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Capítulo 2 As bases do método fenomenológico: as reduções e o acesso à verdade

2.1. Redução eidética, epoché e redução fenomenológica

2.1.2. As críticas à redução fenomenológica

A partir dessa análise geral sobre a redução fenomenológica podemos antever as razões pelas quais ela configura um dos pontos mais complexos do método elaborado por Husserl e por que ela segue sendo um dos aspectos mais criticados em sua filosofia. Tanto a acusação de solipsismo, como outras críticas à redução, fazem parte do conjunto central de objeções que conduzem à rejeição do idealismo. Diante disso, cabe investigar algumas considerações importantes de outros fenomenólogos em relação a tal aspecto da filosofia husserliana. Essa análise é também interessante na medida em que a apropriação do método fenomenológico por outros autores se deu em grande parte a partir de uma alteração significativa desse ponto, a despeito de Husserl considerá-lo tão central para seu projeto.

Roman Ingarden é da opinião de que o problema central não reside no fato de que Husserl tenha adotado o método da redução fenomenológica, mas sim o modo como desenvolveu suas análises a partir de tal procedimento. Haveria, inclusive, uma

“ambiguidade inconsciente” na maneira como a redução é aplicada. Isso evidencia-se,

segundo Ingarden, quando observamos que as conclusões às quais Husserl chega a partir da redução parecem ir na contramão da proposta mesma de abstenção de juízo sobre a existência das coisas do mundo: afirmar, como faz o filósofo, que os objetos

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afirmar algo sobre a natureza de sua existência99. Ora, se a redução se propunha apenas a descrever os entes enquanto fenômenos, tal como mostram-se à consciência, o que nos legitima a fazer essas ou outras afirmações sobre o modo de ser das coisas?

O problema principal seria, quanto a esse aspecto, que Husserl não tem claro para si mesmo quais são os limites da redução fenomenológica. Ingarden identifica duas alternativas: de um lado, pode-se conceber a investigação fenomenológica de tal modo que ela deveria reduzir-se a investigações epistemológicas limitadas a análises descritivas, que não estão autorizadas a tratar de questões sobre a existência ou o modo de ser dos entes que aparecem como fenômenos; outra alternativa seria que a fenomenologia pode ultrapassar esse estágio inicial e tratar das coisas enquanto coisas

do “mundo real”, tomando partido sobre o ser e a essência das coisas para além de seu

aspecto meramente fenomênico.

No primeiro caso, então, “a controvérsia entre idealismo e realismo com relação

ao mundo real e particularmente a resolução em favor do idealismo transcendental é de fato impossível (...) e temos que nos abster de qualquer declaração sobre a existência e

qualificações do mundo”100. Desse modo, o que Husserl teria feito ao tirar conclusões

sobre a natureza dos fenômenos seria ir contra os próprios limites que caracterizam a redução. De acordo com essa leitura, portanto, não é a redução que conduz ao idealismo, pois tal metodologia, por si mesma, não autoriza nem a decisão em favor do idealismo e tampouco a defesa do realismo. A postura correta seria, para manter-se dentro dos limites propriamente fenomenológicos, abster-se de julgar sobre tais questões.

Quanto à outra possibilidade, que autorizaria análises e asserções sobre o mundo real, tampouco conduziria necessariamente ao idealismo: ora, uma vez que se ultrapassa os limites iniciais da redução e a investigação é conduzida a questões sobre a natureza dos fenômenos para além do seu aspecto meramente fenomênico, já não estaríamos no campo transcendental da redução, mas sim em outro tipo de análise que justamente ultrapassa a ideia de mero fenômeno relativo à consciência. Nesse sentido, a redução

funcionaria como um método inicial que, por assim dizer, “limpa o terreno”, ajudando a

evitar prejuízos e preconcepções, mas que deve ser atravessado a fim de tratar dos entes

99 INGARDEN, Roman. On the motives which led Husserl to transcendental idealism, p. 39-41. 100 Ibidem, p. 42.

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eles mesmos.

Como esclarece Ingarden, ele mesmo concorda com diversos aspectos da redução fenomenológica, ainda que certamente não esteja de acordo com a maneira como Husserl a conduziu e tampouco com as conclusões que o filósofo chegou a partir de sua aplicação em uma direção particular que culminou no idealismo transcendental. O problema, portanto, não seria a redução em si, mas sim o modo equivocado de utilizá- la que acaba levando a fenomenologia a um paradoxo que é ultrapassar os limites do seu próprio ponto de partida metodológico. Manter-se fiel à fenomenologia mesma, nesse caso, envolveria ir contra o posicionamento husserliano em favor do idealismo, ainda que, tampouco, implique em uma tomada de posição na direção contrária:

Eu concordo que em certo estágio da investigação fenomenológica é útil que ela seja efetuada, por assim dizer, com base na consciência pura e não em uma psicologia da cognição humana fundada no mundo real. Concordo que a descoberta da consciência pura (abstraindo de premissas metafísicas adicionais) é necessária e indispensável (...). Mas essa redução não conduz, como ocorre nas Ideias I de Husserl, a afirmações sobre os objetos reais, nem

no sentido de soluções ‘realistas’, nem de soluções ‘idealistas’. Se isso é

realizado por Husserl é porque o próprio método epistemológico foi transgredido101.

Também Heidegger fez uma série de críticas à maneira como Husserl conduziu a redução fenomenológica. É interessante observar que o filósofo teve um entendimento ao nosso ver bastante adequado (ao menos em suas linhas gerais) de qual a intenção de Husserl com a redução, mas que, ainda assim, percebeu uma série de dificuldades de difícil solução. Conforme comenta Heidegger, em defesa de uma boa compreensão do método proposto por seu professor: “esse colocar entre parênteses do objeto não retira nada do objeto mesmo, nem tampouco implica em assumir que o objeto não existe. Essa

mudança de perspectiva tem, ao contrário, o objetivo de fazer o ser do objeto visível”102.

Ainda assim, apesar da defesa contra típicas interpretações equivocadas da redução, Heidegger também apresentou suas objeções. A primeira delas, que vai na mesma direção da crítica apontada por Ingarden, é em que medida a redução permite tratar da própria realidade em seu ser, isto é, em que medida é possível a constituição de qualquer ontologia quando partimos de um método que justamente pretende abster-se de

101 Ibidem, p. 42-3.

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julgamentos sobre a existência das próprias coisas. Como questiona o filósofo: “o sentido da redução é, precisamente, ignorar a realidade com o objetivo de trata-la tal como aparece para a consciência pura (...). Mas em réplica poderíamos questionar se

isso poderia ser suficiente para a questão sobre o ser do objeto intencional”103.

Heidegger reconhece um duplo equívoco no procedimento da redução: primeiro a proposta de definir o sentido da realidade apenas no como ela se manifesta para a consciência, jamais chegando a abordar de fato o seu o que, o seu modo de ser; depois, a própria concepção limitada de consciência que está em questão nas análises

fenomenológicas desenvolvidas por Husserl, nas quais “a questão do ser do que é intencional permanece indiscutido”104. Heidegger sustenta, nessa direção, que a

“reflexão fenomenológica deve começar a partir da atitude natural”, a partir “da

determinação do ser do ente concreto chamado ser humano”105.

Esse seria, de fato, um dos maiores pontos de discordância entre os filósofos, pois Heidegger recusa a concepção de subjetividade de Husserl, como vimos, alegando que há um comprometimento inconsciente com preconcepções advindas da tradição filosófica. O problema com a redução fenomenológica no modo como Husserl a desenvolve, portanto, é que ela simultaneamente afasta a fenomenologia da ontologia e abre margem para uma ideia equivocada de subjetividade enquanto eu puro, concepção essa que apenas dá continuidade aos problemas insolúveis da filosofia moderna106.

A crítica de Levinas à redução, por sua vez, conecta-se diretamente com a dificuldade em relação ao solipsismo. Para o filósofo, o modo como Husserl formulou a redução fenomenológica – uma redução exclusiva ao ego transcendentalmente isolado – abriu margem para que a própria concepção de mundo fosse contaminada, restringindo- se ao mundo constituído por uma única consciência. Ele argumenta que a busca pela

“vida concreta”, a experiência tal como ocorre, não pode ser abarcada em uma

103 Ibidem, p. 151.

104 Ibidem, p. 156-7. 105 Ibidem, p. 147.

106 É digno de nota, porém, que ao menos até o final dos anos 20, o próprio Heidegger utilizava um

conceito de “redução fenomenológica”, ainda que em termos diferentes daqueles de Husserl

(HEIDEGGER, Martin. Die Grundprobleme der Phänomenologie, p. 28). Sobre esse aspecto, ver

MISSAGGIA, Juliana. Heidegger e o método fenomenológico: indicação formal, vida fáctica e

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concepção exclusiva ao ego puro. De fato, o ser concreto necessariamente envolve outros sujeitos como elementos indispensáveis de sua constituição:

Há outra razão pela qual a redução fenomenológica (...) não revela a vida concreta e o sentido que os objetos tem para ela. A vida concreta não é a vida solipsista de uma consciência fechada em si mesma. O ser concreto não é o que existe para apenas uma única consciência. Na própria ideia de vida concreta está contido a ideia de um mundo intersubjetivo. Se nos limitamos a descrever a constituição dos objetos em uma consciência individual, em um ego, jamais iremos apreender os objetos como eles são na vida concreta mas apenas apreenderemos uma abstração. A redução a um ego, a redução egológica, somente pode ser o primeiro passo em direção à fenomenologia107.

Levinas entende que por trás dessa formulação equivocada da redução está a insistência de Husserl acerca da total independência da consciência, que, como vimos, é a base de todas as objeções do filósofo a Husserl. No entanto, Levinas é mais cauteloso do que outros críticos em relação ao suposto solipsismo da fenomenologia husserliana e não a entende como sendo uma condição inevitável do próprio método. Ele reconhece, inclusive, que esta é uma preocupação crescente nos trabalhos de Husserl, de modo que sua crítica se limita às considerações do primeiro volume de Ideen108.

Outro aspecto da crítica de Levinas à redução fenomenológica, esse ainda mais abrangente, diz respeito àquilo que vimos anteriormente como sendo um dos pontos principais de suas objeções a Husserl: a falta de um tratamento acerca do problema da historicidade: “o papel histórico da redução e o significado de seu aparecimento em um

certo momento da existência não é, para ele, nem mesmo um problema”109. Levinas

mostra que Husserl mal coloca-se a questão acerca do problema de justificar que a mera redução implique na abertura imediata de um campo puro alheio à toda historicidade. Isso ocorreria, sobretudo, devido a base essencialmente intelectualista que guiou sua aplicação do método de redução fenomenológica.

A partir dessa análise podemos observar que todas essas críticas, apesar de seus diferentes pontos de vista, possuem elementos comuns: além de terem influenciado amplamente a recepção da filosofia husserliana e terem, portanto, servido de base para muitas das objeções feitas ao filósofo ainda hoje, tratam-se de críticas que não pretendem deslegitimar a redução como um todo, e muito menos o método

107 LEVINAS, Emmanuel. Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl, p. 215. 108 Ibidem, p. 215.

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fenomenológico em si. O objetivo é, como observamos, apontar aquilo que aparece como equivocado na aplicação de Husserl, a fim de encontrar, ainda dentro do caminho da fenomenologia, uma saída para problemas que a filosofia husserliana não daria conta. Pretendemos avaliar, ao longo desse estudo, quais aspectos de tais objeções mostram-se acertados.