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O primeiro elemento a ser constatado ante a apresentação do plano estratégico adotado pelo governo FHC para a reestruturação do Estado e, logo, de seu papel na economia, é a clara separação entre as dimensões da política e da administração. Assim como os outros tipos de administração, burocrática ou patrimonialista, a gerencial enfatiza questões como “eficiência administrativa”, “desenvolvimento econômico” ou “interesse público” que, supostamente neutras, seriam objetivos desejados por todos. Naturalmente, não se trata de omissão dos proponentes do projeto de “reforma de Estado”, mas antes uma tentativa de camuflar os interesses e valores do processo político. É como se não houvesse crise econômico-política, um histórico subfinanciamento das políticas sociais e outros problemas diversos, mas apenas questões administrativas a serem rearranjadas, funções a serem redistribuídas e papéis a serem desempenhados com competência. Segundo Yolanda Guerra:

O Estado Social-Liberal é exatamente isso: é o Estado técnico, neutro, acima das classes, que se diz isento de qualquer compromisso de classe e de ideologia. Pretende ser um modelo alternativo de Estado, que supere o arcaísmo do Estado patrimonialista, o centralismo da administração burocrática, e seja, ao mesmo tempo, a encarnação da racionalidade racionalista do mercado, orientada pelos

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valores de eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos (GUERRA, 1998, p. 279).

Diversos autores apontam para este aspecto presente tanto no projeto da “reforma” do Estado, quanto nos livros escritos por Bresser Pereira. Um dos principais deles, Francisco de Oliveira, atento a questão das classes afetadas pela “reforma” gerencial da administração pública e também do Estado, argumenta:

Mas ainda assim, é impressionante a despolitização do tema, embora a retórica da política, da democracia, da cidadania, seja o que está mais presente. Parece, pois, que os trabalhadores não são cidadãos, que as reformas não os afetam, que não são atores, nem ativos nem passivos, da reforma gerencial do Estado. Na verdade, essa ostensiva ausência está dizendo que os trabalhadores são os inimigos da reforma gerencial do Estado, porque são corporativos, porque quando funcionários públicos são burocratas, e todos emperram a máquina que deve ser azeitada – azeite de direitos – para a nova competição global (OLIVEIRA, 2008, p. 143).

O trecho acima desnuda um dos principais objetivos da contrarreforma estatal, qual seja, a redução do Estado pela diminuição do número de funcionários públicos, a extinção de entidades estatais e a privatização de empresas, que complementa o ajuste fiscal. Seguindo a proposta liberal, vemos que o objetivo final é um Estado menor na área social e mais forte na organização das condições gerais de acumulação de capital. Não é outra a orientação do governo FHC ao implantar o Programa Nacional de Publicização (PNP) que, dentre outros desígnios, repassa a provisão da área social para entidades públicas não- estatais – fato que, para o ex-ministro, significa uma “maior participação da sociedade civil”.

Conquanto Bresser Pereira busque aduzir o modelo de administração gerencial como algo inédito ou livre da ideologia do mercado, ou ainda como alternativa distinta da orientação neoliberal adotada pela Nova Direita, segundo Andrews e Kouzmin (1998), o Plano Diretor, sobretudo o modelo da administração gerencial, tem como pressupostos alguns fundamentos da teoria da Escolha Pública. Dentre os indicadores que identificam o projeto de reforma do Estado com as orientações da escolha pública, os autores acima apontam para a defesa da redução do tamanho do Estado, o “reconhecimento” de que o Estado não pode gerenciar diretamente os serviços sociais, a expansão dos elementos de

41 mercado para as políticas sociais, a valorização do mercado como instrumento de controle, a adoção do modelo de administração gerencial em substituição ao modelo burocrático.

Além destes aspectos coligidos, Moraes (2002) explicita o caráter antidemocrático da teoria da Escolha Pública. Segundo o autor, a reforma administrativa proposta pelos autores desta corrente e abraçada por Bresser Pereira, se propõe a “profissionalizar” ou “despolitizar” as agências e instâncias estatais, o que, na verdade, assinala o autor, significa “libertar a máquina do Estado do universo alegadamente volúvel, incerto e destemperado da democracia representativa. A Nova Direita retoma a ofensiva ‘desemancipadora’ dos velhos liberais do século XIX, na sua luta contra a entrada das massas na vida política, por intermédio dos sindicatos, dos partidos ou sufrágio” (p. 19). Na mesma linha, os autores A. Andrews e P. Kouzmin demonstram a tentativa operada por Bresser Pereira de separar a teoria da Escolha Pública da prática da administração gerencial, apresentando esta última como uma solução “pós-moderna”, livre de ideologias. Afirmam que: “de fato, este tipo de discursos gerencial merece ser intitulado de conservadorismo disfarçado, uma vez que representa uma expressão ideológica do novo conservadorismo dentro de regimes democráticos” (1998, p. 98).

Para finalizar a contribuição dos autores críticos à “reforma” da administração e do Estado, eles sustentam que a implantação da administração gerencial não é uma novidade, pois já houve oportunidade de implantá-la na década de 60 durante o regime ditatorial. Assim, esse modelo foi implantado com o Decreto-Lei n° 200, de 1967 que, apresentado como medida de modernização e flexibilização do setor público, teve vários resultados negativos. Na época, os departamentos ministeriais responsáveis pela formulação e fiscalização das políticas sociais foram esvaziados em consequência da valorização das agências executivas que canalizavam para si os recursos técnicos e financeiros. Além disso, ocorreu a formação de alianças entre as agências executivas e os interesses privados (Andrews & Kouzmin, 1998).

O objetivo desta seção foi apresentar uma visão crítica acerca da contrarreforma do Estado, demonstrando que sua estratégia e execução foram realizadas a partir de certa concepção de Estado e economia, concepção esta fundada nas frações de classe que apoiaram a construção da hegemonia neoliberal no Brasil, em detrimento das garantias e direitos sociais conquistados com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Não

42 obstante as diferenças entre os governos brasileiros ao longo dos anos 90, entendemos que, grosso modo, tanto Collor quanto FHC tiveram este mesmo objetivo - embora o segundo tenha sido mais hábil na aplicação da estratégia neoliberal -, de sorte que coube a ele consubstanciar a contra-reforma e constituir o capitalismo neoliberal no Brasil.

Feita esta apreciação crítica acerca dos principais elementos contidos no PDREA, passaremos agora a uma análise de um dos principais setores do sistema de proteção social brasileiro, a saúde pública. A orientação geral para este setor foi, indubitavelmente, o fortalecimento e a hegemonização do setor privado, seja ele filantrópico ou privado. Para tanto, privilegiou-se ações voltadas para a descentralização associada à transferência dos aparelhos de saúde para entidades privadas e a focalização das políticas de saúde, que concorreram para a desconstrução do “jovem” Sistema Único de Saúde.