obstinação

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terapêutica”32.“De qualquer modo, se o doente não tiver dor, se não lhe impuserem

sofrimentos, se estiver rodeado por aqueles de quem gosta, se sentir o apoio de todos os que o rodeiam e se sentir que não se tornou um “peso para os outros”, então talvez possamos dizer como M. Renaud “Sentiu-se bem com ele próprio, sentiu-se bem na sua relação com os outros, está em plena qualidade de vida” (Pacheco, 2002: 75). A qualidade de vida centra-se

exactamente na sua satisfação e realização pessoal.

Segundo a Carta dos direitos do doente terminal, publicada em 1975:

“A Declaração de Lisboa consagra alguns dos principais direitos do doente que a profissão

médica deve respeitar, entre os quais salientamos o direito a escolher livremente o seu médico, a aceitar ou recusar tratamento após ter recebido informação adequada, a receber ou prescindir de conforto espiritual ou moral e ainda o direito a morrer com dignidade” (Pacheco,

2002: 88).

Os cuidados paliativos, defendendo a abordagem integral do doente – em todos os aspectos – promovendo a dignidade e autonomia, e incorporando a família num trabalho de equipa, onde o cuidado ao doente revela ser personalizado e continuado, poderão ser como que o recomeço de uma nova forma de praticar a medicina – “reumanização da medicina” (Barbosa, 2003). “ (…) os médicos dos cuidados paliativos representam uma sub-população de médicos

diminuta no quadro dos inscritos na respectiva Ordem” (Martins, 2010: 130). Urge, deste modo,

explanar que a Ordem dos Médicos não reconhece qualquer especialidade à medicina paliativa no nosso país. “Ou seja, muito embora existam médicos a exercer medicina em unidades de

cuidados paliativos ou em equipas intra-hospitalares e domiciliárias de apoio em cuidados paliativos, definidas organicamente nos organismos tutelados pelo Ministério da Saúde, mas também em unidades privadas ou assistenciais, a Ordem dos Médicos não reconhece na medicina paliativa uma especialidade médica, tão-pouco uma competência” (Martins, 2010:

130). Posto isto, é expectável que os médicos de cuidados paliativos lamentem ainda não serem reconhecidos como especialidade e critiquem as especialidades “exageradas” de muitos dos seus colegas de cuidados agudos.

A crítica paliativa é importante para esta investigação, pois denota a particularidade de os médicos de medicina curativa não prestarem a devida atenção a outros aspectos igualmente importantes do doente que não meramente a um nível físico, nomeadamente questões relacionadas com a dependência e com necessidades pessoais. Esta crítica denuncia o não reconhecimento de todas as dimensões do doente de uma forma holística – como um todo. Existe uma confrontação entre a medicina moderna altamente racionalizada e tecnológica e as necessidades e problemas subjectivos dos doentes no domínio da medicina paliativa – sobretudo no particular domínio aqui elegido, o dos cuidados em doentes terminais. Esta crítica centra-se no reconhecimento de que existem outras formas da existência humana que precisam de atenção, de que o corpo é mais do que uma entidade biológica e de que a doença é mais do

32 Insistir numa cura com meios técnicos já por si só dolorosos para o doente numa fase em que isso já não

faz qualquer sentido. Quando a cura já não é de todo possível, utilizam-se igualmente todos os meios disponíveis numa busca incessante para salvar o doente, apenas lhe prolongando o sofrimento.

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que um ataque instrumental a esse corpo. “Neste sentido, trata-se de uma crítica que se pensa

a si mesma como humanista, no sentido em que pretende recentrar os cuidados, pelo menos aos doentes terminais, na pessoa, por contraposição ao indivíduo portador de doença, figuração notavelmente característica de uma medicina altamente tecnológica e científica”

(Martins, 2010:59). Estes médicos críticos argúem que os seus colegas da prática amplamente biomédica estão firmes na sua ideia de curar e aniquilar qualquer tipo de doença que se lhes apareça, pois essa é uma característica daquilo que lhes foi ensinado em formação académica, o que faz com que se “esqueçam” das doenças ditas “terminais” (Martins, 2010).

A crítica dos médicos de cuidados paliativos centra-se sobretudo na tal falta de humanização para com os doentes e de uma certa obstinação por parte da medicina, em torno da cura e da doença, que esquece o doente enquanto ser global, enquanto pessoa. Segundo os críticos de cuidados paliativos, a medicina moderna, na busca de um fervor incansável de curar uma determinada doença, recalca (ou deixa para segundo plano) o real sofrimento do doente em fase final de vida, perdendo-se a especificidade do acto médico a doentes que já não se podem curar. Este recalcamento - se assim se pode considerar – é para muitos, um abandono da própria medicina, como a teria definido Hipócrates. Esta crítica de cuidados paliativos, que assenta no facto da medicina moderna apenas valorizar o prolongamento da vida do doente a “todo o custo”, num esforço médico obstinado que radica numa recusa da morte como facto natural da vida e na incapacidade que muitos médicos têm de aceitar a morte como sendo algo natural, é encarada por muitos médicos como sendo um fracasso médico ou mesmo terapêutico (como também o já foi referido anteriormente). Os médicos com o aumento da longevidade e da esperança média de vida, têm a ilusão de deter o controlo sobre a doença, podendo vencer todos os obstáculos e prolongar a vida ao máximo (negação da morte), não pensando sequer em garantir e promover, antes, um final de vida condigno, como refere Neto (in Martins, 2010). Segundo os críticos, o facto de estes médicos não considerarem a morte como um acto natural e de cuidar dos doentes que já não podem ser curados, em seu entender, torna-os incapazes de cuidar desse doente terminal e de não compreenderem o facto de este aceitar a sua morte e assim querer morrer em paz e condignamente. Estes médicos referem que a medicina curativa/preventiva luta contra a doença e tudo começa na formação que é dada nas faculdades de medicina, que ainda prevalece por ser demasiado técnica e pouco humanista (como já foi referenciado atrás). Este modelo biomédico (dominante) faz com que se ignorem os aspectos mais subjectivos e particulares do doente. Para estes críticos, tudo começa na formação em medicina que é fortemente orientada para a cura e para a prevenção no combate à doença. Esta formação não prepara estes jovens médicos para o trabalho com os doentes terminais. Os médicos, por seu lado, não se encontram aptos a responder ao sofrimento interno do doente, défice esse que começa desde logo, nas formações académicas destes profissionais, que não estão socializadas para este tipo de situações. Os doentes terminais deverão ter ao seu dispor profissionais mais centrados no doente que na doença e estar envoltos num ambiente mais humano que tecnológico.

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Neste novo processo em mudança exigem-se novas competências por parte dos profissionais de saúde, para assim melhor garantirem a qualidade de vida a doentes terminais ou dependentes/crónicos, para “avaliar o sofrimento subjectivo de um doente ou a aptidão

para estabelecer com este uma relação interpessoal promotora do seu bem-estar e atenta às suas necessidades” (Martins, 2010: 168). Isto leva a que os profissionais de cuidados paliativos

critiquem a forma de acção médica dos profissionais da medicina chamada industrial, bem como a própria organização dos serviços de saúde, que não têm disponibilizadas as condições básicas para tratar e cuidar (sobretudo) destes doentes.

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