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3. Quem não tem cão, caça com gato – De como a metáfora pode iluminar a compreensão dos

3.3 um pouco mais da Metáfora na semântica

3.3.1 Críticas ao modelo semântico

A discussão dos tratamentos possíveis para a metáfora dentro da pragmática se dá pelo embate travado com os tratamentos mais tradicionais da semântica formal. Por julgarem que os pressupostos teóricos das teorias semânticas as tornam insuficientes para darem conta de determinados aspectos, os pragmaticistas surgem na defesa da incorporação de outros vieses à análise. As críticas desses teóricos se voltam, portanto, ao que é deixado de fora do recorte da semântica formal e que, do ponto de vista deles, deveria ser incorporado. Além disso, alguns ainda procuram demonstrar a inconsistência de certas teorias semânticas, apontando as possíveis falhas.

Levinson (1983), assim como muitos outros pragmaticistas, entende que a metáfora não é um fenômeno que possa ser abarcado pelo viés teórico da semântica formal. Segundo ele,

79 A principal atração dessas teorias é que elas tentam trazer para o interior da semântica standard processos interpretativos, como a metáfora, que não são sempre claramente distintos de processos usuais de compreensão da linguagem cotidiana.

(...) Onde cessa a interpretação literal e começa a interpretação metafórica? (1983:

150)86

Além disso, Levinson aponta que diversos autores (como Wilks (1975), Carling e Moore (1982)) assumem que a linguagem literal possui certa elasticidade que permite que os significados não estritamente literais possam ser “acomodados” – o que seria o caso de sentenças como “O pé da cama quebrou”, por exemplo.

O autor discute ainda o conhecido problema da falta de critério para o mapeamento dos traços do tratamento da “teoria da interação de traços”. Segundo ele, “o processo de mapeamento é não só excessivamente muito limitado, mas também excessivamente determinado para capturar a força metafórica da expressão” (1983:150)87.

Além disso, ele afirma que muitas das coisas que são ditas metaforicamente teriam mais relação com atributos do mundo real (com o contingente) do que com os traços semânticos que poderiam estar relacionados com o foco da metáfora – o caso de metáforas como “Antônio é uma raposa”, por exemplo. Raposas podem ter características como serem matreiras, espertas e, quando metaforicamente falamos delas, ardilosas e perspicazes, mas, seguindo a analogia que ele faz com seu exemplo em inglês, uma raposa não esperta ou não matreira ainda assim seria uma raposa.

Levinson acrescenta:

uma parte importante da força de qualquer metáfora parece envolver o que poderia ser chamado de ‘penumbra conotacional’ das expressões envolvidas, o incidental ao invés das características definidoras das palavras, e conhecimento de propriedades factuais de referentes e ainda conhecimento do mundo em geral. Todas essas questões estão além do escopo de uma teoria semântica, como geralmente é entendida dentro da linguística. (1983:150)88

86 “The main attraction of such theories is that they attempt to bring within the fold of standard semantics interpretative processes like metaphor which are not always clearly distinct from ordinary processes of language understanding. (...) Where does literal intepretation cease and metaphorical interpretation take over?”

87“(...) the feature mapping is both too limited and too determinate to capture the metaphorical force of the expressions.”

88 “An important part of the force of any metaphor thus seems to involve what might be called the ‘connotational penumbra’ of the expressions involved, the incidental rather than the defining characteristics of words, and knowledge of the factual properties of referents and hence knowledge of the world in general. All of these matters are beyond the scope of a semantic theory, as generally understood within linguistics.”

80 Para Levinson, como para outros tantos pragmaticistas, a questão está em saber que tipo de traços são relevantes para o cálculo que os falantes fazem nessa interação. Ou seja, para interpretar “Antônio é uma raposa” é necessária uma explicação que leve em consideração os atributos físicos, etológicos e mesmo metafóricos (como as características das raposas que conhecemos através das fábulas e histórias infantis).

Por fim, o autor aponta um argumento que considera crucial contra a teoria da interação de traços. Segundo ele, “existem metáforas que são intuitivamente parte e parcela do mesmo fenômeno, que não envolvem a anomalia semântica inicial na sentença requerida para deflagrar as regras ‘construcionais’ (regras para transferência de traços)”(1983:151)89. Um exemplo seria, em um contexto no qual duas pessoas jogam xadrez, o seguinte enunciado:

(65) Esse jogo está indo a galope. 90

Essa sentença, proferida nessa situação, poderia tanto significar literalmente que o jogador está atacando o oponente várias vezes (ou apenas com) o cavalo, quanto significar metaforicamente que o jogo estaria indo rápido demais, por exemplo. Levinson aponta que, ainda, poderia significar “interessantemente, as duas coisas ao mesmo tempo” (1983:151)91.

No entanto, Levinson traz um exemplo que é ainda mais interessante para este trabalho: o ditado popular “A stitch in time saves nine”, o que poderíamos traduzir (ou verter?) por “É melhor prevenir do que remediar”. Segundo ele, não é necessário haver uma anomalia semântica em uma sentença como essa para que seja disparada a interpretação metafórica. Para o autor, “o que quer que explique a compreensão desse tipo de enunciado é semelhante ao que explica as metáforas, e não uma teoria semântica como quer que tenha sido construída” (1983: 151)92.

Dessa forma, o autor aproxima os ditados populares das metáforas, assim como tentamos fazer, mas nega que isso possa ser feito por uma teoria semântica – qualquer que seja, diga-se de passagem. Apesar de louvarmos a tentativa do autor de aproximar as duas coisas, discordamos de sua afirmação de que a semântica não é capaz de fazê-lo, como

89 “(...)There are metaphors, intuitively part and parcel of the same phenomenon, wich do not involve the initial semantic anomaly within the sentence required to trigger the ‘construal rules’ (rules for feature transfer).”

90 O exemplo original é “Your defense is an impregnable castle”, mas não conseguimos uma tradução que desse conta satisfatoriamente da questão. Esperamos que esse exemplo sirva melhor.

91 “(...) or, interestingly, both at once.”

92 “Whatever explains the understanding of these sorts of utterance is likely to explain metaphor, and it will not be a semantic theory however constructed.”

81 discutiremos no próximo capítulo. Ainda assim, entendemos que, no ponto de vista do autor, a semântica seria uma disciplina que não dá conta do que está além do significado estrito da sentença. Essa concepção pode parecer equivocada hoje, contudo fazer essa crítica para aquele momento é anacronismo do nosso julgamento.

Levinson prossegue a argumentação rebatendo as propostas semânticas que usam a teoria da comparação (também apresentada no item precedente). Em poucas palavras, essa teoria parte do pressuposto de que toda metáfora é uma comparação elidida.

(66) Bernardo é como um saco sem fundo.

(67) Bernardo é um saco sem fundo.

A observação de Levinson a esse respeito considera que ao invés dessa abordagem solucionar o problema da compreensão da metáfora, ela apenas o aproxima muito do problema da compreensão de “alguns tipos específicos de usos ‘literais’ da língua, nomeadamente aqueles dos símiles” (1983:151)93. Novamente, como notava Pires de Oliveira no início deste capítulo, isso seria apenas deslocar o problema de lugar.

A pragmática, no entanto, não se vale apenas da desconstrução dos tratamentos semânticos e propõe, ela mesma, diversas teorias motivadas a olhar para a metáfora e dar explicações, de outra natureza, sobre o fenômeno. Infelizmente, não poderemos esgotar as possibilidades neste capítulo, mas apresentaremos algumas delas na seção subsequente.