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2.1 As relações entre espaço e política

2.1.1 Críticas à ideologia urbana

As relações entre espaço e política no trabalho de Lefebvre (2001), a partir da crítica das ideologias urbanas e da utopia, consistem num importante ponto de discussão para compreender as práticas sociais que permitem a apropriação do espaço, em específico do espaço urbano público, as calçadas. Ainda sobre as relações, cada vez mais induzem pensar o espaço como algo que pode ser adquirido, sendo necessário compreender seu valor de uso e valor de troca. Em outras palavras, interessa-se pelas representações espaciais politicamente orientadas.

A Utopia de Lefebvre é definida e relacionada às ideologias que acompanham os processos de urbanização que ele critica.

Essa concepção do espaço como produto político é regulado por uma ideologia que reproduz as relações capitalistas de produção e um modo de vida urbana, no qual o cidadão se torna consumidor e usuário dos serviços oferecidos pela cidade. Nesse sentido, o acesso aos espaços e serviços se dá considerando o poder aquisitivo de cada citadino, porque os símbolos expressos no espaço induzem o comportamento das pessoas; a exemplo, tem-se faixas, correntes, entre outras, que delimitam estacionamentos ou, até mesmo, a presença ou ausência de espaços públicos. Para elucidar a compreensão da ideologia urbana, Lefebvre (2001) aponta:

[...] o urbanismo, quase tanto quanto o sistema, está na moda. As questões e reflexões urbanísticas saem dos círculos dos técnicos, dos especialistas, dos intelectuais que pretendem estar na vanguarda dos fatos. Passam para o domínio público através de artigos de jornais e de livros de alcance e ambição diferentes. Ao mesmo tempo, o urbanismo toma-se ideologia e prática. E, no entanto, as questões relativas à Cidade e à realidade urbana não são plenamente conhecidas e reconhecidas; ainda não assumiram politicamente a importância e o significado que têm no pensamento (na ideologia) e na prática [...]. (LEFEBVRE, 2001, p. 9-10).

Neste sentido, é possível afirmar que é um conjunto de ideias e valores que determina a conduta dos indivíduos, que explica a divisão de classes e justifica a segregação. O autor esboçou uma definição da ideologia para analisar o pensamento urbano por mais de meio século. Ainda, definiu ideologia espacial como um sistema de significados da realidade espacial, tomado como suporte, objeto ou participação de estratégias e lutas antagônicas e até contraditórias.

Existe, portanto, uma alienação no espaço pela ideologia espacial. O espaço também é objeto de uma luta ideológica. Lefebvre também afirma, em 1974, em A produção do espaço, que não pode haver ideologia permanente sem referência ao espaço, assim como todo espaço concebido carrega ideologias (LEFEBVRE, 2006). A ideologia adquire consistência ao intervir no espaço social em sua produção, ao tomar forma. Além disso, cristaliza-se em torno de um lugar real que veicula para se tornar eficaz (monumentos, por exemplo, mesmo que estes frequentemente percam seus significados no tempo). Por conseguinte, a ideologia pode ser induzida pelo espaço, como aponta Lefebvre (2006):

[...] as representações do espaço seriam penetradas de saber (conhecimento e ideologia misturadas) sempre relativo e em transformação. Elas seriam, portanto, objetivas, embora possam ser revistas. Verdadeiras ou falsas? A questão não tem sempre um sentido definido. A perspectiva é verdadeira ou falsa? Abstratas, com certeza, as representações do espaço entram na prática social e política, as relações estabelecidas entre os objetos e as pessoas no espaço representado dependendo de uma lógica que os faz, cedo ou tarde,

explodir porque incoerentes. Os espaços de representação, vividos mais que concebidos, não constrangem jamais à coerência, não mais que à coesão.

Penetrados de imaginário e de simbolismo, eles têm por origem a história, de um povo e a de cada indivíduo pertencente a esse povo. Os etnólogos, os antropólogos, os psicanalistas estudam, sabendo ou não, esses espaços de representação, freqüentemente esquecendo de confrontálos com as representações do espaço que coexistem, conciliando-se ou neles interferindo, negligenciando ainda mais a prática espacial. Os cientistas aí reconhecem isoladamente o que lhes interessa: lembranças da infância, sonhos, imagens e símbolos uterinos (ninhos, corredores, labirintos). O espaço de representação se vê, se fala; ele tem um núcleo ou centro afetivo, o Ego, a cama, o quarto, a moradia ou a casa; - a praça, a igreja, o cemitério. Ele contém os lugares da paixão e da ação, os das situações vividas, portanto, implica imediatamente o tempo. De sorte que ele pode receber diversas qualificações: o direcional, o situacional, o relacional, porque ele é essencialmente qualitativo, fluido, dinamizado. (LEFEBVRE, 2006, p. 42).

Portanto, o conceito de ideologia se refere a um sistema de representações distorcidas da realidade (falsa consciência), destinado a perpetuar a reprodução e hierarquias sociais, mais relacionadas a ideias conservadoras, enquanto a utopia era uma forma de pensamento voltada para a mudança social. Essa ideologia é particularmente aplicável ao planejamento urbano e à arquitetura (moderna), e paradoxalmente, a preservação da ordem social existente. Lefebvre (2001) coloca duas questões que ocultaram os problemas da cidade e da sociedade urbana: a questão da moradia e do habitat e as questões da organização industrial e da planificação global:

[...] esses dois grupos de problemas foram e são colocados pelo crescimento econômico, pela produção industrial. A experiência prática mostra que pode haver crescimento sem desenvolvimento social (crescimento quantitativo, sem desenvolvimento qualitativo). Nessas condições, as transformações na sociedade são mais aparentes do que reais. O fetichismo e a ideologia da transformação (por outras palavras: a ideologia da modernidade) ocultam a estagnação das relações sociais essenciais. O desenvolvimento da sociedade só pode ser concebido na vida urbana, pela realização da sociedade urbana.

(LEFEBVRE, 2001, p. 137).

Assim, constitui então, uma ideologia e não uma utopia, com a condição de aspectos utópicos de progresso, que requer a manutenção, reprodução, dominação, divisões no espaço e pela ação no espaço, destacando alterações no espaço, como a retirada da arborização para atender necessidades do capital, seja para dar visibilidade aos outdoors, comércio, ou para facilitar o escoamento da produção. A princípio, essa transformação do espaço propõe ganhos sociais, mas na realidade há a perca social do direito a uma cidade que ofereça conforto térmico.

Enquanto isso, Lefebvre observa o surgimento de uma ideologia da mudança (da modernidade), visto que a cidade moderna, como foi concebida nos anos 1950-1960, com

padronização da arquitetura e racionalização do planejamento torna-se sinônimo de tédio. Ela está, especialmente, no processo de perder seu histórico "valor de uso", no sentido de Marx (valor que deveria responder a necessidades e "desejos" sociais), e está cada vez mais sujeita a valores de troca (caracterizados por comercialização). Diante desse urbanismo moderno, que raciocina o espaço em termos de funções e necessidades elementares pré-determinadas e padronizadas, Lefebvre propõe a razão em termos de representações de usos, práticas e apropriação do espaço.

De qualquer forma, o urbanismo moderno nos mostra que a ideia de progresso não é necessariamente relacionada à utopia e eventual assistência social, mas pode ser sinônimo de preservação do existente. Desse modo, o progresso modernista serve para manter o funcionamento do sistema capitalista e hierarquias sociais dentro e através do espaço.

Em suma, essa ideologia faz com que a ordem social dependa do fator espacial e impõe ação no espaço para preservar ou transformar essa ordem (seja por ação pública ou propondo uma cidade ideal para arquitetura e organização apropriada para as novas relações sociais, novos estilos de vida e comportamentos). Cabe a uma nova concepção de vida permitir o trabalho do geógrafo, que novamente servirá como um capacitor social e não mais as relações sociais capitalistas. Alterar a cidade para a vida é sinônimo de erro e mistificação. O autor propõe levar o problema ao contrário. Isto é, a mudança social e a vida diária é que permitirão que o modo de produção do espaço, e o próprio espaço, se transforme.

Mas a transformação social não pode, contudo, ir junto com uma transformação espacial - ou antes outro modo de produção do espaço. Pois por outro lado, uma transformação do espaço e seu modo de produção seria inútil sem uma transformação estrutural radical nas relações sociais (capitalistas). A ideologia espacial, portanto, tem um impacto direto na produção de territórios urbanos contemporâneos e, consequentemente, na apropriação do espaço, por isso a discussão da ideologia à utopia se faz necessário